Costumo dizer que não tenho livros preferidos, filmes preferidos, coisas preferidas no geral. No entanto, no que toca aos livros, embora nunca o nomeie como o meu livro preferido, o certo é que As Benevolentes de Jonathan Littell está-me sempre a aparecer à porta da memória, apesar de o ter lido uma única vez há 17 anos. Ainda não há muito tempo escrevi sobre ele para uma disciplina, onde o mote do texto era «O corpo que lê» e escolhi esta obra para falar sobre os efeitos físicos da sua leitura, pois, mesmo passados tantos anos, a perturbação persiste latente no meu corpo que envelhece.
Hoje, ao percorrer as notícias digitais de alguns meios de comunicação, lá apareceu ele novamente, a berrar-me dos fundilhos da memória. E o que diabo terá um livro escrito em francês por um americano há uma catrefada de anos a ver com as notícias do dia?
Precisamente… tudo.
Quando há quase duas décadas alguém me perguntava de que tratava aquela “bíblia” enorme que andava a ler e que eu transportava para todo o lado, a frase mais curta que encontrava e que parecia resumir tudo era que aquele livro era um manual de como transformar um ser humano num monstro.
Com a ação a passar-se durante a II guerra mundial, a história narrada na primeira pessoa pelo protagonista, um oficial das SS, vai-nos mostrando como os acontecimentos extremos de um conflito conseguem transformar um ser aparentemente banal, num ser sem escrúpulos, capaz de tudo.
No meu agora, sei que a minha sinopse da obra era infeliz. Não há monstros neste mundo. Quando, do alto da nossa facilidade, julgamos o outro que age de forma extrema, com a qual não nos conseguimos identificar, rotulamo-lo de monstro. Mas na realidade, aquelas pessoas, a matar, torturar, violar, são pessoas como eu. Ou quase.
E o quase reside na força devoradora dos conflitos. Os conflitos perpetuados, arrastados, a exposição prolongada de qualquer ser humano à violência, à subjugação e à indignidade leva a uma excisão da empatia que ainda se aloje dentro dessa pessoa. As guerras são como máquinas de amputar empatia, de criar bunkers de isolamento emocional.
No livro de Littell, o protagonista Maximillien Aue desfila da inocência de ser um jovem adulto, alegre, que se choca com a violência inusitada dos outros, que se enoja com os extremos a que alguns soldados se erguem, até chegar, também ele, ao topo do miradouro da vilania, da psicopatia. E ali, ao longo de quase 900 páginas, está o raio da explicação de tudo o que se passa e sempre se passou nas nossas sociedades modernas.
E quando fechei o livro, de mãos trémulas e mente agitada, a pergunta que se empunha era e continuará sempre a ser – estando eu ou qualquer uma das pessoas que conheço, expostos a tais níveis de violência, amputados pela raiz de qualquer empatia, identificação com o próximo, serei, também eu, capaz de chegar àqueles extremos? Matar, raptar, torturar, violar? Será a violência como uma doença contagiosa, um cancro que se metastiza por todos os elementos de um grupo social, apodrecendo tudo por onde passa?
E, claro, abandonando o espaço da ficção e lendo ou vendo as notícias, há sempre a tentação de defender um dos lados envolvidos num qualquer conflito. Normalmente a escolha é facilitada por questões muito simplistas. A identificação está sempre no topo da lista das nossas justificações clubísticas. Defendemos aqueles com quem nos identificamos mais, seja por razões de proximidade geográfica ou razões sociais e culturais (um dos lados do conflito tem um estilo de vida semelhante ao nosso, as suas atividades diárias são mais facilmente comparáveis com as nossas). E mesmo que nenhum dos grupos envolvidos no conflito leve a cabo ações defensáveis, a verdade é que acabamos por cair na armadilha de menorizar as ações dos nossos semelhantes e antagonizar e repreender severamente as ações do grupo oposto, mesmo que essas ações sejam uma réplica perfeita, um reflexo no espelho, das ações do seu oponente.
Nós, os espetadores, vemos o mundo de uma forma maniqueísta. Os bons e os maus, quando a dura verdade é que será muito difícil encontrar os bons onde já não há empatia e não podemos catalogar de forma simplista os outros de maus, porque talvez a maldade seja característica humana, um atributo como qualquer outro, uma espécie de gesto reflexo dos emocionalmente amputados.
