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Quimeras e Utopias

Quimeras e Utopias

Vou para não ficar (excerto VI)

Tomaram banho de água quente juntos, numa banheira cheia, quase a transbordar. Apesar de apenas terem dormido um par de horas, um mútuo desassossego interno impedia-os de caírem numa dormência proporcionada pela água cálida e pelo cansaço. Tocavam-se, deixavam-se estar envolvidos pelos braços um do outro. Por vezes beijavam-se devagar, de olhos fechados, sentindo no mais íntimo e recôndito lugar dentro dos seus seres a gravação daquele toque, daquele sentir, o calor do outro, o cheiro do outro. Estavam viciados na intimidade nunca antes experimentada.     

Com a água já tépida, quase fria, decidiram sair da banheira, salpicando o chão da casa de banho. Envolveram-se na mesma toalha, confrontados por instantes pela perscrutação do espelho da divisão, que refletia dois homens, como dois adolescentes, numa dança hipnótica. Estiraram-se ainda húmidos sobre uma das camas estreitas.

O dia começava a nascer e do exterior, através das cortinas finas, chegava uma claridade branca, baça. O silvo das sirenes dos bombeiros, a sirene do quartel mais próximo que clamava por ajuda, o som de um avião de pequeno porte, possivelmente um canadair que, com a chegada da aurora, viera ajudar no combate ao fogo, todos esses, ora fugazes ou persistentes sons passaram despercebidos entre os beijos e murmúrios daquele quarto, onde cada pedaço de pele foi tocado, cheirado, provado. Novos detalhes do corpo de cada um foram descobertos. Duas pequenas depressões perfeitas no fundo das costas, antes das nádegas, que Salvador tateou uma e outra vez, memorizando cada centímetro, o aroma do pescoço de Alexander, os músculos dos braços, firmes, sem serem excessivos ou ameaçadores, a ténue covinha que se formava no centro do seu queixo, os pés de dedos perfeitos, delicados, a pele, o aroma da sua pele morena, o aroma das axilas, cada um desses detalhes deixava Salvador ébrio.

Se Salvador usava todos os sentidos do seu corpo, Alexander fechou os olhos, sentindo o outro na ponta dos seus dedos, nas palmas das suas mãos, na sua boca. A depressão no centro das costas, formando uma via perfeita do pescoço às nádegas, as omoplatas salientes, o pescoço esguio, que cheirava a amêndoas, que fazia lembrar manhãs de inverno dentro da cama a ver chover lá fora, as cristas ilíacas protuberantes, o peito, o estômago liso, a boca de lábios finos, as orelhas pequenas, o arco do nariz, as pálpebras dos olhos. Alexander beijou-lhe as pálpebras dos olhos, as sobrancelhas, a testa alta.    

Quando fizeram amor pela primeira vez, depois de esgotarem a prospeção do corpo um do outro, domados por um sentimento que já não era de urgência mas de plenitude — uma declaração de amor depois de meses de paixão avassaladora que se transformara lentamente numa afeição que fazia sorrir só de se pensar nela — mesmo que desajeitados, atropelados pelas vontades rápidas dos próprios corpos, foi a confirmação de que estava certo, de que aquilo que eles eram, mesmo que contrariando vontades alheias, era o correto. Mais nada, nunca antes, nunca até àquele momento, tinha sido tão absolutamente perfeito. «Estás dentro de mim» — sussurrou Alexander ao ouvido de Salvador, — «estás dentro de mim».

 

(em Vou para não ficar, Sónia Pereira)

 

 

 

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