Num direto televisivo de um canal argentino neste início do mundial no Qatar, um grupo de adeptos argentinos, que rodeava o jornalista de serviço, começou a entoar um cântico que rapidamente se demonstrou ser um cântico racista e transfóbico dirigido à seleção francesa de futebol masculino.
Um cântico ensaiado, estudado, com direito a rimas e tudo. Uma pequena obra de arte poética racista.
O repórter, percebendo o conteúdo lírico da arte em questão, tirou-lhes a antena, o microfone. Mas tarde demais.
Apanhando a notícia do sucedido em órgãos de comunicação portugueses, surpresa das surpresas, a maioria dos comentários, embora recriminassem o sucedido (antagonismos com a seleção francesa justificam esta benevolência), justificavam os cânticos com um simples: «É mau, mas é verdade.»
No geral da ofensa, o facto dos jogadores franceses serem maioritariamente negros, era sinónimo de virem todos de Angola (não serem franceses). No entanto, embora os cânticos visassem a seleção francesa, tinham como alvo particular o jogador Kylian Mbappé. Dele, referiam o facto de os pais serem de origem nigeriana e camaronesa e dele ainda assim ser considerado francês. Faziam ainda referência ao rumor do jogador namorar com uma mulher transsexual (em termos que nem uma criança do primeiro ciclo acha adequados).
Uma aberração ofensiva que ainda assim ecoava positivamente por estas bandas. Lia aqueles comentários e pensava como a distribuição de melanina tinha um tal poder de limitar fronteiras, excluir cidadãos, ostracizar uns e, paradoxalmente, incluir outros sem reservas. A melanina tinha o poder de incluir ou excluir alguém destas comunidades imaginadas que são os nossos países (países ocidentais), como se países, comunidades fossem clubes privados com regras dúbias, bares de jogo clandestino numa cave bafienta.
Mbappé nasceu em França, é cidadão francês. Os pais nasceram fora de França e isso parece ser fator de preocupação para os racistas de serviço. No entanto, o que é isso de ser daqui ou dali? Até onde tem a árvore genealógica de recuar para alguém ser considerado de determinado sítio?
Se o teu primo branco nasce em França dos teus tios portugueses, foi registado em França, tu dizes que ele é francês, mas se Mbappé nasce em França, filho de pais nigeriano e camaronês, tu tratas de o excluir automaticamente do país França (um cidadão de lado nenhum ou um cidadão de uma geral África).
Claro que não há preocupação com os familiares diretos de Griezmann (também jogador da seleção francesa). Griezmann (graças a deus) foi presenteado com uma menor distribuição de melanina. Interessa lá saber de onde diabo vieram os pais. O caso não se coloca, mesmo que os ascendentes do jogador não sejam franceses.
Há uma exclusão automática de uma comunidade baseada unicamente no tom de pele. E se te perguntam: és de onde? E respondes França, Portugal, Espanha ou Itália, dependendo da tua melanina, pode surgir a pergunta sequente à tua óbvia resposta: Mas de onde és MESMO?
E o tempo passa e isto é tudo tão (e cada vez mais) estapafúrdio. Não se coloca a questão para estes adeptos dos jogadores terem ou não qualidades como jogadores, na elaboração dos seus cânticos de apoio (?) à sua seleção. No meio de uma falta de noção e empatia (numa quase psicopatia), seguem a opção (que não deveria sequer existir) da ofensa racial, da ofensa sexual, reduzindo o adepto de futebol a um ser grunho estereotipado.
Mbappé, devido a ofensas racistas no passado, tinha já colocado a possibilidade de abandonar a seleção francesa. E assim são os bullies, sabem onde apertar para fazer doer mais. Perpetuam um ciclo de ofensas, solidificam (mesmo que inadvertidamente) movimentos nacionalistas racistas e xenófobos, deixando para trás um mundo onde nenhum cidadão empático gostaria de viver. Um rasto de destruição.
E mesmo dentro de portas dessa comunidade, quantos seres humanos não passaram de incluídos a excluídos dependendo dos resultados das suas atividades?! De português de gema a africano de lado nenhum se o golo entra ou não entra, se foi decisivo para a vitória ou se, pelo contrário, foi decisivo para a derrota.
E baseamos as fronteiras de um país, a pertença a uma comunidade nestas migalhas de coisa nenhuma, fazendo cidadãos viverem uma vida de ostracismo, sentimento de não pertença, tudo porque a melanina não se enquadra na nossa paleta de cores pré estabelecidas.
