Tenho dedicado os últimos meses à leitura exclusiva no feminino e quando se lê apenas no feminino, mais facilmente se percebe as subtis (e não tão subtis) diferenças entre a escrita feminina e masculina. Se posso concluir que as diferenças notadas serão características exclusivas da escrita feminina, obviamente que não. Mas serão certamente mais frequentes ao ponto de se tornarem fatores característicos.
E uma dessas características é a narrativa não totalizante, mais fragmentada, que não procura dar respostas e que se fixa naquilo que a vida é: retalhos, fragmentos, perguntas sem resposta ou com respostas insatisfatórias, felicidade transitória, descontinuidade e confusão. Há uma espécie de serenidade na consciência da impossibilidade de se abarcar o mundo todo e de se chegar a uma felicidade completa e dominante.
Comecei por ler dois livros (para fins académicos) de não ficção:
Communities of Women - An idea in fiction, de Nina Auerbach
Um quarto só seu, de Virginia Woolf
O primeiro livro fala sobre a representação das mulheres, enquanto personagens em comunidade, na literatura, explorando alguns exemplos literários em que as mulheres aparecem como uma comunidade feminina. Apesar de ser um livro já com alguns anos (1978), pareceu-me de grande contemporaneidade. Há um fator de estranheza, ainda agora, quando vemos retratadas, em livro, uma comunidade (seja familiar ou social) exclusivamente ou dominantemente feminina. Mas não sentimos semelhante estranheza quando se passa com comunidades masculinas.
O livro de Virginia Woolf não fala na representação da mulher enquanto personagem, mas é um ensaio sobre a mulher enquanto criadora, enquanto escritora. Publicado originalmente em 1929, este ensaio que é baseado em duas conferências dadas pela escritora na época, embora possa ser visto como algo datado (felizmente, alguma água passou pelos nossos moinhos), ainda assim é essencial para percebermos aquilo que está na base daquilo que a mulher é hoje, como criadora, como autora, na sociedade atual. O presente não é feito sem conhecimento do passado e o nosso passado é aqui, nesta obra de Woolf, sagazmente explorado. E, apesar do passado parecer passado, o melhor é ir olhando para ele, de forma a se evitar que ele teime em ser presente.
Na ficção, li dois livros de duas autoras internacionais e dois livros de duas autoras portuguesas.
O pequeno amigo, de Donna Tartt.
O acontecimento, de Annie Ernaux.
Já tinha lido dois livros de Donna Tartt (O Pintassilgo e A história secreta) e resolvi comprar este livro que, cronologicamente falando, foi o segundo romance da escritora. Donna Tartt reúne duas características que parecem antagónicas, mas que para mim, enquanto leitora, funcionam bem: consegue ser bastante descritiva, demorar um tempo desmesurado em pormenores, e, ainda assim, consegue injetar na narrativa um determinado suspense que transforma os seus livros em page turners. Senti isso n’ O Pintassilgo e na História secreta, mas nem tanto com esta obra. A dada altura confesso que fiquei um pouco desmotivada, sem que isso me levasse a abandonar a leitura. No entanto, quando cheguei ao final, o livro aterrou-me todo em cima. Ao contrário das outras obras da autora, em que havia uma necessidade de tudo ficar explicado e mais explícito, este livro tem esta característica de ser real, como a vida - nem sempre temos resposta para tudo, nem sempre as coisas fazem total sentido e nem sempre as pessoas são exclusivamente boas ou más. É tudo bem mais complicado do que isso. E foi esta incompletude, esta sensação de falta que me fez gostar bastante do livro.
Relativamente ao livro de Annie Ernaux, li-o de uma assentada. Não tenho palavras para descrever os livros de Ernaux. Ou seja, não tenho palavras para descrever o que sinto ao ler os livros de Ernaux. Gasta-se muito o adjetivo brutal, mas será o melhor adjetivo. Brutal. Ernaux é crua na sua escrita e fala-nos com uma espécie de distanciamento necessário. Os acontecimentos de uma vida não são retratados para explorar emocionalmente o leitor. A força do que é descrito está, não na exploração emocional, mas na sua vista banal. Cada vez gosto mais da escrita de Annie Ernaux.
A história de Roma, de Joana Bértholo.
Teoria das catástrofes elementares, de Rita Canas Mendes.
Quando terminei o livro de Joana Bértholo, andei umas horas a cismar pela casa. Depois, abri o bloco de notas no telemóvel e escrevi: há livros que, ao terminar a última linha e fechando-se a capa, dizemos: gostei. Há outros que nos deixam desarrumados.
Bértholo deixou-me assim, como um quarto desarrumado, com tralha espalhada por todo lado. Como já deve ter dado para perceber, não sou muito de conseguir fazer um resumo da história (ou talvez seja capaz, mas não me interessa tanto), focando-me mais neste canal que sou, enquanto leitora (que também escreve). E esta História de Roma mexeu comigo enquanto leitora. Achocalhou-me, desarrumou-me e, placidamente, ficou especada a ver o meu desnorte. Joana Bértholo merece todos os prémios que por aí venham. Quando for grande, quero ser assim: como ela, como Annie Ernaux, como Donna Tartt e também como a minha mais recente descoberta, a Rita Canas Mendes. Quero ser como todas elas.
O livro de Rita Canas Mendes está construído tal como eu mais gosto: capítulos que parecem pequenos contos, numa união narrativa em fragmentos, como a vida numa soma de pequenos/grandes momentos. Como gosto de escrever assim, achei Teoria das catástrofes elementares como uma viagem a um local onde me sinto bem, me sinto à vontade, um local onde há muito o que explorar, mas onde me sinto acolhida no meio do caos. Mais uma vez, é esta característica da vida em retalhos, do incompleto e do indizível, que torna este livro uma agradável surpresa.
Derry Girls, criado e escrito por Lisa McGee (disponível na Netflix).
Decameron, criado por Kathleen Jordan (disponível na Netflix).
Campo de papoilas, com argumento de Ioana Moraru (RTP2, disponível em RTP Play).
Na escrita para cinema e televisão, destaco Derry Girls como a série mais divertida que vi nos últimos tempos. É daquelas coisas que se pode dizer sem medo: está tudo bem nesta série – argumento, realização, interpretação, banda sonora. Tudo. Com uma escrita apurada, Lisa McGee conseguiu mostrar os fragmentos que compõem um país, as suas dissonâncias, as suas brutalidades (a Irlanda do Norte, nos tempos do IRA), inserindo todos estes aspetos como elementos do quotidiano na vida de um conjunto de adolescentes. É daquelas séries que sei que vou rever e, na qual, do alto dos meus 45 anos, encontro reconfortáveis referências e identificações, apesar das diferenças a nível político e social.
