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Quimeras e Utopias

Quimeras e Utopias

Excisão da empatia

Costumo dizer que não tenho livros preferidos, filmes preferidos, coisas preferidas no geral. No entanto, no que toca aos livros, embora nunca o nomeie como o meu livro preferido, o certo é que As Benevolentes de Jonathan Littell está-me sempre a aparecer à porta da memória, apesar de o ter lido uma única vez há 17 anos. Ainda não há muito tempo escrevi sobre ele para uma disciplina, onde o mote do texto era «O corpo que lê» e escolhi esta obra para falar sobre os efeitos físicos da sua leitura, pois, mesmo passados tantos anos, a perturbação persiste latente no meu corpo que envelhece.

Hoje, ao percorrer as notícias digitais de alguns meios de comunicação, lá apareceu ele novamente, a berrar-me dos fundilhos da memória. E o que diabo terá um livro escrito em francês por um americano há uma catrefada de anos a ver com as notícias do dia?

Precisamente… tudo.

Quando há quase duas décadas alguém me perguntava de que tratava aquela “bíblia” enorme que andava a ler e que eu transportava para todo o lado, a frase mais curta que encontrava e que parecia resumir tudo era que aquele livro era um manual de como transformar um ser humano num monstro.

Com a ação a passar-se durante a II guerra mundial, a história narrada na primeira pessoa pelo protagonista, um oficial das SS, vai-nos mostrando como os acontecimentos extremos de um conflito conseguem transformar um ser aparentemente banal, num ser sem escrúpulos, capaz de tudo.

No meu agora, sei que a minha sinopse da obra era infeliz. Não há monstros neste mundo. Quando, do alto da nossa facilidade, julgamos o outro que age de forma extrema, com a qual não nos conseguimos identificar, rotulamo-lo de monstro. Mas na realidade, aquelas pessoas, a matar, torturar, violar, são pessoas como eu. Ou quase.

E o quase reside na força devoradora dos conflitos. Os conflitos perpetuados, arrastados, a exposição prolongada de qualquer ser humano à violência, à subjugação e à indignidade leva a uma excisão da empatia que ainda se aloje dentro dessa pessoa. As guerras são como máquinas de amputar empatia, de criar bunkers de isolamento emocional.

No livro de Littell, o protagonista Maximillien Aue desfila da inocência de ser um jovem adulto, alegre, que se choca com a violência inusitada dos outros, que se enoja com os extremos a que alguns soldados se erguem, até chegar, também ele, ao topo do miradouro da vilania, da psicopatia. E ali, ao longo de quase 900 páginas, está o raio da explicação de tudo o que se passa e sempre se passou nas nossas sociedades modernas.

E quando fechei o livro, de mãos trémulas e mente agitada, a pergunta que se empunha era e continuará sempre a ser – estando eu ou qualquer uma das pessoas que conheço, expostos a tais níveis de violência, amputados pela raiz de qualquer empatia, identificação com o próximo, serei, também eu, capaz de chegar àqueles extremos? Matar, raptar, torturar, violar? Será a violência como uma doença contagiosa, um cancro que se metastiza por todos os elementos de um grupo social, apodrecendo tudo por onde passa?

E, claro, abandonando o espaço da ficção e lendo ou vendo as notícias, há sempre a tentação de defender um dos lados envolvidos num qualquer conflito. Normalmente a escolha é facilitada por questões muito simplistas. A identificação está sempre no topo da lista das nossas justificações clubísticas. Defendemos aqueles com quem nos identificamos mais, seja por razões de proximidade geográfica ou razões sociais e culturais (um dos lados do conflito tem um estilo de vida semelhante ao nosso, as suas atividades diárias são mais facilmente comparáveis com as nossas). E mesmo que nenhum dos grupos envolvidos no conflito leve a cabo ações defensáveis, a verdade é que acabamos por cair na armadilha de menorizar as ações dos nossos semelhantes e antagonizar e repreender severamente as ações do grupo oposto, mesmo que essas ações sejam uma réplica perfeita, um reflexo no espelho, das ações do seu oponente.

Nós, os espetadores, vemos o mundo de uma forma maniqueísta. Os bons e os maus, quando a dura verdade é que será muito difícil encontrar os bons onde já não há empatia e não podemos catalogar de forma simplista os outros de maus, porque talvez a maldade seja característica humana, um atributo como qualquer outro, uma espécie de gesto reflexo dos emocionalmente amputados.

Em suma, em mim há apenas desespero ao ver o que se passa à minha volta, porque neste filme não há super-heróis. Há apenas conflitos congeminados e alavancados por meia dúzia de pessoas, de parte a parte, que não sofrem diretamente o peso esmagador desses mesmos conflitos. A gula de poder, o narcisismo dos escolhidos a corroer cérebros e a criar zombies.

Mas há, também e acima de tudo, dúvidas.

Há mais de um ano, vi uma peça de teatro de Tiago Rodrigues, «Catarina e a beleza de matar fascistas». Tal como o livro de Littell, não a catalogarei como a minha peça de teatro favorita, mas ela volta, assalta-me a memória quase todos os meses. Escrevi sobre a peça na altura que a vi e, como num jogo de espelhos da realidade, também ela tem muito a ver com a atualidade. A de hoje e a das últimas décadas, porque a realidade é uma reciclagem histórica contínua. A porra da realidade não daria ficção, porque a repetição torna-a inverosímil e previsível.