Num evento desportivo já inqualificável por falta de adjetivos adequados, isto é apenas mais um parágrafo no Mau Demais.
O mundo é um lugar imenso e simultaneamente uma pequena vilória provinciana. Sabemos o que certas celebridades do outro lado do mundo comem e bebem, de que gostam, de que falam, com quem fazem amor e a quem odeiam e sabemo-lo como qualquer bom coscuvilheiro da aldeia. Mas, num paradoxo com esta aparente proximidade (de um eu, tu e eles, transformados com facilidade num nós), é possível que alguém se esfume sem deixar rasto, que alguém que ontem era, hoje já não o seja. É possível que um Ele se mantenha um Ele, longe e teimosamente afastado de Nós.
Sigmund Krähe é um compositor alemão. Quando digo é, no presente do indicativo, estou a dar um grande salto de fé assumindo que ainda vive, que respira entre nós.
Até há um ano e tal atrás, seria possível encontrar no youtube centenas de composições suas, num canal em nome próprio, que não cheguei a conhecer. A maioria das composições são para órgão de tubos – dramáticas, obscuras, mas não demasiado rebuscadas. Algumas pecarão mesmo pela simplicidade, assemelhando-se a bandas sonoras de filmes de mistério e fantasia. Demasiado sintetizadas, num registo já ouvido? Talvez. Mas ainda assim com um travo épico que, pessoalmente, me fascina.
Nada de novo no mundo. Um artista a usar uma plataforma global para difundir a sua música. Um nome associado a centenas de registos musicais e nada mais.
Até há um ano. De um dia para o outro, Sigmund e a sua música desapareceram. O canal desapareceu do Youtube, apagado pelo autor ou pela plataforma. A partir daí começa a especulação: o que acontecera a Krähe e à sua música?
Como pode alguém ser e não ser? Ser apenas um nome, ser centenas de peças musicais, ser ouvido por milhares de pessoas, ser comentado, apreciado e também desdenhado e, num segundo, deixar de o ser? Deixar de ser para Nós, deixar de existir enquanto ser global, enquanto artista, desvanecer como um Houdini?
Uma das minhas professoras de mestrado, falando dos escritos dos alunos mantidos na «gaveta», diz-nos provocadoramente que aquilo que fazemos não é arte. E não fala da qualidade do que escrevemos, pois desconhece se a temos ou não ou sequer se tal coisa, a qualidade, é coisa quantificável.
Do que ela fala é da necessidade de haver uma comunidade que usufrui, que está envolvida na experiência, no ritual de fruição de uma peça de arte. Sem o outro não há arte.
Sigmund Krähe tinha o outro, o seu público, fazia arte, mas decidiu (decidiram por ele, morreu, enlouqueceu, aborreceu-se?) subtrair o estatuto de arte àquilo que fazia. Desaparecer com tudo. Sem o seu público, acabou-se a arte.
Acabou-se?
Bem, muitos dos seus seguidores tinham guardado uma substancial parte das suas composições e, chocados com a descoberta do canal apagado, com o passar dos dias e nada acontecer (um regresso noutro canal, noutra plataforma, qualquer coisa), decidiram criar canais para fazer reupload das músicas que tinham guardado para usufruto pessoal.
Um ano passado, são vários os canais com a música de Krähe e ninguém a vir reclamar direitos autorais da mesma. A arte perde o direito à maternidade mal nasce, torna-se pública, anda de mãos em mãos, corpo perdido numa orgia.
Mas, será correto? Se a vontade de um autor é desaparecer, ele e a sua arte, será correto ressuscitá-la para o mundo contra a sua vontade?
Pergunto sem malícia, sem ter uma resposta em mente. Porque se escrevo sobre isto é porque ouvi as músicas lançadas ao mundo por outras mãos que não as do compositor. Mas há em mim o egoísmo de achar que aquilo que faço, que crio, embora precisando dos outros para SER, é maternalmente meu.
Olho constantemente para trás, para o que foi, dissecando os caminhos tomados, tentando perceber a interceção perdida, o cruzamento onde tomei a saída errada, a placa de sinalização que não li corretamente, a soma das pequenas coisas que me trouxeram aqui.
