Violência consentida
Não posso extrapolar do que se passa em minha casa, aquilo que eu considero ser o normal ambiente conjugal, para o que se passa na casa dos outros, dos limites e fronteiras estabelecidas pelos outros casais para os seus relacionamentos afetivos. No entanto, excluindo a questão dos fetiches (com regras próprias pré-estabelecidas), a violência não pode, em hipótese alguma, integrar o que alguém designa como normalidade familiar.
Por isso, é sempre com espanto que leio certas notícias relativas a decisões judiciais, em que os agressores não sofrem qualquer punição jurídica, e onde certos comportamentos, a meu ver desajustados, são vistos de forma benevolente pelo juiz ou coletivo de juízes.
A notícia de que falo refere-se a um arguido acusado de violência doméstica, de apertar o pescoço à companheira como reação às supostas traições, de empurrões e de agressões que, segundo os relatórios médicos referidos no acórdão «apontam que a vítima sofreu um traumatismo abdominal e dores na região supra mamária, resultado das ofensas físicas».
No entanto, o indivíduo em questão foi absolvido, podendo ler-se neste excerto do acórdão “não é, pois, do mero facto de o arguido consumir bebidas alcoólicas, ou de tomar uma ou outra atitude incorreta para com a ofendida (por exemplo, ir “tirar dinheiro” da carteira desta), ou de, numa ocasião, após um insulto da ofendida, ter agarrado o pescoço desta com uma mão (…), que podemos concluir pela existência de um maltrato da vítima, no sentido tipificado no preceito incriminador da violência doméstica”.
Segundo a notícia no site da TSF e Jornal Económico, o indivíduo de que falo já tinha sido condenado por violência doméstica, mas teve a sua pena suspensa por ter aceitado fazer um tratamento para o alcoolismo.
O meu espanto não é fruto somente desta decisão judicial, mas é também um espanto com memória. A memória das dezenas de mulheres que morrem anualmente às mãos de companheiros ou ex-companheiros, homens alcoólicos, homens que não aceitam o fim de uma relação, homens movidos pelo ciúme doentio, homens que têm nas mulheres um objeto que lhes pertence, homens que sentem que podem vingar uma qualquer honra perdida pela traição (ou suposta traição), homens egocêntricos sem empatia por outro ser humano.
O coletivo de juízes, composto por Maria Filomena Soares e João Amaro, referiu que para o crime se considerar de violência doméstica é necessário que exista um grau superior de consequências que afete a dignidade pessoal da vítima, não bastando uma série de crimes cometidos durante uma relação afetiva para que maus-tratos passem ao crime de violência doméstica. (fonte: Jornal Económico)
Quando um tribunal, estância de salvaguarda máxima da segurança de um cidadão, considera que há tau-taus e tau-taus, que a violência, dentro de certos parâmetros, é admissível no seio familiar (mesmo onde coabitam crianças, como é o caso referido acima), esse tribunal está a dar um sinal inequívoco de tolerância a comportamentos desadequados futuros, está ainda a silenciar as vítimas, a justificar as mortes.