Tiago Rodrigues, num texto com uma escrita brilhante, deixa o espetador a matutar nas questões da vida: até onde se pode ir para parar o mal, deter aqueles que pretendem restringir a liberdade de uma sociedade? Será legítimo, ético, usar violência para travar aqueles que, de alguma forma, também são violentos? Quais são os limites de ação de alguém que se defende de um ataque? E não haverá culpa pela propagação do mal, pela profusão da retórica fascista, da subjugação de um povo, da indignidade, da violência, se todo o ser humano se mantiver dentro do legal/ético/moral? Não será a inação uma forma de repressão e coadjuvação com o opressor?

E é neste difícil jogo de xadrez, entre empatia ou falta dela, territórios consagrados e territórios expurgados, liberdade e opressão, manipulação e subjugação, que se joga a vida humana e a paz no mundo.

E no fundo, o que será realmente isso da Paz no mundo?

Harmonia entre partes ou silêncio de uma das partes subjugadas?

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Catarina ou a beleza de matar fascistas, de Tiago Rodrigues

 

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As Benevolentes de Jonathan Littell, Dom Quixote, 2007. 

Teoria geral da relevância humana

«Quem são estas pessoas? Serão pessoas ou serão monstros?»

Navegando pela internet, pelas redes sociais, caindo em queda livre nos comentários de uma qualquer postagem, não será difícil a frase sair-me da boca. Uma pergunta para a qual sei a resposta, mas que ainda assim se escapa pela estupefação, embora os comportamentos, as palavras cruéis nada tenham de novo.

Ontem via no Instagram um desabafo de uma tradutora/promotora literária, que sigo nas redes. A pessoa em questão foi ao lançamento do livro «No meu Bairro», de Lúcia Vicente/Tiago M. e foi “apanhada” no turbilhão de ódio de uns quantos grunhos que por lá apareceram a manifestar-se.

Ora, desta frase anterior, corrijo a palavra “grunhos”, porque embora a tendência seja classificar o comportamento inadequado de alguém de uma forma mais reles, com adjetivos depreciativos, essa classificação como que isenta o outro de responsabilidade dos seus atos. Nunca se trata de monstros a fazer coisas monstruosas, tratam-se de seres humanos como eu a fazer coisas humanas, embora ações que são nutridas pelo ódio e pela falta de empatia. Corrijo ainda a palavra “manifestar-se”, porque toda a gente sabe que aqueles homens que invadiram um lançamento de um livro com um megafone não se estavam a manifestar, não reivindicavam nada. A natureza daqueles atos era outra.

Bem, o post da H., a tradutora/divulgadora literária, mostrava uns quantos screenshots de comentários sobre ela, debaixo de uma fotografia que lhe foi tirada por um dos manifestantes durante esse lançamento literário, onde o seu aspeto físico, a sua cor da pele eram usados como forma de enxovalhamento na forma mais cruel que se possa imaginar. Quando não há argumentos, há insultos e ali havia de tudo: racismo, xenofobia, misoginia, masculinidade tóxica (que de tão tóxica que era, envenenava qualquer resquício de empatia que aquelas pessoas poderiam ter dentro de si). Por momentos, aquilo que supostamente tinha movido aquelas pessoas a se manifestarem desaparecia. Sobravam apenas as palavras cruas e duras: gorda, mestiça, brasileira, fenótipo assim, fenótipo assado.

E ao ler aquilo, ao pensar como H. se deveria estar a sentir ao ler aquelas palavras, ao me sair da boca a frase «Que pessoas são estas que dizem estas coisas de uma forma tão cruel e com tanta ligeireza?», caiu-me no colo a contagem das vezes que tinha pronunciado a mesma frase num mero par de dias: comentários maldosos num grupo de partilha de leitura de livros, onde o que me pareceu um problema técnico da página foi classificado por algumas pessoas nos comentário como má vontade da administradora do grupo, logo ali prontamente classificada de desocupada, desempregada, divorciada, mal resolvida (com a carga sexual que tem sempre de ser trazida ao barulho e com todas as piadas foleiras associadas). Umas horas antes, falava com uns amigos americanos que descreviam como tinham sido enxovalhados por um fulano anti-vacinas quando, num grupo de expatriados, tinham apenas divulgado o calendário de vacinação da Covid 19 para maiores de 60 anos. Insultos e ameaças que os deixou perplexos pela desproporção da resposta a uma mera divulgação do SNS. Comentários à notícia do julgamento de Mamadou Ba, comentários à notícia de abertura de uma livraria feminista em Lisboa. Pequenos exemplos, numa longa lista, onde eram fáceis de perceber os tópicos que mais alarves chamava para os comentários. Palavras escritas para fazer doer, palavras como pedras, palavras que pretendiam humilhar pela brutalidade.

E ao ler centenas de frases pronunciadas no mundo virtual, escoltadas pela segurança de não terem sido ditas «cara a cara», mas sob a proteção da distância, de dedos que dedilham teclas num aparelho, ainda assim vem a pergunta: «Quem são estas pessoas? E porque é que dizem estas coisas?» 