Agora, cheguei àquele sítio donde se vislumbra a juventude já lá longe, onde se revisita numa obsessão as músicas do passado e se sente um sofrimento indiscritível. E o indiscritível não é hipérbole, não é adjetivo metido sem contemplação – é coisa literal. Não sei realmente descrever os sentimentos que as memórias me provocam: ao rever a capa de um livro que comprei há vinte anos, ao falar de um episódio de vida que aconteceu há muito, ao falar de um local ao qual não regressei, ao ouvir as músicas que me destabilizavam e faziam vibrar naquela altura. Não é nostalgia, não é saudade, não é tristeza no sentido «duro» da palavra. É…
Há uns bons anos li o livro «Os anjos maus» de Éric Jourdan, um livro escrito pelo autor aos 16 anos. E se alguém quer perceber de que se alimenta esta angústia do envelhecer, bastará ler alguma coisa escrita por alguém muito jovem.
O envelhecer, este constante olhar para trás, não tem nada a ver com a perda da beleza, da firmeza, da decadência da parte física inerente ao passar dos anos (minto, tem algo a ver, mas não tanto assim), mas tem a ver com a perda de algo ainda maior, algo incomensuravelmente mais grandioso.
Não será o livro mais bem escrito que lerão, afinal foi um puto de 16 anos que o escreveu e a juventude é uma ode ao exagero, à impulsividade, aos extremos. A juventude é coisa sem elegância, sem respeito pelas normas, é ainda coisa de uma extrema ingenuidade do que ao viver diz respeito.
Mas é também, acima de tudo, um furor, um fulgor, uma paixão, um arrebatamento, um frenesi interior, uma crença in extremis no que está para vir.
Ler algo escrito por um adolescente ou jovem adulto é perceber que nenhum homem ou mulher de trinta, quarenta, cinquenta anos conseguirá replicar aquilo, conseguirá fazer transpirar para o papel a exaltação que é viver aos 16 anos. E todas as tentativas de trazermos até nós esta juventude perdida serão sempre ridículas, um plágio que nem plágio será de tão mal ataviado que é, uma crise de meia-idade grotesca, uma comédia de enganos para fazer rir à gargalhada o espetador.
E se ao ouvir aquele álbum que comprei há vinte e cinco anos as lágrimas me assomam aos olhos, não é pelos cabelos brancos semeados aleatoriamente, sem elegância, na minha cabeça, ou pelas rugas de expressão que imprimem um ar de cansaço à minha cara assimétrica, é por perceber que nunca, nunca mais irei ter fé no que está para vir, uma crença inabalável no viver, uma expetativa raiada de mistério, a paixão necessária para enfrentar o dia de amanhã.
E de todos os jovens que vejo, sinto-lhes inveja.
Os anjos Maus, Éric Jourdan, edição Bico de Pena, 2009.
Há uns 25 anos, entrava numa sala de cinema numa qualquer tarde de uma dia de semana, no Monumental Saldanha, sozinha, para ver um filme. Estudava cinema na Escola Superior de Teatro e Cinema e, embora o cinema me fascinasse, o que realmente me tinha levado àquela escolha académica peculiar, fora a escrita. Alguma coisa que justificasse a ânsia, a necessidade, mas também a alegria de escrever.
Estava naquele dia, naquela sala de cinema, porque o meu professor de argumento aconselhara aos seus alunos um livro de screenwriting e aquele filme, o que me levara ali, tinha o argumento desse mesmo autor e argumentista.
Lera e relera o livro Story de Robert McKee e agora estava ali uma oportunidade de ver se o genial autor Robert era também um argumentista em condições. Embora, atenção, a capacidade de ensinar não tenha de estar em perfeita ligação cósmica com a capacidade de executar e o contrário também se aplica. Nem todo o executante será um bom professor na sua área.
Story, Robert McKee (1997)
O filme “Wag the Dog – Manobras na Casa Branca”, era um filme que tinha como premissa inicial, um presidente, uma presidência de uma país, que cria uma guerra fictícia para desviar a atenção dos eleitores de um escândalo sexual, perto das eleições, um momento de extrema importância política. Temos uma guerra em estúdio, um herói de guerra, uma música de guerra, tudo a que um povo tem direito.