Em suma, em mim há apenas desespero ao ver o que se passa à minha volta, porque neste filme não há super-heróis. Há apenas conflitos congeminados e alavancados por meia dúzia de pessoas, de parte a parte, que não sofrem diretamente o peso esmagador desses mesmos conflitos. A gula de poder, o narcisismo dos escolhidos a corroer cérebros e a criar zombies.
Mas há, também e acima de tudo, dúvidas.
Há mais de um ano, vi uma peça de teatro de Tiago Rodrigues, «Catarina e a beleza de matar fascistas». Tal como o livro de Littell, não a catalogarei como a minha peça de teatro favorita, mas ela volta, assalta-me a memória quase todos os meses. Escrevi sobre a peça na altura que a vi e, como num jogo de espelhos da realidade, também ela tem muito a ver com a atualidade. A de hoje e a das últimas décadas, porque a realidade é uma reciclagem histórica contínua. A porra da realidade não daria ficção, porque a repetição torna-a inverosímil e previsível.
Tiago Rodrigues, num texto com uma escrita brilhante, deixa o espetador a matutar nas questões da vida: até onde se pode ir para parar o mal, deter aqueles que pretendem restringir a liberdade de uma sociedade? Será legítimo, ético, usar violência para travar aqueles que, de alguma forma, também são violentos? Quais são os limites de ação de alguém que se defende de um ataque? E não haverá culpa pela propagação do mal, pela profusão da retórica fascista, da subjugação de um povo, da indignidade, da violência, se todo o ser humano se mantiver dentro do legal/ético/moral? Não será a inação uma forma de repressão e coadjuvação com o opressor?
E é neste difícil jogo de xadrez, entre empatia ou falta dela, territórios consagrados e territórios expurgados, liberdade e opressão, manipulação e subjugação, que se joga a vida humana e a paz no mundo.
E no fundo, o que será realmente isso da Paz no mundo?
Harmonia entre partes ou silêncio de uma das partes subjugadas?
Catarina ou a beleza de matar fascistas, de Tiago Rodrigues
As Benevolentes de Jonathan Littell, Dom Quixote, 2007.
Enquanto caminhava entre dezenas de pessoas alvoroçadas e faladoras, na direção da saída daquela sala de espetáculos, para fora daquela casa das artes, o que sentia era culpa. Percebi, envergonhada, que o que fizera ali (ou não fizera) era uma exata réplica do meu comportamento em sociedade. Eu, logo eu, tão fanfarrona das minhas crenças, dos meus ideais, dos meus valores…
Comprara os bilhetes para aquele espetáculo havia mais de meio ano. Cancelamentos devido à covid arrastaram «Catarina e a beleza de matar fascistas» para o fim de semana prévio ao 25 de abril. Entrei naquela sala a fervilhar em stress. O meu trabalho prolongara-se penosamente até às 20h15, não jantei, a viagem ainda fora longa até ali chegar, não encontrávamos estacionamento, cada uma das pessoas do meu grupo tinha um bilhete numa fila diferente, tudo combinado para incendiar o meu estado de espírito. E depois aquilo.
Aquilo a que me refiro é uma peça de teatro com um texto brilhante de Tiago Rodrigues (quando for grande, quero escrever algo assim), brilhante na forma como foi escrito, encenado e interpretado, brilhante na provocação ao espetador, brilhante por desejar que o espetador percebesse que não era suposto ser apenas espetador, agente passivo de uma obra de arte.
Num crescendo, vemos os personagens mergulhados no dilema, que é também um dilema de todos nós enquanto seres sociais – até onde é possível ir para se defender a liberdade, a democracia e silenciar aqueles que a atacam, a minam e destroem? Será a justiça coisa que se possa redefinir e adaptar consoante as necessidades especiais de um momento? O recurso à violência é justificável se os fins forem nobres? Todos os fins justificam os meios? E, se descartarmos as minudências da ética e da moral, não seremos nós, em última instância, como aqueles que tentamos combater, aqueles que se alimentam do medo, que perseguem o poder, implodindo com a liberdade e direitos?
Mas, e se não fizermos nada? Se formos plácidos e conciliadores com todos eles? Se lhes dermos o direito à fala, o direito à retórica associada, o direito à exploração emocional de todos nós? Se nos limitarmos a deixá-los ser, usando como único recurso de batalha as nossas palavras já cansadas?
A dada altura da peça, eu percebia a perspetiva de cada uma das Catarinas e eu própria estava mergulhada em dúvidas, porque nada nunca é verdadeiramente preto ou branco, bom ou mau, belo ou feio. Mas as dúvidas, o diabo das dúvidas, não raras vezes levam ao caos.
