O mundo é um lugar imenso e simultaneamente uma pequena vilória provinciana. Sabemos o que certas celebridades do outro lado do mundo comem e bebem, de que gostam, de que falam, com quem fazem amor e a quem odeiam e sabemo-lo como qualquer bom coscuvilheiro da aldeia. Mas, num paradoxo com esta aparente proximidade (de um eu, tu e eles, transformados com facilidade num nós), é possível que alguém se esfume sem deixar rasto, que alguém que ontem era, hoje já não o seja. É possível que um Ele se mantenha um Ele, longe e teimosamente afastado de Nós.
Sigmund Krähe é um compositor alemão. Quando digo é, no presente do indicativo, estou a dar um grande salto de fé assumindo que ainda vive, que respira entre nós.
Até há um ano e tal atrás, seria possível encontrar no youtube centenas de composições suas, num canal em nome próprio, que não cheguei a conhecer. A maioria das composições são para órgão de tubos – dramáticas, obscuras, mas não demasiado rebuscadas. Algumas pecarão mesmo pela simplicidade, assemelhando-se a bandas sonoras de filmes de mistério e fantasia. Demasiado sintetizadas, num registo já ouvido? Talvez. Mas ainda assim com um travo épico que, pessoalmente, me fascina.
Nada de novo no mundo. Um artista a usar uma plataforma global para difundir a sua música. Um nome associado a centenas de registos musicais e nada mais.
Até há um ano. De um dia para o outro, Sigmund e a sua música desapareceram. O canal desapareceu do Youtube, apagado pelo autor ou pela plataforma. A partir daí começa a especulação: o que acontecera a Krähe e à sua música?
Como pode alguém ser e não ser? Ser apenas um nome, ser centenas de peças musicais, ser ouvido por milhares de pessoas, ser comentado, apreciado e também desdenhado e, num segundo, deixar de o ser? Deixar de ser para Nós, deixar de existir enquanto ser global, enquanto artista, desvanecer como um Houdini?
Uma das minhas professoras de mestrado, falando dos escritos dos alunos mantidos na «gaveta», diz-nos provocadoramente que aquilo que fazemos não é arte. E não fala da qualidade do que escrevemos, pois desconhece se a temos ou não ou sequer se tal coisa, a qualidade, é coisa quantificável.
Do que ela fala é da necessidade de haver uma comunidade que usufrui, que está envolvida na experiência, no ritual de fruição de uma peça de arte. Sem o outro não há arte.
Sigmund Krähe tinha o outro, o seu público, fazia arte, mas decidiu (decidiram por ele, morreu, enlouqueceu, aborreceu-se?) subtrair o estatuto de arte àquilo que fazia. Desaparecer com tudo. Sem o seu público, acabou-se a arte.
Acabou-se?
Bem, muitos dos seus seguidores tinham guardado uma substancial parte das suas composições e, chocados com a descoberta do canal apagado, com o passar dos dias e nada acontecer (um regresso noutro canal, noutra plataforma, qualquer coisa), decidiram criar canais para fazer reupload das músicas que tinham guardado para usufruto pessoal.
Um ano passado, são vários os canais com a música de Krähe e ninguém a vir reclamar direitos autorais da mesma. A arte perde o direito à maternidade mal nasce, torna-se pública, anda de mãos em mãos, corpo perdido numa orgia.
Mas, será correto? Se a vontade de um autor é desaparecer, ele e a sua arte, será correto ressuscitá-la para o mundo contra a sua vontade?
Pergunto sem malícia, sem ter uma resposta em mente. Porque se escrevo sobre isto é porque ouvi as músicas lançadas ao mundo por outras mãos que não as do compositor. Mas há em mim o egoísmo de achar que aquilo que faço, que crio, embora precisando dos outros para SER, é maternalmente meu.
Em adolescente ouvia esta música e vibrava sem perceber o seu essencial sentido. A tormenta da voz chegava, mesmo sem o entendimento da tormenta da letra.
Alice in Chains - Junkhead (Dirt - 1992)
Estudei num meio artístico, de à vontade em experimentar coisas diferentes, mas a minha educação ou tão simplesmente a minha personalidade desajustada do meio onde estava inserida, tornara-me rígida, muito utópica na maneira de fruir as coisas. Lembro-me de dizer a um colega de faculdade que viver, amar, deveria ser experiência narcótica suficiente, que a vida tinha mecanismos para nos levar ao êxtase sem necessidade de adicionar qualquer substância extra. Esta lembrança faz-me sorrir e praguejar sozinha.