Decameron é também muito interessante e com um humor que identifico como muito feminino. Há algo no caos, na desordem e no desespero (retrata a história de várias pessoas durante a peste negra, quando se refugiam numa quinta no campo, para fugirem à doença), que torna a série estranhamente cómica e é essa estranheza do humor no caos que a faz ser tão brilhante. Gostei bastante e vi num fim de semana.
Por último, o Campo de Papoilas tem um argumento que não é convencional. Parece que estamos a ser levados para um lugar, desviamo-nos para outro (que era o lugar onde era suposto estarmos) e depois o filme acaba, deixando-nos a desejar um regresso ao lugar inicial. Fiquei um bocado a pensar naquilo e, a nível de história, estava ali tudo o que realmente era o que deveria ser contado, mas o desenho convencional dos argumentos e das narrativas, no geral, deixa-nos a braços com a vontade de um desenlace romântico, quando o que estava em causa nesta história era outra coisa. O foco era o desconforto de um polícia homossexual dentro de uma corporação policial obviamente homofóbica e tóxica, e quando esse desconforto transforma o polícia homossexual, o molda a esse ambiente, o deixa num limbo estranho de aversão/conhecimento/aceitação ou tolerância por parte dos seus pares. Achei bastante interessante, precisamente por me deixar essa sensação de incompletude e por não preencher os meus desejos narrativos, enquanto espetadora. Escrita pouco convencional e, se não o fosse, o mais certo era não ter pensado mais no filme.
Há onze anos, andava eu a pesquisar para a minha tese de mestrado sobre a publicação de manuais de conduta para mulheres durante o Estado Novo, passando dias inteiros enfiada na Biblioteca Municipal do Porto, entre livros mofentos (no sentido literal e figurativo). Quando mais investigava, mais pilhas de livros me apareciam na secretária. A primeira metade do século XX estava pejada de publicações deste tipo de manuais. Havia uma necessidade óbvia de formar a mulher para que ela encaixasse num molde de submissão, um molde que não permitia extravasamentos. Li páginas e mais páginas de como a mulher se devia comportar, como devia gerir a casa, como devia se submeter ao marido, como devia criar e educar os filhos, como devia ser temente a deus e se resignar (com alegria) ao seu papel de mãe, dona de casa, cuidadora e educadora. À mulher, estava reservada a santíssima trindade: lar, marido e filhos. E era triste ver livros editados originalmente no século XIX (em vários países da Europa), serem considerados, em meados do século XX, nas suas edições e reedições portuguesas, livros de vanguarda para a conduta feminina.
Em 1950, o século XX teimava em não chegar a terras lusas.
E embora as minhas pesquisas tivessem o seu quê de depressivas, sessenta e setenta, oitenta anos pareciam uma eternidade. Eu sentia uma enorme segurança na passagem do tempo. Todo aquele discurso encerrado naquelas páginas era obsceno e feria-me, mas via-o à distância, como uma peça histórica de museu, um mundo e uma visão que tinham ficado no passado.
A situação complicou-se quando comecei a fazer pesquisa bibliográfica para fins comparativos, de forma a estabelecer uma análise de fratura ou continuidade entre os diferentes períodos políticos. Qual seria a visão sobre as mulheres entre 1900 e 1932 (um período que ia da monarquia, à instauração da República, até à implementação do estado Novo)? Seriam aquelas publicações dos manuais de conduta femininos durante a ditadura uma continuidade do que já vinha a ser publicado no início do século ou, num contraste, uma fratura com o passado?
Em cima da escrivaninha da biblioteca, pousaram-me dois livros de Ana de Castro Osório. Um deles, Às Mulheres Portuguesas, publicado em 1905, ainda durante a Monarquia, e o outro, A mulher no casamento e no divórcio, publicado após a instauração da República, em 1911. Ler Ana de Castro Osório era como tê-la à conversa ali ao meu lado, mas num português de outros acordos ortográficos. Não havia bolor nas suas palavras e cem anos faziam-se num nada ali ao virar da esquina. Havia um fulgor combativo, uma necessidade de mudança nas suas palavras e havia ainda uma compreensão de que a mulher não era apenas aquela do seu grupo social e intelectual. Num Portugal rural do início do século XX, a mulher era analfabeta, beata, devota a deus e ao trabalho e à família e Ana de Castro Osório percebia que havia muito por onde a mudança lavrar, que havia muito terreno a desbravar, mas havia nas suas palavras a confiança nessa mudança.
Quando comecei a ler o livro publicado após a instauração da República, A mulher no casamento e no divórcio, acabei por desabar. Não exagero nem estarei a efabular para fins literários se vos disser que chorei. Estava sentada numa biblioteca pública, com um livro com mais de cem anos entre mãos, a limpar as lágrimas que me iam caindo rosto abaixo, para não as deixar macular as preciosas folhas centenárias.
A mulher no casamento e no Divórcio, Ana de Castro Osório, 1911.
Num livro que analisava as recentes alterações jurídicas implementada após a instauração da República, leis que finalmente configuravam o direito da mulher ao divórcio, mas também à educação e ao voto, a alegria de Ana de Castro Osório transpirava em cada linha. Ela percebia que ainda havia muito a fazer, mas a máquina da mudança, a tão necessária transformação do papel da mulher na sociedade, estava em movimento. E aquele tratado feminista em forma de compêndio jurídico fez-me chorar, não pelo que tinha escrito nas suas páginas, mas por tudo aquilo que eu sabia que lhe procederia.
“Minha queria Ana, a seguir virá o caos, a seguir virá o obscurantismo. A seguir serás silenciada, a seguir a tua carreira literária ficará reduzida à literatura infantil, a seguir as tuas palavras serão consideradas um atentado ao pudor, palavras blasfemas, contra a moral e os bons costumes. A seguir estas leis serão revogadas e à mulher restará o lar e a submissão ao marido. A seguir virá o silêncio”.
E se vou esquecendo, por vezes, aquela tarde na biblioteca, tem dias em que as notícias da atualidade a trazem de volta, com a força da necessidade da lembrança.
Naquela tarde de 2013, adquiri o mais precioso conhecimento de toda a minha vida académica: não há liberdades garantidas e irrevogáveis. A luta tem de ser permanente, constante e contínua, porque, mal baixemos a guarda, não faltarão aqueles que se aproveitarão da nossa imobilidade para nos submeter aos seus ideais podres, bolorentos e arcaicos.
Nos cinquenta anos de Abril, só desejo que nenhuma mulher do futuro leia relatos da nossa época com semelhantes lágrimas nos olhos às que verti quando li as sábias palavras de Ana de Castro Osório.
Que as nossas liberdades sejam tesouros que preservemos a todo o custo e que nunca as olhemos com os olhos da indiferença e do hábito. Porque num repente, numa nossa desatenção, a distopia pode fazer-se realidade.