Trailer de Wag the Dog - Manobras na Casa Branca (1997)
O filme, com um elenco de luxo, ainda sob o ponto de vista atual, tinha quatro espetadores naquela sessão da tarde e daquele dia fica o insólito destes quatro (eu incluída) terem tentado sair da sala depois do filme ter acabado para logo descobrirmos que a porta da sala estava trancada. Nada de pânico, só gargalhadas, porque depois daquele filme, daquela história, do absurdo que todos os quatro pressentíamos que realmente não o era, mais nada restava senão rir. Seria possível descobrir o cinismo das nações, dos governos, num filme? Seria possível que o riso fosse de nervoso, um certo desconforto instalado, mais do que hilaridade espontânea?
Pois claro que era possível. A caminho dos meus vinte anos eu sabia que o mundo era bem mais do que aquilo que eu conseguia ver, mas acho que foram precisos mais de vinte anos em cima para perceber que, apesar de tudo, o que via e pressentia ainda se revestia de imensa importância.
Numa Europa em guerra, não faltam especialistas a observarem cruamente o conflito. Os EUA estão numa senda de cercar a Rússia, arranjando aliados fronteiriços, erigindo nestes novos locais posições privilegiadas, que deixarão ao Rússia numa posição desfavorecida. Uma pressão, que levou Putin a uma estratégia de proteção através do ataque. Ou… Putin é apenas um expansionista, um imperialista que pretende expandir os seus domínios e não se deixar dominar pelos imperialistas ocidentais. E a partir daqui soma-se mais uma dúzia de variações, algumas mirabolantes, outras com alguma coerência.
Linhas, linhas e mais linhas escritas. Horas de televisão, com argumentos de lado a lado. E se tudo, de um ponto de vista estratégico, como se jogássemos à batalha naval, faz todo o sentido, na prática é apenas obsceno. E, lamento, todas estas pessoas que falam de estratégia, peritos, militares, também o são. Obscenos!
E as pessoas? Os civis? Como diabo não entram as pessoas nas equações, nas análises, nos balanços analíticos daqueles que decidem e daqueles que analisam?
As pessoas entram nesta equação como números, em subtrações frias. Hoje, ontem e em todos os conflitos de que há memória. Mortos, feridos, refugiados, deslocados, migrantes, esfomeados, viúvos, órfãos, desempregados, desesperados.
Motivada por esta despersonalização dos conflitos, pela realidade das guerras “lá longe”, mas que pressenti que poderiam ser “cá perto”, por perceber que na realidade o lá longe e o cá perto não fazia qualquer diferença, porque as vítimas da crueldade da guerra eram sempre as mesmas, pessoas, o ser humano banal na sua luta diária banal, comecei a escrever o que demoraria mais de uma década a acabar – um livro sobre uma guerra em território nacional. Pelo meio, Susan Sontag, no seu Olhando o sofrimento dos outros faz-me perceber que, por mais que me esforce, não perceberei, jamais, o que as pessoas, aqueles que estão no meio de um conflito, sofrem, sentem. Perceber a minha ignorância, dá-me humildade. E a humildade anda de mãos dadas com a empatia.
“Um número e assim era a vida humana por aqueles dias. Um mero número numa equação que usava mais subtrações do que adições. Pensar que cada uma daquelas pessoas ali sentada a comer, cada uma daquelas pessoas lá fora, desde o recém-nascido aos idosos, homens e mulheres, civis e militares, rebeldes e não rebeldes, todos eles, sem exceção, nada mais eram do que números. E numa fração de segundo poderiam transfigurar-se de um Um, num Zero, sendo que o transtorno causado por essa mudança não era para ali chamado. As equações não contemplavam sentimentos, os números não tinham nome nem passado e, claro, os Zeros nem futuro tinham.»
"Era darem-lhe uma malha, chicoteá-lo, depois estrafegá-lo, regá-lo com gasolina e pegar-lhe fogo."
As palavras foram da D. Maria, mulher de 91 anos. Frágil, pouco mais de um metro e meio de um corpo delgado e em curva descendente, apoiada nas suas canadianas de estimação, mas sempre de língua afiada e respostas aguçadas que lhe fogem da boca como balas numa rajada de metralhadora.
As palavras raivosas, desta vez, tinham sido motivada pelas imagens da guerra na televisão da sala de espera. Crianças mortas, casas destruídas, caos semeado, o medo a ampliá-lo e os meios de comunicação a sorver caos e medo numa ânsia vampírica, esfomeada, sem escrúpulos.
No centro da fúria homicida da Dona Maria estava Putin, o arqui-inimigo, o anti-cristo.
