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Quimeras e Utopias

Quimeras e Utopias

Vou para não ficar (excerto IX)

Movia-se como se temesse que a floresta estivesse minada e cada passo pudesse ser o último. Encostei-me a uma árvore, senti o arranhar do tronco irregular no meu braço esquerdo e fitei-o, monitorizando cada movimento, o seu toque inconsciente com a mão direita, de dez em dez segundos, no corpo da metralhadora pendurada no ombro direito, o olhar circundante que tudo queria abarcar, que pousava dois ou três segundos em cada recanto. A uns cinquenta metros, esse mesmo olhar perscrutador deu comigo e fê-lo deter-se, agarrar na arma com rapidez e apontar-ma por entre árvores. Não me mexi. Ele não começou de imediato a caminhar. Ficou parado, de arma em riste, a espreitar-me por entre a vegetação, recomeçando a andar lentamente depois de constatar a minha inação. Quando estava a meia dúzia de metros de mim, parou e ali ficou, a apontar-me a metralhadora sem nada dizer. Não são precisas palavras na violência. Bastam as ações.

Lembrar-se-ia de mim? Sei que mudei, que sou um pálido, distorcido reflexo do que era há uns meses. Mas talvez algo de mim tenha permanecido na sua memória.

Embora o tenha reconhecido ao longe, a imagem grotesca que guardava dele era um contraste absurdo com a realidade. Ele era apenas um miúdo. Por entre a sujidade daquele rosto de feições retesadas pela adrenalina, vislumbravam-se as borbulhas típicas de um rosto ainda púbere. Mais novo, mais baixo, menos entroncado do que me lembrava. Também ele era um pálido, distorcido reflexo da imagem guardada na minha cabeça. Mas embora o aspeto fosse distante da recordação, a expressão era a mesma. A personalidade projetava-se em cada detalhe da fisionomia do rosto. A testa franzida, os maxilares tencionados, o queixo levantado num desafio, traduziam a clara necessidade de se sentir valorizado, um ego ferido, uma gritante necessidade de amor. Senti mesmo, por breves instantes, vontade de o abraçar.

[...]

Quando as suas conexões cerebrais estabeleceram uma ligação entre aquela pessoa que estava à sua frente e um rosto do passado, proferiu: «Puta que pariu. Não acredito no que estou a ver.» Desatou a rir, fazendo a metralhadora movimentar-se ao sabor do estremecimento físico causado pelo riso. Para ele, eu era como um palhaço mal ataviado numa festa infantil. Ria-se da minha presença inusitada, a quilómetros de casa, da minha barriga, fruto do brilhante desempenho do seu coleguinha, do meu semblante cansado, envelhecido e ria-se das memórias aparentemente agradáveis do nosso primeiro encontro.

Fechei os olhos. O riso, o timbre da sua voz… 

Apenas ansiava por um pouco de música e esse anseio, naquele momento, quase ao nível desesperado do querer comida quando se está esfaimado, querer roupa quando se está dominado pelo frio, despertou em mim um rol de emoções tencionadas em sons e imagens.

A primeira vez que ouvi uma música que me levou às lágrimas, o cantor que adorava em criança e que agora considero oficialmente piroso, mas que secretamente ouço de vez em quando, o primeiro concerto da minha banda preferida, o burburinho na sala de espetáculos e os primeiros sons que instantaneamente calaram a plateia, a música a entrar-me ouvidos adentro pelos auriculares enquanto, no meu quarto, olho para o exterior, para o sol forte do meio do verão, que me faz fechar os olhos e lacrimejar, a tua música a dominar a casa nos dias de férias, fazendo os vidros vibrarem, as paredes estremecerem, a minha dança com Ângelo ao som da música que saía daquele rádio velho, os versos em rima na voz enternecedora de Mozart.

Abri os meus olhos.

O cantar dos pássaros, o som da água a correr riachos abaixo, o vento a redemoinhar nas chapas torcidas das casas destruídas, o chocalhar dos guizos do gado, não chegavam. Aquele riso de escárnio, o bater acelerado do meu coração cansado, não bastavam.

Pensava nisso, nessa minha quase vampírica ânsia musical — uma ânsia pela única experiência verdadeiramente transcendente e divina que conhecia — quando lhe parti a maioria dos ossos do rosto. A minha metamorfose, sempre tão rápida e inesperada, apanha todas as minhas vítimas desprevenidas. Este meu agigantamento, um David decidido a confrontar o seu Golias, faz-me agir em segundos, num impulso sem qualquer ensaio ou pensamento prévio. Deixei cair por terra o que trazia nas mãos, peguei num pedregulho que repousava no chão, junto ao tronco da árvore à qual me encostava e saltei para cima dele. Ele caiu para trás. Montada sobre o seu tronco, agredi-o consecutivamente.

Já não estava ali. A minha mente estava noutro sítio qualquer. Flutuava junto à aldeia histórica, voava por cima do rebanho de ovelhas, sentia o peso do calor nas pálpebras quando observava o horizonte desprovido da evidência de qualquer presença humana. O som trouxe-me de volta. Ouvi aquele estalar inconfundível, o partir de uma massa dura mas porosa e também aquele som não tinha nada de musical e odiei-o ainda mais por me dar aquilo e não música. A minha tão ansiada música. Ele não gritou, não berrou e ocorreu‑me que talvez me estivesse a compreender.

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