E a resposta não é bonita, porque é óbvia. Não há qualquer grandeza na descoberta da Verdade, não há um Nós vs Os outros, Humanos vs Monstros. Aquelas pessoas que ali falam apenas procuram uma coisa, que quase todas as pessoas no mundo procuram também. Mas ao invés da procura ser interior ou junto daqueles que os rodeiam, há como que um estrebuchamento perante aquilo que não conseguem entender, perante aquilo que é acessível, mas quase nenhum ser humano consegue apreender:

 A nossa relevância no mundo não tem de ser espalhafatosa, não tem de ser notada pelos outros milhões de habitantes do planeta. O motor da nossa existência, aquilo que nos faz levantar de manhã e ter coragem de sair da cama, aquilo que leva milhares de pessoas a correrem riscos, a não desistirem, a procurarem segurança, alimento, amor, não tem de ser um evento global aplaudido e notado a uma escala nacional/internacional. E não se entender isto  a insignificância de todos nós , que apenas ganhamos importância junto daqueles que nos amam, através dos nossas ações, que, com sorte, nos podem fazer perdurar na memória daqueles que ainda hão de vir, não entender esta dado básico da engrenagem do mundo só nos traz solidão.

Aquela pessoa que destila ódio nos comentários está só. Aquela pessoa sabe que aquelas suas palavras amargas gerarão respostas e sabe ainda que se lá escrever um comentário «do bem», cheio de otimismo, positividade, alegria, a interação que irá granjear será nula. O ódio revolta, espicaça, gera contacto. O Bem, aquilo que se espera do bom ser humano, é como um dado adquirido, não é notado, questionado, aplaudido ou motivado. E, de uma forma retorcida, aquelas pessoas são vistas, são notadas, ficam momentaneamente menos sós. E no meio de muitas respostas amargas àquele que inicialmente insulta, vêm também aqueles que, como ele, procuram o seu lugar no mundo, ser relevantes, justificar a sua existência.

Os que odeiam conhecem-se, formam um grupo de ódio, odeiam juntos. E a solidão parece menor, encolhe um pouco e odiar será combustível existencial como outro qualquer.

Quando leio comentários assim, imagino de imediato aquela pessoa que destilou ódio, a que está do outro lado, numa ânsia a olhar para o telemóvel, aguardando o apito sonoro que o alerte da chegada de uma reação às suas palavras. E, estranhamente, sinto pena.

Com as redes sociais, é fácil sermos apanhados pela aparente grandeza da vida dos outros. O que fazem, onde vão, quem os rodeia, como são bonitos, o que conquistam, como são aplaudidos. Acontece-me a mim. Ao seguir aqueles que me são referência nas áreas que me são mais queridas, não há como não sentir o toque da insignificância, não há como a minha vida não ser vista sob o projetor da mediocridade. Mas ainda assim, há que respirar fundo e perceber que aquilo que me poderia fazer sentir relevante não virá através da diminuição dos outros, dos feitos dos outros, das palavras e ações dos outros. E talvez a relevância esteja aqui mesmo ao lado, no amor que poderei dar e receber daqueles que me são próximos, em existir com dignidade, criar memórias bonitas no meu filho, porque não é preciso um auditório cheio a aplaudir para a minha vida ou a de qualquer outra pessoa fazer sentido.

No fundo, ainda não sabemos lidar com aquilo que a evolução das espécies nos trouxe, enquanto espécie humana. Esta consciência de nós próprios, esta auto perceção da nossa pequenez, de sermos um entre milhões, num pequeno planeta num universo sem fim à vista, a aleatoriedade da vida, todas estas coisas fez-nos criar deuses, levou-nos à arte, transformou-nos em seres sociais, parte integrante de uma rede de ligações familiares e de amizade, fez-nos buscar a beleza, procurar o desconhecido, mas nenhuma destas coisas conseguiu ainda eliminar por completo a necessidade das perguntas:

«Qual o sentido da minha vida?»

«O que faço aqui?»

«Qual a minha relevância?

»Porquê continuar?»

E, sem qualquer espanto, compreendo que aqueles que odeiam, também eles, procurem todos os dias, incansavelmente, resposta para estas mesmas perguntas.

Isso… e colmatar a solidão.

Melanina

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Num direto televisivo de um canal argentino neste início do mundial no Qatar, um grupo de adeptos argentinos, que rodeava o jornalista de serviço, começou a entoar um cântico que rapidamente se demonstrou ser um cântico racista e transfóbico dirigido à seleção francesa de futebol masculino.

Um cântico ensaiado, estudado, com direito a rimas e tudo. Uma pequena obra de arte poética racista.

O repórter, percebendo o conteúdo lírico da arte em questão, tirou-lhes a antena, o microfone. Mas tarde demais.

Apanhando a notícia do sucedido em órgãos de comunicação portugueses, surpresa das surpresas, a maioria dos comentários, embora recriminassem o sucedido (antagonismos com a seleção francesa justificam esta benevolência), justificavam os cânticos com um simples: «É mau, mas é verdade.»

No geral da ofensa, o facto dos jogadores franceses serem maioritariamente negros, era sinónimo de virem todos de Angola (não serem franceses). No entanto, embora os cânticos visassem a seleção francesa, tinham como alvo particular o jogador Kylian Mbappé. Dele, referiam o facto de os pais serem de origem nigeriana e camaronesa e dele ainda assim ser considerado francês. Faziam ainda referência ao rumor do jogador namorar com uma mulher transsexual (em termos que nem uma criança do primeiro ciclo acha adequados).