Ao ouvir as suas palavras - mata-se o vilão e acaba-se a guerra - pensei em como a violência vive dentro de cada um de nós.
Durante o dia, este e os últimos quinze, não passou um par de horas que alguém não tenha sugerido limpar o sebo ao Putin. Mas também não passou nenhum a mais para além desse referido tempo, em que essa sugestão de homicídio não tenha vindo acompanhada de detalhes requintados de malvadez.
Matar não chega. Acabar com a suposta fonte do mal não basta. Queremos sangue, queremos dor, queremos lágrimas de arrependimento, queremos ver a morte estampada no rosto antes da mesma se instalar, queremos a redução do outro a um nada. Menos do que isso...
Não chega.
A guerra, em última análise, é talvez a mais verdadeira expressão do que é ser-se humano. A ideia de que a violência, a capacidade de matar, é anti natural, uma espécie de degeneração da verdadeira essência humana, não podia estar mais longe da verdade.
Tentamos pacificar-nos, fazer crescer a empatia, semear e fazer germinar a benevolência, olhar o outro como nos olhamos a nós... Mas é um esforço. Séculos de esforço. Num primeiro impulso, quando a revolta irrompe e cresce luxuriante, o que nos vem à cabeça num primeiro instante, o impulso sem filtro, o instinto primário, é a violência. Somos isto.
Grandes desgraças históricas teriam sido evitadas se o mundo da arte não fosse tão elitista e seletivo.
Hitler sonhava ser pintor, considerava-se, acima de tudo um artista. A pintura era o seu refúgio, o seu sonho de vida. Se o menino não tivesse sido recusado duas vezes na academia de belas artes de Viena, talvez agora a história do século XX fosse radicalmente diferente. Veríamos uns quadros medíocres do menino nuns quantos museus, talvez o menino com o tempo até se aprimorasse (já vi pinturas piores) e o holocausto, a guerra, seriam coisas remetidas à ficção, porque um artista feliz reprime ou transforma o facínora que por lá também habita. Todo o lado sombrio seria transportado para pinceladas melancólicas numa tela, o descontentamento diluído em tinta.
Adolf Hitler, 1912
E, verdade seja dita, aquele estilo, aquele cabelinho lambido para o lado e o bigode (não posso categorizar porque só me surgem comparações de estilismo pubiano), estão melhor para um artista do que para um ditador.
Maldito júri da academia, malditos elitistas armados em bons...
Depois, temos o nosso pequeno exemplo nacional. O sonho do Dr. Sapo de Loiça era ser romancista. Uns quantos livros editados, sem nunca conseguir chegar à pujança de vendas do Dan Brown lusitano (nem pouco mais ou menos).
Não fossemos nós leitores tão esquisitos (até nem somos, papamos quase tudo), não fossem as editoras tão elitista, remetendo o Dr. Sapo de Loiça para edições de segunda categoria, e também nós escreveríamos uma história diferente nos anais da história do ano 2021 português.
Caros eruditos que têm o poder de decisão nas mãos, lembrem-se: mais vale um artista de meia tigela (com tantos que os há, mais um menos um), do que um aspirante a ditador.
Deixai os meninos serem escritores, pintores, escultores, pianistas, compositores, bailarinos, realizadores. A mediocridade artística será de somenos importância quando comparada com o estilhaçar de uma sociedade, a morte da empatia, a frustração transformada em fúria.
Em adolescente ouvia esta música e vibrava sem perceber o seu essencial sentido. A tormenta da voz chegava, mesmo sem o entendimento da tormenta da letra.
Alice in Chains - Junkhead (Dirt - 1992)
Estudei num meio artístico, de à vontade em experimentar coisas diferentes, mas a minha educação ou tão simplesmente a minha personalidade desajustada do meio onde estava inserida, tornara-me rígida, muito utópica na maneira de fruir as coisas. Lembro-me de dizer a um colega de faculdade que viver, amar, deveria ser experiência narcótica suficiente, que a vida tinha mecanismos para nos levar ao êxtase sem necessidade de adicionar qualquer substância extra. Esta lembrança faz-me sorrir e praguejar sozinha.
Assim, no meio de um louco, desgovernado e típico ambiente adolescente e pré-adulto, eu era uma exemplar exceção. Eu não bebia, não fumava e não fodia. Não frequentava as festas deles porque não há nada pior do que estar sóbrio no meio do delírio alcoólico ou narcótico. Honestamente, arrependo-me. Sempre fui de uma ingenuidade confrangedora.