Refugiava-me por detrás de um semblante azedo e de um mutismo acusatório. Parecia-me impossível que ele não compreende-se o que me atormentava, as aflições e inseguranças que me acossavam. Cheguei a comentar com uma amiga: “Será que é preciso fazer um desenho?” As minhas frases curtas, os meus silêncios, as minhas lágrimas mal escondidas… as entrelinhas que eu esperava que ele conseguisse ler e interpretar passavam-lhe ao lado, como uma brisa. Se inicialmente julguei que ignorava o que, para mim, era uma enxurrada de informação que eu lhe oferecia em desespero, com o passar dos anos percebi que não havia qualquer maldade associada. Os meus silêncios, para ele, eram apenas isso: a falta de som, de palavras; a minha expressão carregada de mágoa, as minhas reações hiperbólicas às pequenas coisas eram a manifestação de um dia menos bom, cansaço, saturação. Coisas da vida. Havia nele uma completa incapacidade de perceber esta linguagem em que me expressava.
Esta guerra nuclear que me abrasa, ele não a vê, desconhece-lhe a devastação associada.
Durante décadas questionei-me se o mal desta incompreensão era exclusividade dele, do meu marido, se era a minha forma de me expressar que era demasiado enrodilhada e complexa ou se era culpa de uma generalizada incapacidade masculina de perceber o colosso que é o hipertexto da comunicação feminina.
Esta semana, deparei-me com umas publicações de um realizador nacional sobre algumas das últimas novidades cinematográficas internacionais. Acabo por ter interesse em saber a opinião dos outros sobre livros e filmes, porque a escrita, seja de prosa ou argumento, é-me importante. Através destas análises literárias ou cinematográficas compreendo que a forma como vejo o mundo é, não raras vezes, idêntica à das outras pessoas. Mas, outras vezes, abre-se um fosso. Um abismo aparentemente intransponível entre eles e eu.
O primeiro filme era o filme francês Anatomia de uma queda e o segundo é o filme Vidas passadas. Gostei bastante dos dois filmes, principalmente do argumento e assim foi com um certa incompreensão que li as críticas que o cineasta fazia às duas obras. E o que o incomodava exatamente nestes dois filmes? O banal, a suposta simplicidade narrativa, a forma que apelidou de televisiva da cinematografia, a narrativa curta que era esticada, sobrando silêncios, porque não havia nada para se dizer. Alguns dos comentários às publicações referiam ainda a frieza da personagem principal do filme francês, a contenção ou falta de emoção (e esta crítica bateu ainda mais forte, porque Sandra Hüller tem um desempenho fenomenal, digno de todos os prémios que apareçam pela frente).
Fiquei a matutar naquelas apreciações, como normalmente fico quando a visão é diferente da minha. Tento compreender o que separa o meu mundo do dos outros, tento compreender a cisão, a fenda que separa aquilo que me move daquilo que mexe com os outros.
Pensava para mim que tanto um texto como o outro estavam muito bem escritos, dois argumentos excecionais, moviam-se no que estava nas entrelinhas, sem serem condescendentes com o espetador e, sim, o que não era dito, o que se sabia estrangulado, era de brutal importância e tudo aquilo que era essencial não acabava na palavra pronunciada. Nenhum dos dois estava enquadrado dentro de uma forma narrativa clássica, dentro dos seus gêneros, mas essa aparente desconstrução ou fragmentação só acrescentava densidade, nunca fragilidade.
“Mas será que é preciso fazer um desenho para que eles entendam?”
Quando percebi o que unia estes dois filmes produzidos em países diferentes, falados em diferentes línguas, um outro filme mais antigo assomou-se-me através das frinchas da memória. Um filme australiano de 2003 chamado Japanese story. Vi o filme há quase duas décadas e lembro-me da inusitada sensação do peso da tensão criada pelas emoções que não eram dissecadas em diálogos explanatórios, da estranha evolução narrativa e da evidência, antes mesmo de ter visto os créditos, de que aquele filme tinha sido realizado e escrito por uma mulher. E foi. Realizado por Sue Brooks e escrito por Alison Tilson.
Também Anatomia de uma queda foi escrito e realizado por uma mulher – Justine Triet, e o mesmo se passa com Vidas Passadas, escrito e realizado por Celine Song.
E sabendo que não havia nenhuma misoginia ou maldade na apreciação do realizador a quem eu cuscava nas redes sociais as críticas cinematográficas, restava a evidência de que, por vezes, é mesmo preciso fazer um desenho. Há uma característica nas escritas no feminino, quando são feitas com autenticidade ou, como lhe chama a escritora Elena Ferrante, verdade literária, que as afasta da escrita no masculino. E esta característica é a capacidade de compactar uma guerra nuclear no silêncio, naquilo que fica por dizer; um turbilhão ameaçador, esmagador num esgar de boca, uma tristeza profunda, uma vida que se esvazia de sentido num rosto que não se vira para trás, um grito altissonante contido numa mão que repousa despreocupadamente sobre uma perna. A devastação travestida de banalidade.
E pegando apenas nas minhas leituras no feminino dos últimos dois meses, Os anos de Annie Ernaux, Canção doce de Leila Slimani, Tudo é possível e Olive Kitteridge de Elisabeth Strout e Vidas de raparigas e Mulheres de Alice Munro, todos estes textos literários sofrem dessa aparente banalidade, de uma contenção que extravasa por todas as frinchas do que está implícito, de uma certa desconstrução genérica e de um desconforto que magoa. São textos que se constroem para além da leitura imediata, para além do ato físico da leitura, porque, embora todo o texto literário seja apenas palavras, quando há engenho de quem escreve, aquilo que fica por dizer, o silêncio nas entrelinhas é mais ensurdecedor do que qualquer frase descritiva de um grito uivado.
Talvez haja alguma estranheza perante uma escrita que ainda não é mainstream, a escrita no feminino, principalmente quando se fala de cinema, mas creio que com o tempo se chegue a um patamar em que não seja necessário fazer um desenho, em que qualquer um de nós, homens e mulheres, seremos capazes de ler nas entrelinhas, perceber os silêncios, sentir a ressonância das palavras que ficaram estranguladas numa banal frase breve.
Vidas passadas, de Celine Song, 2023.
Anatomia de uma queda, de Justine Triet, 2023.
Uma história japonesa de amor, de Sue Brooks, 2003.
Corria a década de noventa do século XX e eu, uma adolescente viciada em música e livros e que aspirava estudar cinema, vivia uma invulgar obsessão, uma curiosidade por um mundo particular, que não era o meu.
Desde que tenho memória, o universo homossexual masculino sempre surtiu em mim um estranho efeito apelativo. Olhando numa perspetiva histórica para esse passado, o da minha adolescência, alguns poderão justificar essa pretensa obsessão devido à obscuridade (a nível de representação artística) que os homens gays e as suas histórias tinham na época, ainda para mais num país como Portugal. Não era de todo fácil encontrar livros ou filmes em que uma personagem homossexual fosse representada e assim o pouco que encontrava, apreciava-o como se de um tesouro se tratasse.