Uma aberração ofensiva que ainda assim ecoava positivamente por estas bandas. Lia aqueles comentários e pensava como a distribuição de melanina tinha um tal poder de limitar fronteiras, excluir cidadãos, ostracizar uns e, paradoxalmente, incluir outros sem reservas. A melanina tinha o poder de incluir ou excluir alguém destas comunidades imaginadas que são os nossos países (países ocidentais), como se países, comunidades fossem clubes privados com regras dúbias, bares de jogo clandestino numa cave bafienta.

Mbappé nasceu em França, é cidadão francês. Os pais nasceram fora de França e isso parece ser fator de preocupação para os racistas de serviço. No entanto, o que é isso de ser daqui ou dali? Até onde tem a árvore genealógica de recuar para alguém ser considerado de determinado sítio?

Se o teu primo branco nasce em França dos teus tios portugueses, foi registado em França, tu dizes que ele é francês, mas se Mbappé nasce em França, filho de pais nigeriano e camaronês, tu tratas de o excluir automaticamente do país França (um cidadão de lado nenhum ou um cidadão de uma geral África).

Claro que não há preocupação com os familiares diretos de Griezmann (também jogador da seleção francesa). Griezmann (graças a deus) foi presenteado com uma menor distribuição de melanina. Interessa lá saber de onde diabo vieram os pais. O caso não se coloca, mesmo que os ascendentes do jogador não sejam franceses.

Há uma exclusão automática de uma comunidade baseada unicamente no tom de pele. E se te perguntam: és de onde? E respondes França, Portugal, Espanha ou Itália, dependendo da tua melanina, pode surgir a pergunta sequente à tua óbvia resposta: Mas de onde és MESMO?

E o tempo passa e isto é tudo tão (e cada vez mais) estapafúrdio. Não se coloca a questão para estes adeptos dos jogadores terem ou não qualidades como jogadores, na elaboração dos seus cânticos de apoio (?) à sua seleção. No meio de uma falta de noção e empatia (numa quase psicopatia), seguem a opção (que não deveria sequer existir) da ofensa racial, da ofensa sexual, reduzindo o adepto de futebol a um ser grunho estereotipado.

Mbappé, devido a ofensas racistas no passado, tinha já colocado a possibilidade de abandonar a seleção francesa. E assim são os bullies, sabem onde apertar para fazer doer mais. Perpetuam um ciclo de ofensas, solidificam (mesmo que inadvertidamente) movimentos nacionalistas racistas e xenófobos, deixando para trás um mundo onde nenhum cidadão empático gostaria de viver. Um rasto de destruição.

E mesmo dentro de portas dessa comunidade, quantos seres humanos não passaram de incluídos a excluídos dependendo dos resultados das suas atividades?! De português de gema a africano de lado nenhum se o golo entra ou não entra, se foi decisivo para a vitória ou se, pelo contrário, foi decisivo para a derrota.

E baseamos as fronteiras de um país, a pertença a uma comunidade nestas migalhas de coisa nenhuma, fazendo cidadãos viverem uma vida de ostracismo, sentimento de não pertença, tudo porque a melanina não se enquadra na nossa paleta de cores pré estabelecidas.  

Num evento desportivo já inqualificável por falta de adjetivos adequados, isto é apenas mais um parágrafo no Mau Demais.

Mais um gajo!

Fazia um scroll desinteressado no telemóvel numa rede social, quando me apareceu a notícia da divulgação do prémio Saramago 2022, entre polícia na universidade, Ronaldo, Qatar e a guerra na Ucrânia.

Abro a notícia do prémio literário e a primeira coisa que me saiu, alto e a bom som, sem filtro prévio, foi:

─ Mais um gajo!

Mas apontar o óbvio, mesmo usando dados que suportem esse óbvio, só traz dissabores. Não faltarão os guardiões da meritocracia, da justiça da qualidade, do valor do vencedor. Se ganhou, é porque era o melhor, dirão alguns.

Mas hoje acordei teimosa, por isso, aqui vai. Peguemos nos principais prémios literários portugueses e de língua portuguesa. Refiro-os como principais pois são os que terão um maior prémio monetário e são também os que trarão aos vencedores uma maior notoriedade.

Temos o Prémio Leya, com um valor de 50 mil euros, instituído desde 2008. Durante o período de 2008 a 2022 (sendo que em alguns anos o prémio, por decisão do júri, não foi entregue), ganharam o galardão 7 homens e 2 mulheres - 2 mulheres num total de 9 vencedores.

De notar que a própria composição do júri é também, a nível de género, bastante díspar. Começaram em 2008 com 6 homens e 1 mulher (7 membros) e hoje em dia estão com 5 homens e 2 mulheres.

Avancemos para o Prémio Saramago, que é um prémio bienal, atribuído desde 1999, com o valor de 40 mil euros. Dos 12 vencedores até à data, apenas 2 mulheres ganharam o prémio desde 1999. Ver o nome do vencedor de 2022, o escritor brasileiro Rafael Gallo, nem espanto causa. Surpreendente é ler os comentários à notícia do vencedor. A celeuma pelo anúncio não estava ligada ao facto de ser mais um homem a vencer o galardão, mas sim ser um escritor brasileiro.