Hoje, a caminho da meia idade, percebo que todos temos uma qualquer droga de eleição, por muito obscura e distorcida que ela possa ser. Mesmo quando a vemos com olhinhos inocentes e não a chamamos por droga e tal apelido nos afronta.
Nos tempos que correm, confinados em casa ou tentando seguir com uma rotina embrulhada em medos, onde ações básicas, de elementar necessidade, se tornam em manobras de risco dignas de um filme de ação, rimos dos memes da velhinha que pede vinho à janela num cartaz, rimos das piadas da quarentena, dos excessos cometidos para acalmar este desassossego e medo interior. Excesssos alimentares, excessos alcoólicos. O consumo de álcool tornou-se uma droga aceitável, o medicamento do apaziguamento do desconforto que ninguém criticará, tornou-se droga fashion e fotografável.
Não por estas características, mas pela minha mentalidade muito pouco transgressora, esta é a minha droga de escolha.
É como uma amarra que se solta, mas sem que nos tornemos completamente desamarrados, uma descompressão que se sente, sem que se deixe de estar sufocado. Claro está que beber será como o uso de qualquer outra droga. Os excessos levarão, inevitavelmente, a uma adição em que o prazer é substituido pela necessidade.
Enquanto houver prazer, o mundo será, por um par de horas à noite, um sítio menos perigoso, haverá esperança, uma solução ao virar da esquina.
E entre gargalhadas, ideias malucas, mas surpreendentemente fantásticas, tomarão forma, ganharão vida e, com alguma sorte, haverá na sobriedade das restantes 22 horas, força suficiente para as colocar em prática.
Há meia dúzia de dias, Pedro Ferraz da Costa, presidente do Fórum para a Competitividade, veio dizer que os portugueses não queriam trabalhar. Há vagas de emprego por preencher, há desempregados, logo a conclusão «óbvia» para o homem é que «as pessoas não querem trabalhar». Não há direito a análise do tipo das ofertas de emprego (salário oferecido versus competências exigidas), condições laborais oferecidas pelos empregadores com dificuldade em contratar, análise dos desempregados que procuram emprego e suas ambições/competências e adequação às ofertas de vagas por preencher. Isso é análise a mais quando se pode simplesmente saltar para uma conclusão precipitada.
Não querendo aprofundar-me sobre este assunto, também vou na corrente e salto para uma conclusão, quiçá, precipitada: uma parte substancial dos empregadores parece acreditar, talvez embalados pela cultura dominante deste século XXI, que o emprego, em si, é uma benfeitoria que oferecem aos seus potenciais colaboradores. Ter um emprego aparece como uma regalia por si só e pedir um salário justo, adequado às competências exigidas, é uma espécie de afronta que é feita aos já muito caridosos empregadores. O «se não queres há mais quem queira» é o desenlace fatal para aqueles que ousam questionar.
De certa forma, caminhamos para uma espécie de escravatura dos tempos modernos. As grilhetas de hoje não são físicas, não estamos acorrentados contra a nossa vontade ou chicoteados por vis capatazes, mas somos agrilhoados pelas necessidades financeiras que se impõem sem dó nem piedade. Assim, há uma sujeição a empregos mal remunerados, a abusos laborais vários e a não sujeição a tal coisa é vista como preguiça, falta de vontade de trabalhar.
Juntando a esta situação, aparece ainda a subversão de algo que nasceu com um intuito francamente positivo, mas que hoje é usado como uma espécie de eufemismo para trabalho não remunerado. O voluntariado agora é palavra usada a torto e a direito por organismos que promovem eventos que geram lucros tremendos e que, ainda assim, empregam centenas de pessoas a custo zero.
Trabalhar de graça no Rock in Rio, no Web Summit ou no próximo Festival Eurovisão da Canção 2018, a troco de «diversão e uma t-shirt», exigindo, ainda assim, aos candidatos competências várias, é uma afronta ao que o voluntariado deveria ser. É ainda uma forma enviesada de transformar, na mente das pessoas, o trabalho e sua justa compensação, numa oferta de trabalho pelo simples gosto de trabalhar, sem necessidade acrescida de qualquer outra compensação.
A garantia de diversão transformou-se assim, numa espécie de moeda de pagamento do século XXI, a malga de comida do final da jornada de trabalho escravo dos tempos modernos.