Mas de onde vinha esta minha tara? E era uma tara, obsessão, uma curiosidade, era exatamente o quê? Durante estes vários anos nunca pensei muito em me justificar e bastava sentir-me bem a navegar naquele universo que não era o meu e no qual não estava representada, para continuar na minha senda por esses representações literárias e cinematográficas ─ a busca por uma total e completa representação daqueles que estavam num espetro afetivo tão distante do meu.
Foram precisas três décadas para finalmente me questionar e o questionamento vem porque a obsessão persiste. E se a pergunta agora se impõe é porque percebo, com alguma surpresa, que não estou sozinha. Se na adolescência eu era a rainha das cenas gays, agora eu sou um pequeno peão num gigantesco mercado. Se antes eu era a esquisita que vasculhava livros obscuros na biblioteca ou numa livraria, agora não preciso sequer de pedir, vasculhar, procurar. Há-os à farta, em vários registos, em vários formatos artísticos e de entretenimento.
E esta constatação não vem em tom de crítica. Olho em volto e falando com algumas adolescentes de agora (haverá frase com maior força para me atirar para os confins da meia idade do que esta?), percebo que também elas partilham em muito desta adoração por este universo LGBTQIA+. E o mercado obedece. Chegados à década de vinte do século XXI, vemos o entretenimento e a arte supostamente atentos e preocupados com as minorias, principalmente as minorias no que à orientação sexual e identidade de gênero diz respeito. Mas será que estão? Preocupados?
Percorrendo alguns canais de Youtube sobre este tema, é recorrente o surgimento de uma opinião interessante: todo o conteúdo LGBTQIA+ não é propriamente direcionado a um público LGBTQIA+ (e nunca o seria em exclusivo). Os conteúdos são direcionados para a fatia de público que mais os demanda, que os procura e que, sendo uma fatia gigante, é a fatia a se agradar: adolescentes e mulheres heterossexuais. E nesta obediência do mercado ao público que lhe rende, há em mim um rol de emoções algo ambivalentes. Por um lado, pergunto-me se os nossos gostos não estarão a ferir (de alguma forma) uma minoria até agora silenciada e marginalizada, por outro lado, não sinto culpa pela submissão dos mercados, por uma razão muito simples: enquanto mulher, vi durante toda a minha vida os “produtos” artísticos serem produzidos, pensados, desenhados, tendo em conta quase exclusivamente um público masculino. Mesmo aquilo que supostamente era direcionado a nós, mulheres, que nos tinha como público preferencial, era moldado sob uma tutoria masculina. E nós acabamos a olhar o mundo de uma forma muito deformada por esses óculos que não eram os nossos. Agora, ouvindo o tinir dos sinos do lucro, eles decidiram ouvir-nos a nós. Se há algo de retorcido nesta constatação, há-o certamente e não sei bem o que sentir relativamente a isso.
Na atualidade, no segmento editorial Young Adult, as novidades de livros queer são diárias, embora também as haja entre o segmento de literatura convencional, no streaming, entre filmes e séries para um público mais adolescente ou mais adulto, as ofertas também são variadas. É difícil passar mais de uma semana sem uma novidade numa das plataformas ou no cinema. E temos séries como Heartstopper (Netflix) transformada num sucesso, com milhares de fãs em todo mundo ou o filme da Amazon Prime Red, White and Royal Blue a aparecer como um dos filmes mais visionados da plataforma em questão.
E não havendo nenhum mal nisso, em se direcionar um conteúdo para um público que o quer, surge, no entanto, algumas preocupações, vindas principalmente do público LGBTQIA+:
Estarão, nesta agora mais comum representação queer, as personagens masculinas representadas de uma forma mais heteronormativa para agradar o público feminino heterossexual?
Haverá uma espécie de adaptação heterossexual (a vários níveis: sexual, social, cultural) de um universo que não o é, para agradar a um público específico?
Havendo uma abundância de representação homossexual masculina, porque é que é tão difícil ainda agora encontrar uma maior representação sáfica? Será porque o público feminino heterossexual não se interessa?
Haverá uma espécie de fetiche feminino por estas representações homossexuais masculinas?
Olhando agora para a minha pilha de livros, dos últimos que li este ano, passando os olhos pelos belíssimos Nadar no Escuro de Tomasz Jedrowski e Young Mungo de Douglas Stuart, recordando as imagens do filme God’s Own Country, um dos poucos filmes em que espetei com cinco estrelas no Letterbox ou ainda o ridículo, adolescente e adorável (filme e livro) Red, White and Royal Blue, vem a pergunta milionária: porque é que gosto disto, porque é que um universo afetivo, sexual, cultural, social, que para mim aparece como um universo fantástico (pois não lhe pertenço), se apresenta como o universo onde quero estar?
Pesquisando aqui e ali, analisando-me e aos que me rodeiam e que partilham do mesmo gosto, talvez seja possível chegar a um punhado de respostas, embora ache que uma tese na área da psicologia pudesse ser interessante, porque tudo o que disser será de índole muito superficial:
─ Aquilo que causa estranheza aos outros nesta identificação peculiar é na realidade a chave da explicação: identifico-me com a história de um homem gay, com a história romântica ou de superação de um homem gay porque não estou lá representada. E pensando num universo afetivo onde não se está representado, concluiu-se que não é possível estabelecer comparações.
Como adolescente, sempre fui muito insegura a vários níveis. Achava que não era suficiente em nada: no aspeto físico, na beleza, na inteligência, na capacidade de superação. Medíocre ou mediana como um todo. Suponho que esta sensação avassaladora de se estar aquém tenha moldado em muito a minha forma de ver e aceitar o mundo à minha volta. E talvez o mesmo se passe com as adolescentes de hoje em dia. E a única forma de se experienciar um mundo onde existe amor, beleza, superação e revolução, é procurando um universo onde não se esteja, onde não seja possível estabelecer nenhum tipo de confronto comparativo: ela é melhor do que eu, mais bonita, mais elegante, mais inteligente, mais capaz, mais independente, mais otimista, mais simpática, mais astuta, mais destemida.
Onde não havia elas, só eles, eu podia estar, porque não havia nenhum espelho onde pudesse ser confrontada pelo meu pobre reflexo.
─ Outro dos fatores de interesse é o que classifico de desconstrução de estereótipos de gênero. As figuras masculinas que tinha como referência há trinta anos eram figuras que facilmente cairiam numa comum caracterização do sexo masculino: homens que irradiavam uma masculinidade tóxica, muito machos, mesmo entre os adolescentes borbulhentos da escola, com grande dificuldade em demonstrar afeto e que criticavam fortemente quem (de entre eles) o fizesse. O gesto era comedido, a não ser que se estivesse no campo da abordagem sexual, onde aí era dominante, mais agressivo. Tudo o que era da ordem das emoções era maricas, efeminado, coisas de gaja.