Deste prémio, saliento ainda a composição dos membros do júri nesta última edição - 8 membros, sendo 5 deles homens. Esses 5 homens eram todos eles antigos vencedores do prémio em questão.

Para completar aqui este apanhado de prémios, refiro o prémio Oceanos, prémio que começou por se chamar Prémio Portugal Telecom e que é um prémio para autores de Língua Portuguesa, atribuído neste momento no Brasil, com o valor total de 250 mil reais (a distribuir entre os 3 primeiros lugares). Entre 2003 e 2021, dos 19 vencedores (primeiro lugar), apenas 3 mulheres conseguiram ganhar este prémio.

Remato com o Prémio Camões, prémio atribuído desde 1989, pelos governos de Portugal e Brasil, com o valor atual de 100 mil euros, pelo conjunto e importância da obra dos autores vencedores. Em 34 vencedores, temos 7 mulheres.

Extravasando as fronteiras da língua portuguesa e dos prémios para autores em língua portuguesa, deixo apenas os dados dos vencedores do Prémio Nobel da Literatura: 119 vencedores, 17 mulheres.

Ora, com esta pequena e singela análise não pretendo aferir que os vencedores de todos estes prémios durante todos estes anos não serão escritores capazes. Longe de mim sugerir tal coisa. Muitos deles são habitués das minhas estantes, muitos deles são presença constante nas notícias que leio, nos feeds das minhas redes sociais. Mas, tê-los a todos como presenças habituais nos meus mundos ficcionais, deixa-me um travo amargo na boca. Eu, mulher, consumo muita literatura escrita por homens. Eu, mulher, levo o meu tempo a ver o mundo pelos olhos de um homem, de muitos homens. Eu, mulher, consumo histórias sobre mulheres, escritas por homens.

─ Ah, mas são eles os melhores. Se ganharam, devem ser os melhores de todos os candidatos.

─ Serão?

Temos prémios literários decididos quase exclusivamente por homens e ganhos por homens. Temos publicações nas maiores editoras movidas por esses prémios, carreiras que se agigantam à conta desses prémios e o que sobra é uma visão unilateral do mundo, uma visão masculina do mundo. E o mais engraçado disto tudo, o mais estúpido disto tudo é que a maioria dos leitores, a maior percentagem daqueles que lê de um a mais livros por ano, é feminina.

No meu mestrado de Escrita Criativa na Faculdade de Letras em Coimbra, 80% dos alunos do meu curso são mulheres. Daqueles que querem escrever, daqueles que querem melhorar capacidades, procurar uma identidade literária e poli-la, 80% são mulheres. Mas mulheres também elas já afogadas em muita literatura masculina, possivelmente já moldadas por muitos anos a ver o mundo através de óculos masculinos.

E não deixo sugestões para uma mudança neste paradigma. Vislumbro apenas fragmentos da engrenagem por detrás desta gigante máquina que é o mundo editorial e mesmo assim consigo concluir que sou demasiado velha para acreditar em mudanças.

Foi assim, é assim e continuará assim.

 

Despojos de guerra - subtrações e adições

Há uns 25 anos, entrava numa sala de cinema numa qualquer tarde de uma dia de semana, no Monumental Saldanha, sozinha, para ver um filme. Estudava cinema na Escola Superior de Teatro e Cinema e, embora o cinema me fascinasse, o que realmente me tinha levado àquela escolha académica peculiar, fora a escrita. Alguma coisa que justificasse a ânsia, a necessidade, mas também a alegria de escrever.

Estava naquele dia, naquela sala de cinema, porque o meu professor de argumento aconselhara aos seus alunos um livro de screenwriting e aquele filme, o que me levara ali, tinha o argumento desse mesmo autor e argumentista.

Lera e relera o livro Story de Robert McKee e agora estava ali uma oportunidade de ver se o genial autor Robert era também um argumentista em condições. Embora, atenção, a capacidade de ensinar não tenha de estar em perfeita ligação cósmica com a capacidade de executar e o contrário também se aplica. Nem todo o executante será um bom professor na sua área.

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Story, Robert McKee (1997)

O filme “Wag the Dog – Manobras na Casa Branca”, era um filme que tinha como premissa inicial, um presidente, uma presidência de uma país, que cria uma guerra fictícia para desviar a atenção dos eleitores de um escândalo sexual, perto das eleições, um momento de extrema importância política. Temos uma guerra em estúdio, um herói de guerra, uma música de guerra, tudo a que um povo tem direito.

Trailer de Wag the Dog - Manobras na Casa Branca (1997)

O filme, com um elenco de luxo, ainda sob o ponto de vista atual, tinha quatro espetadores naquela sessão da tarde e daquele dia fica o insólito destes quatro (eu incluída) terem tentado sair da sala depois do filme ter acabado para logo descobrirmos que a porta da sala estava trancada. Nada de pânico, só gargalhadas, porque depois daquele filme, daquela história, do absurdo que todos os quatro pressentíamos que realmente não o era, mais nada restava senão rir. Seria possível descobrir o cinismo das nações, dos governos, num filme? Seria possível que o riso fosse de nervoso, um certo desconforto instalado, mais do que hilaridade espontânea?

Pois claro que era possível. A caminho dos meus vinte anos eu sabia que o mundo era bem mais do que aquilo que eu conseguia ver, mas acho que foram precisos mais de vinte anos em cima para perceber que, apesar de tudo, o que via e pressentia ainda se revestia de imensa importância.