Entre estágios não remunerados ou promovidos pelo IEFP, salários desadequados à função e competências exigidas e o voluntariado degenerado, há que se trabalhar sob pena de sermos catalogados de preguiçosos e de só querermos boa vida.
Verões de fogo e outonos de fumarada. Em poucas palavras se pode resumir os vícios e vicissitudes de uma localidade. A minha. Não há povo que tanto vibre com uma caixa de fósforos na mão. Talvez as minhas palavras soem a exagero, mas há quase uma certa compulsão associada, algo de patológico, nesta vontade de fazer fogo.
Depois da destruição dos fogos nos últimos meses, depois da perda irreparável de vidas, seria de esperar um certo refreamento, mas não. Sendo a proibição de fazer queimadas prolongada até dia 15 de novembro, ao sair de casa pela manhã no dia 16, toda a localidade cheirava a queimado, no ar pairava uma bruma de fumo que fazia lembrar nevoeiro invernal, mas a intoxicação das vias respiratórias não enganava: não havia nada de lírico nas brumas daquela manhã. Era uma massa de fumo compacta proveniente de dezenas de queimadas. Por entre a irritação, confesso que me ri sozinha no carro. Imaginei dezenas de pessoas de fósforo na mão, aguardando a meia noite, para poderem atear, qual drogado em ressaca, a sua fogueirinha na horta.
Mas triste foi esse dia para os ressacados da aldeia. Nesse final de tarde saiu a notícia do prolongamento da proibição até dia 23. Lá tiveram de guardar os fósforos na gaveta. Mais uma semana de puro sofrimento, para logo o cenário das brumas matinais se repetir dia 24.
Não se conseguia andar no exterior. No recreio da escola do meu filho, a massa de fumo pairava incomodativa e o miúdo queixava-se: mãe, cheira a queimado. Cheira mal.
O fumo deste tipo de queimadas acaba por, de certa forma, ser mais incomodativo do que o dos incêndios de verão. São fogueiras mais pequenas, o fumo circula mais baixo, envolvendo tudo e todos.
O dia de chuva de hoje acabou com a festa, mas sempre já tiveram uns quantos dias para se entreter.
Agora falando da origem das queimas: há muitos detritos provenientes dos quintais e hortas (folhas secas, galhos, ramos provenientes das podas, etc.) Eu também tenho um quintal e um terreno com árvores de fruto, também por aqui há muita vegetação que virou detrito. Mas não seria mais lógico reservar um pequeno espaço para colocar esses despojos, de forma a que estes se fossem deteriorando naturalmente? Uma pilha de detritos orgânicos acaba por se transformar em compostagem, em adubo orgânico. Todos os anos, na primavera, vou ao meu monte de detritos e da base, com uma enxada, vou puxando a terra que se foi formando e que funciona como adubo natural para as plantas. Para quê esta fúria pela queima, se a natureza trabalha tão eficientemente mesmo sem a nossa intervenção?
Talvez a motivação seja mais da ordem da tradição e do vício do que da praticabilidade e benefícios do ato em si.
Prossigo a leitura do segundo volume de «A minha luta» de Karl Ove Knaurgård. Fenómeno editorial quando foi lançado, é fácil perceber o que causa esta atração por esta obra. Temos uma obra literária que se aproxima do leitor como se este, de certa forma, bisbilhotasse inadvertidamente e à socapa os diários de alguém que lhe é próximo. Karl Ove fala da sua vida, desde a infância à idade adulta, a morte do seu pai, a família, o nascimento dos filhos, a luta pela criação literária e a conciliação disso com a rotina de um homem casado com filhos.
Não se poderá chamar a este conjunto de quatro livros uma obra de ficção, mas também a classificação de autobiografia não lhe assenta com graciosidade. A obra é escrita como um desabafo, uma conversa com um Eu imaginário, e segue todos os preceitos de uma divagação sem normas, sem estrutura aparente, sem qualquer rigidez narrativa. Essa forma despojada de contar a sua história, faz com que ocorram todos aqueles tiques (propositados, certamente) de quando falamos com alguém muito próximo e lhe contamos alguma história — começamos a contar um qualquer episódio, mas facilmente nos perdemos em algum detalhe que nos transporta para um episódio totalmente diferente, até nos apercebermos que nos afastamos do nosso intento inicial e regressarmos.