No entanto, num universo onde não havia mulheres para se dominar, submeter, mostrar superioridade, esses estereótipos de género eram subvertidos, quebrados. Pegava em Maurice de E. M. Foster e encontrava Maurice dominado por uma afeição, um amor por Clive, que não lhe permitia uma expressão física desse afeto, e encontrava um tipo de homem que não existia na minha realidade. Um homem que não tinha medo das suas emoções, que mesmo se sentido ameaçado pelos seus sentimentos impossíveis, decidia ir contra a corrente, ser aquilo que o invadia: desejo, afeto, carinho, amor.
Esta quebra, subversão de uma construção de gênero acabou por ser, para mim, enquanto adolescente, uma das principais motivações para a procura daquele tipo específico de objeto artístico. O que ali se encontrava era uma suavização do que era áspero, bruto, empedrado. Para mim, se pensasse em igualdade de gênero, era nisso que pensava: alguém capaz de sentir e demonstrar o que sentia para além da convenção, alguém capaz de chorar como eu.
─ Por último, o que aquele universo trazia e era de difícil replicação num qualquer outro universo era a batalha e superação daquilo que era proibido, criticado, mesmo que o protagonista estivesse sujeito a injúrias por ser aquilo que era.
Grande parte da literatura gay e lésbica da minha adolescência estava focada precisamente no conceito base do crime/proibição/pecado/censura e crítica social. Aquelas pessoas ali retratadas eram, só por sentirem paixão/desejo/amor por alguém do mesmo sexo, a face do crime e um gesto de afeto era uma transgressão. Assim, aquelas demonstrações afetivas ali retratadas tinham uma valoração diferente de qualquer outra que pudesse ser demonstrada por um homem heterossexual por uma qualquer mulher. Não havia no meu universo heterossexual qualquer possível paralelo com aquilo, pois nem eu nem nenhum homem heterossexual teria de superar tais obstáculos, ver as suas demonstrações de afeto serem consideradas nojentas ou criminosas, alvo de escrutínio público, sujeitas a sanções. O peso do meu afeto heterossexual nunca poderia ser tamanho, tão extremo, tão evidente. Tão imenso. Havia assim um elemento épico que não encontrava em mais lado nenhum, a não ser naquele universo.
Em suma, a possível identificação, mas sem elementos de comparação, a subversão de certos estereótipos de gênero, a suavização da masculinidade e o elemento épico, sem paralelo na minha vida, serão, os elementos que mais facilmente encontro como justificação de uma preferência literária/artística e de entretenimento. Talvez se tivesse sido uma adolescente carregada de auto estima, as minhas leituras tivessem sido outras. É bem possível. Ou talvez não.
Depois deste pequeno exorcismo, desta psicanálise do meu eu adolescente, deixo apenas uma referência à questão do fetichismo. Não me parece que esta acusação de fetichização tenha fundamento, no sentido em que, tanto no entretenimento como na arte no geral procuramos pontos de fuga, mas também pequenos lugares de identificação. O que nos leva à escolha de um livro, de um filme para ver ou até mesmo de uma exposição de arte, são os lugares de identificação, mesmo que esta aconteça através do desconforto, da desorientação. Há sempre um Eu a procurar um buraco de fechadura para espreitar.
O nosso Eu é dominante, mesmo quando pretendemos subjugá-lo e esvaziarmo-nos dele. O que quer dizer que, de certa forma, ou chamamos outra coisa a essa procura do nosso Eu naquilo que nos rodeia ou então teremos de classificar toda e qualquer relação com a arte e o entretenimento como fetichista.
Fazia um scroll desinteressado no telemóvel numa rede social, quando me apareceu a notícia da divulgação do prémio Saramago 2022, entre polícia na universidade, Ronaldo, Qatar e a guerra na Ucrânia.
Abro a notícia do prémio literário e a primeira coisa que me saiu, alto e a bom som, sem filtro prévio, foi:
─ Mais um gajo!
Mas apontar o óbvio, mesmo usando dados que suportem esse óbvio, só traz dissabores. Não faltarão os guardiões da meritocracia, da justiça da qualidade, do valor do vencedor. Se ganhou, é porque era o melhor, dirão alguns.
Mas hoje acordei teimosa, por isso, aqui vai. Peguemos nos principais prémios literários portugueses e de língua portuguesa. Refiro-os como principais pois são os que terão um maior prémio monetário e são também os que trarão aos vencedores uma maior notoriedade.
Temos o Prémio Leya, com um valor de 50 mil euros, instituído desde 2008. Durante o período de 2008 a 2022 (sendo que em alguns anos o prémio, por decisão do júri, não foi entregue), ganharam o galardão 7 homens e 2 mulheres - 2 mulheres num total de 9 vencedores.
De notar que a própria composição do júri é também, a nível de género, bastante díspar. Começaram em 2008 com 6 homens e 1 mulher (7 membros) e hoje em dia estão com 5 homens e 2 mulheres.
Avancemos para o Prémio Saramago, que é um prémio bienal, atribuído desde 1999, com o valor de 40 mil euros. Dos 12 vencedores até à data, apenas 2 mulheres ganharam o prémio desde 1999. Ver o nome do vencedor de 2022, o escritor brasileiro Rafael Gallo, nem espanto causa. Surpreendente é ler os comentários à notícia do vencedor. A celeuma pelo anúncio não estava ligada ao facto de ser mais um homem a vencer o galardão, mas sim ser um escritor brasileiro.
Deste prémio, saliento ainda a composição dos membros do júri nesta última edição - 8 membros, sendo 5 deles homens. Esses 5 homens eram todos eles antigos vencedores do prémio em questão.
Para completar aqui este apanhado de prémios, refiro o prémio Oceanos, prémio que começou por se chamar Prémio Portugal Telecom e que é um prémio para autores de Língua Portuguesa, atribuído neste momento no Brasil, com o valor total de 250 mil reais (a distribuir entre os 3 primeiros lugares). Entre 2003 e 2021, dos 19 vencedores (primeiro lugar), apenas 3 mulheres conseguiram ganhar este prémio.
Remato com o Prémio Camões, prémio atribuído desde 1989, pelos governos de Portugal e Brasil, com o valor atual de 100 mil euros, pelo conjunto e importância da obra dos autores vencedores. Em 34 vencedores, temos 7 mulheres.
Extravasando as fronteiras da língua portuguesa e dos prémios para autores em língua portuguesa, deixo apenas os dados dos vencedores do Prémio Nobel da Literatura: 119 vencedores, 17 mulheres.