Numa Europa em guerra, não faltam especialistas a observarem cruamente o conflito. Os EUA estão numa senda de cercar a Rússia, arranjando aliados fronteiriços, erigindo nestes novos locais posições privilegiadas, que deixarão ao Rússia numa posição desfavorecida. Uma pressão, que levou Putin a uma estratégia de proteção através do ataque. Ou… Putin é apenas um expansionista, um imperialista que pretende expandir os seus domínios e não se deixar dominar pelos imperialistas ocidentais. E a partir daqui soma-se mais uma dúzia de variações, algumas mirabolantes, outras com alguma coerência.

Linhas, linhas e mais linhas escritas. Horas de televisão, com argumentos de lado a lado. E se tudo, de um ponto de vista estratégico, como se jogássemos à batalha naval, faz todo o sentido, na prática é apenas obsceno. E, lamento, todas estas pessoas que falam de estratégia, peritos, militares, também o são. Obscenos!

E as pessoas? Os civis? Como diabo não entram as pessoas nas equações, nas análises, nos balanços analíticos daqueles que decidem e daqueles que analisam?

As pessoas entram nesta equação como números, em subtrações frias. Hoje, ontem e em todos os conflitos de que há memória. Mortos, feridos, refugiados, deslocados, migrantes, esfomeados, viúvos, órfãos, desempregados, desesperados.

Motivada por esta despersonalização dos conflitos, pela realidade das guerras “lá longe”, mas que pressenti que poderiam ser “cá perto”, por perceber que na realidade o lá longe e o cá perto não fazia qualquer diferença, porque as vítimas da crueldade da guerra eram sempre as mesmas, pessoas, o ser humano banal na sua luta diária banal, comecei a escrever o que demoraria mais de uma década a acabar – um livro sobre uma guerra em território nacional. Pelo meio, Susan Sontag, no seu Olhando o sofrimento dos outros faz-me perceber que, por mais que me esforce, não perceberei, jamais, o que as pessoas, aqueles que estão no meio de um conflito, sofrem, sentem. Perceber a minha ignorância, dá-me humildade. E a humildade anda de mãos dadas com a empatia.

 

“Um número e assim era a vida humana por aqueles dias. Um mero número numa equação que usava mais subtrações do que adições. Pensar que cada uma daquelas pessoas ali sentada a comer, cada uma daquelas pessoas lá fora, desde o recém-nascido aos idosos, homens e mulheres, civis e militares, rebeldes e não rebeldes, todos eles, sem exceção, nada mais eram  do que números. E numa fração de segundo poderiam transfigurar-se de um Um, num Zero, sendo que o transtorno causado por essa mudança não era para ali chamado. As equações não contemplavam sentimentos, os números não tinham nome nem passado e, claro, os Zeros nem futuro tinham.»

Vou para não ficar, Sónia Pereira

Bater, espancar, chicotear, matar.

"Era darem-lhe uma malha, chicoteá-lo, depois estrafegá-lo, regá-lo com gasolina e pegar-lhe fogo."


As palavras foram da D. Maria, mulher de 91 anos. Frágil, pouco mais de um metro e meio de um corpo delgado e em curva descendente, apoiada nas suas canadianas de estimação, mas sempre de língua afiada e respostas aguçadas que lhe fogem da boca como balas numa rajada de metralhadora.


As palavras raivosas, desta vez, tinham sido motivada pelas imagens da guerra na televisão da sala de espera. Crianças mortas, casas destruídas, caos semeado, o medo a ampliá-lo e os meios de comunicação a sorver caos e medo numa ânsia vampírica, esfomeada, sem escrúpulos.

No centro da fúria homicida da Dona Maria estava Putin, o arqui-inimigo, o anti-cristo.


Ao ouvir as suas palavras - mata-se o vilão e acaba-se a guerra - pensei em como a violência vive dentro de cada um de nós.


Durante o dia, este e os últimos quinze, não passou um par de horas que alguém não tenha sugerido limpar o sebo ao Putin. Mas também não passou nenhum a mais para além desse referido tempo, em que essa sugestão de homicídio não tenha vindo acompanhada de detalhes requintados de malvadez.


Matar não chega. Acabar com a suposta fonte do mal não basta.
Queremos sangue, queremos dor, queremos lágrimas de arrependimento, queremos ver a morte estampada no rosto antes da mesma se instalar, queremos a redução do outro a um nada. Menos do que isso...

Não chega.

A guerra, em última análise, é talvez a mais verdadeira expressão do que é ser-se humano. A ideia de que a violência, a capacidade de matar, é anti natural, uma espécie de degeneração da verdadeira essência humana, não podia estar mais longe da verdade.


Tentamos pacificar-nos, fazer crescer a empatia, semear e fazer germinar a benevolência, olhar o outro como nos olhamos a nós... Mas é um esforço. Séculos de esforço. Num primeiro impulso, quando a revolta irrompe e cresce luxuriante, o que nos vem à cabeça num primeiro instante, o impulso sem filtro, o instinto primário, é a violência. Somos isto.


Bater, espancar, chicotear, matar.

A arte frustrada dos pequenos fascistas

 

Grandes desgraças históricas teriam sido evitadas se o mundo da arte não fosse tão elitista e seletivo.