No momento final da peça, o fascista de serviço, numa personificação aterradora dos pequenos fascistas que vemos pulular por aí, espécie em crescimento bem adaptada ao ambiente, congratula-nos com um discurso ininterrupto, com todos aqueles chavões que se lhes conhece, numa ladainha papagueada, fervorosa e amiga de deus, da família, da tradição, do progresso sem escrúpulos.
A um ator que nos cria a vontade do insulto, do combate e até mesmo da violência, só temos de lhe reconhecer o talento. Calado durante toda a peça, o personagem fascista, interpretado por Romeu Costa, eleva-se aos píncaros na reta final. E com ele veio o desconforto, a vergonha e, posteriormente, a culpa.
Temos um personagem a debitar, perante o silêncio de todos os outros personagens da peça, tudo aquilo que representa o ideário mais asqueroso que uma sociedade possa almejar. O silêncio dos outros atores e o silêncio de uma plateia composta por centenas de pessoas. E talvez tenha sido necessário passarem uns bons cinco minutos para um espetador (um agente provocador?) da assistência se manifestar contra todas aquelas alarvidades proferidas por um político tão credível, que o teatro, a personagem, o próprio Romeu Costa, desapareceu, ficando ali na nossa frente um fascista, perfeitamente decolado, de uns quantos outros que tão bem conhecemos.
E aquela plateia, depois da primeira intervenção de um espetador exaltado, mandando calar o personagem, transformou-se numa amostra de um país, num microcosmo visto à lupa de um Portugal atual. Da exaltação inicial de um homem, inicialmente vieram os olhares reprovadores de algumas pessoas: «este pessoal vem ao teatro e não se sabe comportar». Mas também estes se começaram a sentir desconfortáveis com o discurso cada vez mais alongado do pequeno fascista. Esperávamos uma intervenção redentora de um dos outros personagens, mas ela não chegava e ele continuava na sua lengalenga (como raio um ator consegue decorar um texto de dez, quinze minutos, sem pausas, num encadeado frenético, está para além da minha compreensão).
Depois da reprovação do comportamento do espetador provocador, do desconforto cada vez mais palpável que se transformava em anuência, surgiram os primeiros protestos da plateia. Uns gritavam «Não passarão» ao som de palmas de incentivo daqueles (como eu) que não se atreviam a gritar em protesto. Cantou-se a «Grândola vila morena», gritaram-se insultos, várias pessoas abandonaram a sala e ele continuava a discursar, num fervor, por vezes quase silenciado pelos cânticos antifascistas da plateia, outras vezes completamente percetível, com o seu discurso a ferir, a mostrar o nosso silêncio, a nossa inoperância, a nossa passividade.
E quando finalmente acabou, senti-me mal. Muito mal. Quis ter tido coragem de ser aquela mulher exaltada duas filas atrás da minha, que por momentos temi que saltasse para o palco e desatasse à bofetada ao ator, quis ter sido aquelas pessoas que cantaram em fúria, que vociferaram «Não passarão», mesmo perante o olhar de reprovação de várias outras pessoas da assistência. Porque, a dado momento, aquilo já não era uma peça de teatro, aquilo era uma análise do nosso comportamento social. E dali, o que se concluiu, é que somos seres essencialmente passivos, que preferimos sentir a vergonha da inoperância, a culpa da passividade, ao invés do arrebate algo insano, à impetuosidade mesmo que ingênua, à impulsividade da ação. E mesmo quando nos rebelamos, fazemo-lo num arrufo do momento, uma ação que logo saneamos sem contemplações, porque não queremos ficar retratados como arruaceiros malucos.
A passividade dos desconhecidos sentados à minha direita e à minha frente, mostraram-me o quanto sou influenciável pela aprovação ou reprovação alheia, o quanto me deixo tolher pela opinião dos meus pares. O meu discurso é um e a minha ação é outra. E como eu, muitos.
E a arte é, numa das suas possíveis definições, esta capacidade de criar desconforto, vergonha e culpa, de transbordar para além das fronteiras físicas de uma sala, de um texto escrito e interpretado por atores, da cenografia, em cada objeto montado e mexido num palco. A capacidade de roer e escarafunchar mesmo quando o objeto artístico já ali não está e apenas vive na memória.
E desta peça de arte, percebo que, no fim - caramba - é mesmo normal, expectável, «que eles passem», mesmo que eu sussurre «Não passarão!!»