Ora, com esta pequena e singela análise não pretendo aferir que os vencedores de todos estes prémios durante todos estes anos não serão escritores capazes. Longe de mim sugerir tal coisa. Muitos deles são habitués das minhas estantes, muitos deles são presença constante nas notícias que leio, nos feeds das minhas redes sociais. Mas, tê-los a todos como presenças habituais nos meus mundos ficcionais, deixa-me um travo amargo na boca. Eu, mulher, consumo muita literatura escrita por homens. Eu, mulher, levo o meu tempo a ver o mundo pelos olhos de um homem, de muitos homens. Eu, mulher, consumo histórias sobre mulheres, escritas por homens.
─ Ah, mas são eles os melhores. Se ganharam, devem ser os melhores de todos os candidatos.
─ Serão?
Temos prémios literários decididos quase exclusivamente por homens e ganhos por homens. Temos publicações nas maiores editoras movidas por esses prémios, carreiras que se agigantam à conta desses prémios e o que sobra é uma visão unilateral do mundo, uma visão masculina do mundo. E o mais engraçado disto tudo, o mais estúpido disto tudo é que a maioria dos leitores, a maior percentagem daqueles que lê de um a mais livros por ano, é feminina.
No meu mestrado de Escrita Criativa na Faculdade de Letras em Coimbra, 80% dos alunos do meu curso são mulheres. Daqueles que querem escrever, daqueles que querem melhorar capacidades, procurar uma identidade literária e poli-la, 80% são mulheres. Mas mulheres também elas já afogadas em muita literatura masculina, possivelmente já moldadas por muitos anos a ver o mundo através de óculos masculinos.
E não deixo sugestões para uma mudança neste paradigma. Vislumbro apenas fragmentos da engrenagem por detrás desta gigante máquina que é o mundo editorial e mesmo assim consigo concluir que sou demasiado velha para acreditar em mudanças.
Não conheci o meu avô paterno, mas conheci desde cedo o seu legado, a herança do abandono, do desamor, da tristeza instalada no peito de uma mulher com um filho bastardo nos braços.
D. Sancho I levou erradamente o cognome de O Povoador. Erradamente porque, a bem da verdade, não terá havido maior povoador do que o meu avô paterno. Um D. Juan da aldeia, que fez filhos a torto e a direito, efeitos secundários indesejáveis das suas aventuras sem responsabilidades acrescidas, até se ter «metido» com uma menor e ter acabado casado. Fora desse laço sagrado do casamento, deixou umas quantas mulheres desenganadas, de vidas já de si medíocres reduzidas a um nada, depois daquele presente envenenado com o qual as presenteou. Depois disso, um vazio.
A minha avó era já uma mulher adulta quando engravidou deste homem e, segundo ela, namorou com ele seis anos e eram muitas as juras de amor.
Depois do abandono, da humilhação familiar de ter no ventre um filho «sem pai», ainda assim ela persistiu no seu amor por aquele ser humano. Persistiu no amor e nas desculpas. Não terá existido homem nenhum no mundo tão intrinsecamente machista como a minha avó. Segundo ela, o meu avô era um pobre desgraçado tentado pela perfídia sedutora das mulheres. Todas as outras «se meteram debaixo dele» e ele, um pobre coitado incapaz de resistir a tão maliciosas tentações. Toda uma classe de homens reduzida a um estereótipo pouco abonatório - um ser incapaz de controlar os apetites caprichosos do corpo, vítima da luxúria feminina, um ser pré-histórico no que diz respeito à empatia, capacidade afetiva e intelecto.
A minha avó não teve mais nenhuma presença masculina na sua longa vida (para além da do filho). Nos seus pertences guardava religiosamente a fotografia daquele homem que lhe dera um filho, mas que nunca lhe dispensara um tostão ou o que fosse para o ajudar a criar. Os anos passaram, ele morreu (relativamente jovem) e o culto dela por ele não esmoreceu. Talvez a morte dele tenha mesmo ampliado essa idolatria. E o afeto dela chocava de frente com o desprezo em semelhante proporção que o meu pai sentia por aquele mesmo homem.
Anos passados, também ela morreu. Ela e o seu amor injustificado pelo meu avô.
Depois de anos sem perceber este amor unilateral da minha avó, sem perceber aquele amor incondicional que - qualquer cego poderia ver - não tinha razão de ser, décadas depois de conhecer a sua história, anos depois da sua morte, finalmente percebi.
Olhando-me ao espelho, vendo o filme de terceira categoria da minha própria vida, compreendo-a perfeitamente.
A verdade é que passamos a nossa vida num exercício de fé. Fé em nós próprios, nas nossas capacidades, na nossa resiliência, na nossa ambição e persistência. E fé nos outros, em não nos deixarem cair, em nos amarem, em não desistirem de nós.
É esta fé que nos leva ao dia seguinte e não propriamente a concretização do objeto primário da nossa fé, aquilo a que chamam de forma singela de sonho.
Talvez nada mais restasse no horizonte da minha avó que não fosse amar a imagem idealizada daquele homem. Era isso ou enfrentar a realidade: ele era um canalha que se aproveitara dela, de outras e seguira caminho sem remorsos, ignorando um filho, muitos filhos, ignorando os sentimentos de uma mulher, várias mulheres, em situações de vida precárias, difíceis, empobrecidas e, depois da sua passagem ciclónica, ostracizadas pela sociedade, família, por terem acabado naquela situação - grávidas, mães solteiras, abandonadas, os seus filhos perfeitos, também eles, abandonados.
Do desprezo que cheguei a sentir por aquele amor que ela nutria por um ser humano de tantas e tamanhas atitudes desprezíveis, da abominação, da afronta, de todas as justificações dela dos comportamentos dele, agora entendo.
A nossa felicidade, a bruma mágica que envolve a nossa existência, não precisa de ser real, de ter os contornos do mundo físico, do espaço/tempo, do aqui e agora. Basta apenas que se revista de uma envolvente verosimilhança aos nossos olhos, já meios míopes de tanto fitar continuamente tamanha dolorosa realidade.
Se for preciso acreditar em capacidades inexistentes, em projetos utópicos, em vidas paralelas, em deuses benevolentes, em ficções hollywoodescas, em amar pelos dois... que assim seja!
O real está no mundo pessoal imaginado de cada um de nós.
Um homem matou a sua companheira à facada, quando esta tentava terminar a relação de ambos. Matou-a à frente do próprio filho menor.
Uma notícia destas remete-me ao silêncio, à reflexão e parece incompatível com o estrondo de palavras obscenas que pululavam na caixa de comentários da notícia.
Já várias vezes me repreendi pelo mau hábito de ler os comentários das notícias. É um hábito mau para a saúde mental, embora necessário para tomar o pulso à mentalidade daqueles que, mesmo sem nos apercebermos, nos rodeiam. Embora as ofensas sejam ampliadas por contas falsas e bots, as pessoas que gostam de as pronunciar existem, são as ditas pessoas de bem desta sociedade.