A narrativa de Karl Ove está cheia disto, desta divagação que nos faz saltar da história de uma vizinha russa meia louca que ele encontra nas escadas do prédio para uma história passada há cinco anos. Este estratagema incute ao leitor a forte impressão de não estar a ler um livro, mas a ter uma conversa com o autor, transmite ainda a sensação da genuinidade daquilo que lhe é ali contado, como se ali nos estivesse a ser servido um Karl Ove que conseguimos espreitar, dissecar até ao âmago: conhecer fraquezas, taras, sonhos, frustrações, ambições. Tudo aquilo que nos torna humanos, mas que muitas vezes revestimos com uma grossa camada de verniz para melhor podermos viver em sociedade.
Havia apenas, por um lado, o pequeno personagem a que a auto-anulação me reduzia e, do outro lado, a minha extrema distância solitária. Entre estes dois pólos, decorria a minha vida de todos os dias. Talvez fosse por isso que se tornava para mim tão duro vivê-la. O dia-a-dia, com as suas obrigações e rotinas, era qualquer coisa que eu tinha de suportar, qualquer coisa que não me satisfazia, qualquer coisa que não tinha sentido para mim e não em fazia feliz. […] Portanto, a vida que eu vivia não era a minha própria vida. Tentava torná-la minha, era essa a minha luta, porque era sem dúvida isso que queria — mas fracassava, o desejo com que ansiava por outra coisa minava todos os meus esforços. Página 68, A minha luta:2
No entanto, aquilo que é o mais atraente nesta obra, é também aquilo que ela tem de mais irritante. A verdade é que não estamos (falo de mim, enquanto leitora) totalmente preparados para ler, a cru, todo aquele tipo de pensamentos que também temos, mas que nunca, jamais, em tempo algum confessamos a alguém. E quando aquele que nos confessa os inconfessáveis é alguém real, um ser humano e não uma personagem de ficção, há um certo choque nessa leitura, um desconforto.
O facto de o autor confessar a atração sexual por várias mulheres quando empurra estrada abaixo o carrinho com a sua filha e tendo em casa a mulher à espera com a sua bebé, é desconcertante. Quando, estando descansado a ler um livro num café e apesar de ter passado muito da hora em que prometera voltar a casa, admite que não lhe apetece regressar para junto da família, é revoltante. E quando, perante um certo olhar recriminatório de uma empregada da caixa do supermercado (por não ter comprado um saco de compras) ele diz que não se importava com o que aquela pessoa pensava dele, porque ela era gorda, tudo em mim, como leitora, sofre um certo choque.
E, de resto, que me importava o que a empregada pudesse pensar de mim? Era tão gorda. Página 102, A minha luta:2
Todos nós já tivemos pensamentos que surgem impulsionados por estereótipos e preconceitos vários. Antes de os confessarmos, esses pensamentos sofrem uma recriminação interna, porque os nossos códigos de ética e moral os refreiam. Jamais nos vemos a oralizar certas mediocridades que o nosso cérebro criou. Karl Ove fá-lo, como se tivéssemos um acesso privilegiado ao seu pensar antes de qualquer filtro ético atuar. E essa opção narrativa serve para expor as fragilidades, mas também as arrogâncias, os preconceitos. E se isso nos aproxima do autor como raramente nos aproximamos de alguém, sentimos ainda uma certa repulsa associada a essa aproximação. Ninguém é perfeito, sei-o, mas vê-lo escarrapachado assim, nas páginas de um livro, é desconfortável.
Se, por um lado, há originalidade na forma como Knaugård expõe a sua luta, por outro, por vezes sinto que seguimos um certo caminho de reality show, como se assistíssemos pacientemente a um personagem (que embora real, também tem muito de virtual) fechado dentro de uma casa, a viver a sua vida, com todas as grandezas e mesquinhices a que as vidas têm direito, tudo em frente aos nossos olhos.
E se essa sensação de exposição básica de reality show não vai aos extremos, é porque Karl Ove é hábil na sua criação literária. Consigo perceber o que ele pretende, consigo perceber o que ele me quer dizer, mas custa-me a aceitá-lo — «És como eu. Olha bem para ti. Não te esquives à observação. Não floreies o quadro com adereços desnecessários. Isto és tu e eu consigo vê-lo.»
A minha luta:2, Um homem apaixonado — Karl Ove Knausgard, editora Relógio d'Água.