Hitler sonhava ser pintor, considerava-se, acima de tudo um artista. A pintura era o seu refúgio, o seu sonho de vida. Se o menino não tivesse sido recusado duas vezes na academia de belas artes de Viena, talvez agora a história do século XX fosse radicalmente diferente.
Veríamos uns quadros medíocres do menino nuns quantos museus, talvez o menino com o tempo até se aprimorasse (já vi pinturas piores) e o holocausto, a guerra, seriam coisas remetidas à ficção, porque um artista feliz reprime ou transforma o facínora que por lá também habita. Todo o lado sombrio seria transportado para pinceladas melancólicas numa tela, o descontentamento diluído em tinta.

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Adolf Hitler, 1912

E, verdade seja dita, aquele estilo, aquele cabelinho lambido para o lado e o bigode (não posso categorizar porque só me surgem comparações de estilismo pubiano), estão melhor para um artista do que para um ditador.

Maldito júri da academia, malditos elitistas armados em bons...

Depois, temos o nosso pequeno exemplo nacional. O sonho do Dr. Sapo de Loiça era ser romancista. Uns quantos livros editados, sem nunca conseguir chegar à pujança de vendas do Dan Brown lusitano (nem pouco mais ou menos).

Não fossemos nós leitores tão esquisitos (até nem somos, papamos quase tudo), não fossem as editoras tão elitista, remetendo o Dr. Sapo de Loiça para edições de segunda categoria, e também nós escreveríamos uma história diferente nos anais da história do ano 2021 português.

Caros eruditos que têm o poder de decisão nas mãos, lembrem-se: mais vale um artista de meia tigela (com tantos que os há, mais um menos um), do que um aspirante a ditador.

Deixai os meninos serem escritores, pintores, escultores, pianistas, compositores, bailarinos, realizadores. A mediocridade artística será de somenos importância quando comparada com o estilhaçar de uma sociedade, a morte da empatia, a frustração transformada em fúria.

 

Coisa de brincar

Um homem matou a sua companheira à facada, quando esta tentava terminar a relação de ambos. Matou-a à frente do próprio filho menor.

Uma notícia destas remete-me ao silêncio, à reflexão e parece incompatível com o estrondo de palavras obscenas que pululavam na caixa de comentários da notícia.

Já várias vezes me repreendi pelo mau hábito de ler os comentários das notícias. É um hábito mau para a saúde mental, embora necessário para tomar o pulso à mentalidade daqueles que, mesmo sem nos apercebermos, nos rodeiam. Embora as ofensas sejam ampliadas por contas falsas e bots, as pessoas que gostam de as pronunciar existem, são as ditas pessoas de bem desta sociedade.

Naqueles comentários, vociferava-se que as mulheres de «beiças» pintadas eram isto e aquilo e deviam era pintar as «beiças» pela violência doméstica, deviam era exigir a prisão perpétua, a morte aos assassinos, deviam era defender e não criticar o adorado líder que luta por valores tão essenciais para a sociedade, ao invés de se andarem a pavonear de «beiças» pintadas por coisa nenhuma. Comentário sim, comentário não, era isto, como se aquela mulher tivesse sido assassinada por um batalhão de mulheres de lábios pintados de vermelho e não às mãos do homem que supostamente a amava.

O que aquelas pessoas não percebem é, no entanto, de uma elementaridade atroz. Enquanto mulher, não me interessa que um homem passe dez ou vinte anos numa cadeia ou que seja condenado à morte pelo assassinato de uma mulher. Olhando para os exemplos de países onde as penas são mais pesadas, isso não parece desacelerar em nada a taxa de criminalidade. Se uma maior pena não demove o criminoso, então esta discussão é simplesmente inútil.

Enquanto mulher, o que eu quero é que os homens parem de nos matar. Castigar um assassino, matá-lo, não trará de volta as mulheres que lhe morreram às mãos.

E o que fará esta epidemia da violência contra as mulheres parar? Esta violência está assente em que alicerces, qual a mentalidade que a alimenta, que a fomenta?

A «coisificação» da mulher, tratar a mulher como um objeto que se agarra ou descarta, se agride e joga fora a bel-prazer, uma mulher subserviente, sem vontade própria, propriedade do marido/companheiro, essa mentalidade ainda dominante é o alimento da violência doméstica.

Quando um político, alguém com visibilidade suficiente para ter impacto nas massas que o seguem, se refere a uma mulher como «coisa de brincar», porque os seus lábios ostentam um batom vermelho, isso demonstra os valores que esse mesmo político defende. De nada vale apregoar a pena de morte para os assassinos de mulheres, a castração para os violadores, se por detrás desses pregões esse mesmo político dissemina valores que fomentam a «coisificação» da mulher, dissemina o machismo, a misoginia.

E quem o ouve, quem o segue cegamente, não se coíbe de apregoar esses mesmos valores degenerados - apelidar lábios de beiças, a já habitual retórica de chamar de puta a qualquer mulher que se emancipe, que seja uma figura com voz ativa, que não tenha medo de falar e pensar por si, tantas palavras envenenadas de ódio às mulheres

Não me interessa a morte de um assassino ou o seu apodrecimento numa prisão. Interessa-me o fim das mortes, o fim da violência, o fim de uma mentalidade tóxica e mortífera para as mulheres.