Naqueles comentários, vociferava-se que as mulheres de «beiças» pintadas eram isto e aquilo e deviam era pintar as «beiças» pela violência doméstica, deviam era exigir a prisão perpétua, a morte aos assassinos, deviam era defender e não criticar o adorado líder que luta por valores tão essenciais para a sociedade, ao invés de se andarem a pavonear de «beiças» pintadas por coisa nenhuma. Comentário sim, comentário não, era isto, como se aquela mulher tivesse sido assassinada por um batalhão de mulheres de lábios pintados de vermelho e não às mãos do homem que supostamente a amava.
O que aquelas pessoas não percebem é, no entanto, de uma elementaridade atroz. Enquanto mulher, não me interessa que um homem passe dez ou vinte anos numa cadeia ou que seja condenado à morte pelo assassinato de uma mulher. Olhando para os exemplos de países onde as penas são mais pesadas, isso não parece desacelerar em nada a taxa de criminalidade. Se uma maior pena não demove o criminoso, então esta discussão é simplesmente inútil.
Enquanto mulher, o que eu quero é que os homens parem de nos matar. Castigar um assassino, matá-lo, não trará de volta as mulheres que lhe morreram às mãos.
E o que fará esta epidemia da violência contra as mulheres parar? Esta violência está assente em que alicerces, qual a mentalidade que a alimenta, que a fomenta?
A «coisificação» da mulher, tratar a mulher como um objeto que se agarra ou descarta, se agride e joga fora a bel-prazer, uma mulher subserviente, sem vontade própria, propriedade do marido/companheiro, essa mentalidade ainda dominante é o alimento da violência doméstica.
Quando um político, alguém com visibilidade suficiente para ter impacto nas massas que o seguem, se refere a uma mulher como «coisa de brincar», porque os seus lábios ostentam um batom vermelho, isso demonstra os valores que esse mesmo político defende. De nada vale apregoar a pena de morte para os assassinos de mulheres, a castração para os violadores, se por detrás desses pregões esse mesmo político dissemina valores que fomentam a «coisificação» da mulher, dissemina o machismo, a misoginia.
E quem o ouve, quem o segue cegamente, não se coíbe de apregoar esses mesmos valores degenerados - apelidar lábios de beiças, a já habitual retórica de chamar de puta a qualquer mulher que se emancipe, que seja uma figura com voz ativa, que não tenha medo de falar e pensar por si, tantas palavras envenenadas de ódio às mulheres
Não me interessa a morte de um assassino ou o seu apodrecimento numa prisão. Interessa-me o fim das mortes, o fim da violência, o fim de uma mentalidade tóxica e mortífera para as mulheres.
Quando há uns tempos, fiz uma investigação bibliográfica aprofundada para a minha tese de mestrado sobre os manuais de conduta para as mulheres (1900-1950) e deparei-me, como seria de esperar, com um sem fim de livros da época de cariz extremamente machista, contra a emancipação feminina, conservadores, embrulhados na infalível proteção religiosa, exultantes na sua fúria da defesa da «moral e bons costumes». A imagem da mulher, que exigia ser preservada a ferro e fogo, era a da mulher submissa, esposa dócil, dona de casa, um exemplo de virtudes e de subjugação, um ser que não ouve, não questiona, só obedece. Linhas e linhas disto, deste discurso repetido até à exaustão por certas personalidades da época que, vendo os avanços emancipatórios no exterior, temiam que tal coisa assolasse a bela pátria lusitana.
No entanto, a minha habituação a este discurso é de o ver escrito em livros antigos, com o acordo ortográfico de 1911, numa linguagem que me remetia ao passado. Um discurso ligado a páginas amarelecidas, livros de capa dura, palavras encerradas há décadas em estantes de bibliotecas. Tudo aquilo eram reminiscências de tempos idos que não tinham como nem porquê voltar.
Quando, este fim de semana, me deparo com um acórdão do Tribunal da Relação do Porto, do juiz desembargador Neto de Moura, relativo a um caso de violência doméstica, todas aquelas palavras, frase por frase, tal e qual como se estivesse a olhar para um livro com cem anos, estavam lá escarrapachadas: a violência desculpada pelo adultério, a gravidade do adultério feminino, a ofensa à honra do homem, as constantes referências à bíblia, tudo aquilo era uma viagem ao passado, uma viagem no tempo de forma gratuita.
Julgava eu que a distopia era opção literária, afinal também é recurso judicial. Admirável mundo novo com cheiro insuportável a mofo…
Excerto do acordão de 11/10/2017, do Tribunal da Relação do Porto, escrito pelo Juiz Desembargador Neto de Moura e assinado também pela Juiza Maria Luísa Abrantes. O acordão pode ser consultado na sua totalidade aqui.
De salientar que é possível encontrar argumentação semelhante usada pelo Juiz Neto de Moura noutros acordãos redigidos por ele.
Já há uns tempos que queria escrever um texto sobre o feminismo, embora já várias vezes tenha-me focado no tema, direta ou indiretamente, noutros posts. Decidi que seria hoje devido a um texto que li ontem.
Pegando na definição da palavra feminismo — Movimento ideológico que preconiza a ampliação legal dos direitos civis e políticos da mulher ou a igualdade dos direitos dela aos do homem (dicionário Priberam) — parece-me lógico que qualquer pessoa na nossa sociedade ocidental, seja homem ou mulher, se possa considerar feminista. Aquilo que está em causa é a igualdade de direitos entre homens e mulheres, direitos e deveres semelhantes em todas as áreas. No entanto, o termo feminismo parece ter ganhado (talvez mesmo desde o início da sua aplicação) uma conotação pejorativa, ligada a um certo extremismo de palavras e ações, o que em nada favorece aquilo que deveria ser a verdadeira luta feminista.
Ora bem, ontem lia um texto de um amigo que alertava para um outro texto numa plataforma de divulgação feminista (capazes.pt). Esta plataforma é conhecida pela divulgação de informação de carácter feminista, mas lá pelo meio, volta e não volta, aparecem uns textos que, ao invés de promoverem aquilo que o feminismo realmente é, optam pela via dos extremos, a via da superiorização feminina. É de salientar que esta proclamação da superioridade feminina não se encaixa no conceito de feminismo. Para essa superiorização nasceu uma nova palavra há uns anos — femismo — que entra em oposição ao machismo (superiorização masculina).
Assim, no texto de Suellen Menezes «Feminismo é outra palavra para justiça», a autora refere a necessidade de suspensão, através da via democrática, do poder de voto do homem branco, sendo essa a única maneira de trazer, em poucos anos, a tão ansiada igualdade de géneros. Numa visão distópica, a autora encontra na proibição, numa conceção algo fascista, eugénica, a forma de chegar a um equilíbrio social entre homens e mulheres.
O voto dos homens brancos reforça o sistema que confere todos os privilégios aos homens brancos. Quem se surpreende que isso aconteça? E quem considera isso “justo”?
A suspensão temporária do poder do voto dos homens brancos é a única chance de produzir uma real alteração no mundo no espaço de apenas uma geração.
Excerto do texto «feminismo é outra palavra para justiça» de Suellen Menezes, retirado do site capazes.pt.
Não referindo sequer a grave falha argumentativa (se são os homens brancos que «mandam nisto tudo», como raio conseguiriam as mulheres impor de forma democrática um sistema eleitoral que os excluísse?!), o texto, tido e proclamado como feminista, é em tudo perigoso para o próprio movimento feminista. Não é isto que eu quero, enquanto feminista, que achem que eu defendo. Nunca uma sociedade igualitária poderia nascer de a desigualdade social de se expressar opiniões (através do voto, por exemplo), nunca a equidade poderá brotar do rebaixamento, da submissão de um género a outro. Se, pela frente, ainda estarão anos de batalha por uma sociedade justa para ambos os sexos, que essa batalha seja sempre feita com dignidade, em moldes racionais, democráticos e que nunca nos passe pela cabeça fazer aos outros aquilo que não gostamos que nos façam a nós.
Como em todos os movimentos ideológicos existem excessos, extremismos que prejudicam o conceito base ideológico (não faltam exemplos, mesmo cá em Portugal, de manifestações extremistas que apenas serviram para ridicularizar o movimento e o conceito de feminismo).
Neste caso, dentro do próprio movimento, as próprias mulheres têm de se distanciar deste tipo de fundamentalismos, de uma certa misandria manifestada por algumas mulheres, excluir o que não dignifica, mas ridiculariza, mostrar que há uma clara diferença entre feminismo e femismo.
Como já por aqui referi antes, uma das questões que mais interesse me desperta é a da natureza boa/má do ser humano. Obviamente, esta visão maniqueísta, esta divisão entre bom e mau, é tremendamente redutora e aquilo que somos, o nosso relacionamento com os nossos semelhantes, com a natureza, não pode ser categorizado apenas por estes dois polos extremados: bom e mau. Mas a questão é: somos, de forma primitiva, intrinsecamente propensos à violência, ao egoísmo, à subjugação do outro através do poder, ou esses traços vieram como uma assimilação cultural, danos colaterais da nossa evolução em sociedade?
Sobre isto, sobre a preponderância para o mal, muito poderá ser dito e algumas coisas fora do âmbito da natureza intrínseca, mas ligadas à anatomia, à morfologia do cérebro: certas alterações neurológicas podem levar a uma maior impulsividade, agressividade e falta de empatia, por exemplo. É possível, na prática, intervir cirurgicamente e tentar, com isso, modelar comportamentos. Mas no que diz respeito a este assunto, escreverei num outro post, pois também é tema que me deixa intrigada e com dúvidas de ordem ética.
De regresso à nossa natureza, dei de caras há umas semanas com um vídeo da artista Marina Abramović (The Artist is Present) e recordei uma das suas mais famosas performances, que ainda hoje, passados mais de 40 anos, permanece como uma das apresentações mais emblemáticas de Marina. Corria o ano de 1974 e a artista apresentou em Nápoles a performance Rythm 0. Numa mesa estavam dispostos 72 objetos, parte deles ligados a uma aceção de prazer e outros quantos ligados inequivocamente a uma aceção de dor. No centro da sala estava Marina, parada, à espera da interação do público. Durante seis horas, a artista teria de permanecer ali e subjugar-se às vontades dos visitantes, ao uso que estes fariam dos objetos. Inicialmente, as pessoas pareciam dominadas por uma certa timidez, mas não demorou muito até que alguns se soltassem das amarras da inibição e ousassem uma aproximação. Tocar, mexer, experimentar objetos numa pessoa que se apresentava subjugada, sem reação, levou a que em menos de nada a agressividade tomasse lugar naquela performance. A roupa de Marina foi rasgada, ela foi despida, amarrada, mudada de lugar, picada, cortada, o seu sangue lambido por um dos visitantes. A dada altura, uma das pessoas presentes pegou numa arma, um dos objetos expostos, e carregou-a com uma bala (também exposta) e apontou-a à artista. Um outro visitante interveio, nesse momento e afastou a arma.
A atitude de Marina, durante as seis horas, foi sempre de passividade e essa passividade, essa subjugação, levou a um uso quase exclusivo, por parte dos visitantes, dos objetos relacionados com o inflição de dor. Quando as seis horas acabaram, quando se chegou ao fim do tempo delimitado para a performance, a artista abandonou o espaço, seminua, a sangrar, de lágrimas nos olhos.
O interessante da performance não terá sido apenas, ou essencialmente, a agressão ao sujeito passivo, a falta de empatia e a crueldade das interações, a escolha pela dor ao invés da escolha por proporcionar prazer, mas a reação final dos visitantes à pessoa que, antes passiva, começou a caminhar e olhou os seus agressores nos olhos. A confrontação com a agressão, com a «vítima», deixou a audiência desconfortável, sem saber para onde olhar, apanhada na evidência do próprio erro. A passividade tinha sido como um livre passe para a agressão e quando essa passividade acabou, as pessoas viram-se «ao mesmo nível» do sujeito agredido, a sensação de poder esvaiu-se, ficou apenas a vergonha, o acanhamento.
Como é óbvio, não é possível extrapolar os resultados de uma performance nos anos 70 para definir todo o comportamento humano face à passividade, à fragilidade do seu semelhante. Embora não possamos concluir que, face a alguém que se demonstra numa atitude de submissão, o mais certo é haver lugar à subjugação, ainda assim uma pequena performance de seis horas funciona como um sistema de alerta para esta nossa, aparentemente intrínseca, necessidade de dominação. E esta dominação, esta ânsia de poder, de subjugação, vem embrulhada numa (temporária ou não) falta de empatia, de capacidade de ver o sujeito dominado como alguém igual, semelhante, senciente. Havendo a possibilidade de escolha entre proporcionar o bem-estar ou a agressão, agredir aparece como escolha aparentemente «natural».
De uma forma ingénua, penso que, se lá pudesse ter estado, em Nápoles, naquele dia, perante uma mulher jovem, inteligente, bonita, como Marina era (e ainda é), gostaria de lhe ter tocado, acariciado, olhado nos olhos, tentando uma aproximação aos seus pensamentos, expetativas e medos. A agressão nunca me passaria pela cabeça perante alguém que, de forma despojada, decidiu «dar-se» aos seus visitantes. No entanto, serei diferente ou, quando inserida num grupo, faria exatamente o mesmo que aquelas pessoas fizeram — experimentar como seria magoar alguém, infligir dor a alguém, fazer chorar alguém… ?
Estará esta ânsia de subjugação, domínio, fome pelo poder enraizada dentro de nós e a empatia é coisa aprendida e não natural?
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