Menos do que isso, não chega!

Tribunal da Relação do Porto e as viagens no tempo gratuitas

Quando há uns tempos, fiz uma investigação bibliográfica aprofundada para a minha tese de mestrado sobre os manuais de conduta para as mulheres (1900-1950) e deparei-me, como seria de esperar, com um sem fim de livros da época de cariz extremamente machista, contra a emancipação feminina, conservadores, embrulhados na infalível proteção religiosa, exultantes na sua fúria da defesa da «moral e bons costumes». A imagem da mulher, que exigia ser preservada a ferro e fogo, era a da mulher submissa, esposa dócil, dona de casa, um exemplo de virtudes e de subjugação, um ser que não ouve, não questiona, só obedece. Linhas e linhas disto, deste discurso repetido até à exaustão por certas personalidades da época que, vendo os avanços emancipatórios no exterior, temiam que tal coisa assolasse a bela pátria lusitana.


No entanto, a minha habituação a este discurso é de o ver escrito em livros antigos, com o acordo ortográfico de 1911, numa linguagem que me remetia ao passado. Um discurso ligado a páginas amarelecidas, livros de capa dura, palavras encerradas há décadas em estantes de bibliotecas. Tudo aquilo eram reminiscências de tempos idos que não tinham como nem porquê voltar.


Quando, este fim de semana, me deparo com um acórdão do Tribunal da Relação do Porto, do juiz desembargador Neto de Moura, relativo a um caso de violência doméstica, todas aquelas palavras, frase por frase, tal e qual como se estivesse a olhar para um livro com cem anos, estavam lá escarrapachadas: a violência desculpada pelo adultério, a gravidade do adultério feminino, a ofensa à honra do homem, as constantes referências à bíblia, tudo aquilo era uma viagem ao passado, uma viagem no tempo de forma gratuita.


Julgava eu que a distopia era opção literária, afinal também é recurso judicial. Admirável mundo novo com cheiro insuportável a mofo…

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Excerto do acordão de 11/10/2017, do Tribunal da Relação do Porto, escrito pelo Juiz Desembargador Neto de Moura e assinado também pela Juiza Maria Luísa Abrantes. O acordão pode ser consultado na sua totalidade aqui

De salientar que é possível encontrar argumentação semelhante usada pelo Juiz Neto de Moura noutros acordãos redigidos por ele.

Campos semeados de cartazes eleitorais

Aqui na minha rua, os últimos meses foram de obras: limpeza e pinturas de muros de proteção e pintura da sinalização no asfalto. Depois de meses (anos) em que tal obra já merecia (urgia) ser feita, pensei para mim que as eleições sempre serviam para alguma coisa. Para bem da terra, era bom era haver eleições de ano a ano, mais não fosse para que estas pequenas coisas não fossem guardadas para serem feitas dois meses antes das eleições. Era garantido que as obras andavam sempre a bom ritmo.


Mas depois lembrei-me dos cartazes. Não!! Não aguentaria tal suplício anual. É coisa normal haver cartazes eleitorais semeados por todo o lado em alturas de eleições, mas este ano, na minha santa terrinha, isto atingiu níveis endémicos. O raio dos cartazes parece que se reproduzem durante a noite, criam metáteses em locais improváveis. Se um dos partidos parece contido, apostando numa quantidade de cartazes aproximada à das eleições anteriores, outros dois partidos estão «on fire». De tanto ver as caras dos candidatos a fitarem-me a cada esquina, em cada rua, em cada beco, temo ter pesadelos com eles durante a noite. Como alívio desta tormenta visual (claramente excessiva e perturbadora da paisagem), chegam as alcunhas engraçadas que o meu filho arranjou para cada um daqueles rostos sorridentes e profissionais que nos perseguem diariamente no percurso para a escola (cara de fraldinha, cara de bebé, por exemplo).


É que se ao menos por aqui houvesse uns cartazes cómicos, estranhos, com frases deslocadas, ainda dava para uma pessoa se divertir, mas nada. Pelas minhas bandas ficaram-se pelas fotografias insípidas do costume e pelas frases feitas sem nada de memorável.


Resta-me largar umas gargalhadas com alguns dos exemplos que apanhei pela net de cartazes autárquicos deste nosso Portugal. É que há de tudo: falta de noção, erros ortográficos, piadas com os nomes das localidades que saem completamente ao lado e coisas de tão estranhas, chegam a roçar o assustador.

 

Piadas com um inexplicável teor fálico/sexual:

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Erros ortográficos grosseiros:

 

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Jogos de palavras parvos:

 

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Cartazes em que o nome da terra ou do candidato (advertida ou inadvertidamente) atrapalha:

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E aqueles cartazes em que passa a sensação que o pessoal devia estar a fumar umas cenas estranhas quando achou que aquilo seria uma boa ideia. São os chamados cartazes WTF. 

 

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Dois dos muitos cartazes do «podes chamar-me Salomé». 

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???

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Um político que não deixa cair o estereótipo de político em saco roto. Começa a quebrar as promessas de campanha logo na campanha eleitoral. Assim dá gosto ver.

 

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Não é um cartaz, mas é uma ação de campanha. Fiquei entre o riso e o choro. :)

 

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Faço minhas as palavras do Olimpo. Tanto cartaz?! Chiça, porra que é demais.

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