Assim, no meio de um louco, desgovernado e típico ambiente adolescente e pré-adulto, eu era uma exemplar exceção. Eu não bebia, não fumava e não fodia. Não frequentava as festas deles porque não há nada pior do que estar sóbrio no meio do delírio alcoólico ou narcótico. Honestamente, arrependo-me. Sempre fui de uma ingenuidade confrangedora.
Hoje, a caminho da meia idade, percebo que todos temos uma qualquer droga de eleição, por muito obscura e distorcida que ela possa ser. Mesmo quando a vemos com olhinhos inocentes e não a chamamos por droga e tal apelido nos afronta.
Nos tempos que correm, confinados em casa ou tentando seguir com uma rotina embrulhada em medos, onde ações básicas, de elementar necessidade, se tornam em manobras de risco dignas de um filme de ação, rimos dos memes da velhinha que pede vinho à janela num cartaz, rimos das piadas da quarentena, dos excessos cometidos para acalmar este desassossego e medo interior. Excesssos alimentares, excessos alcoólicos. O consumo de álcool tornou-se uma droga aceitável, o medicamento do apaziguamento do desconforto que ninguém criticará, tornou-se droga fashion e fotografável.
Não por estas características, mas pela minha mentalidade muito pouco transgressora, esta é a minha droga de escolha.
É como uma amarra que se solta, mas sem que nos tornemos completamente desamarrados, uma descompressão que se sente, sem que se deixe de estar sufocado. Claro está que beber será como o uso de qualquer outra droga. Os excessos levarão, inevitavelmente, a uma adição em que o prazer é substituido pela necessidade.
Enquanto houver prazer, o mundo será, por um par de horas à noite, um sítio menos perigoso, haverá esperança, uma solução ao virar da esquina.
E entre gargalhadas, ideias malucas, mas surpreendentemente fantásticas, tomarão forma, ganharão vida e, com alguma sorte, haverá na sobriedade das restantes 22 horas, força suficiente para as colocar em prática.
Faleceu a 9 de fevereiro deste ano, aos 48 anos, o compositor islandês Jóhann Jóhannssonn. E não haverá nada de mais paradoxal nesta vida do que o fim, a perenidade do corpo físico de alguém capaz de criar o intemporal, o imortal, o transcendente. O paradoxo entre a banalidade da existência humana e a unicidade de algumas das suas criações.
Como melancólica assumida, a morte deste compositor grita-me aos ouvidos como um último andamento de uma composição histriónica. Mas, a melancolia é também a capacidade de distanciamento, de observar em contemplação o caos, a beleza, a capacidade de sentir a vibração da vida em toda a sua potência. Assim, apesar da partida do homem, sento-me e ouço a sua criação. Sinto o eco da sua existência nas notas que se compõem em melodias que me chamam e que já foram mínimas, semínimas e colcheias escritas por aquela mão numa pauta em branco. E enquanto eu conseguir ouvir, enquanto eu sentir no corpo a vibração das suas criações, o homem não morrerá. E isso basta…
«The candlelight vigil», banda sonora do filme Prisoners, de Jóhann Jóhannssonn.
Ando sempre fora de tempo, atrasada nos meus textos sobre as novidades, as tendências, seja na música, na literatura, nas opiniões, no cinema.
Falar do filme Dunkirk em outubro, quando o mesmo saiu em julho ou agosto, é daquelas coisas que não devem interessar nem ao menino jesus. Mas apetece-me. E é quanto basta para eu escrever um texto. Na realidade, este post nem é uma crítica ou avaliação ao filme. A vontade de falar de Dunkirk nasceu da audição da banda sonora, da autoria do compositor Hans Zimmer. Confesso-me uma apreciadora das bandas sonoras de Zimmer e ainda mais daquelas em que ele teve colaboração de Lisa Gerrard, uma das minhas vozes preferidas (não é o caso deste filme). Não raras vezes ouço as bandas sonoras sem sequer conhecer o filme para o qual foram compostas.
Embora o trabalho de Zimmer seja sempre, em certo ponto, uma composição sem falhas, que «casa» bem com a imagem, nem todas as composições poderão ser chamadas de memoráveis, passíveis de serem perpetuadas na memória de quem as ouve/vê. Existem, no entanto, algumas que, mesmo passando os anos, mas mais depressa me lembro da banda sonora de Zimmer do que da história, do filme em si.
Quando fui ver Dunkirk — coisa rara, porque ultimamente não sou grande frequentadora de salas de cinema — o que de imediato se tornou evidente era a presença imposta, incómoda, da banda sonora. E quando digo incómoda, não é de todo uma crítica. Quando um filme retrata acontecimentos extremos, de enorme tensão, aquilo que o realizador, o argumentista, o compositor quer não é sentir indiferença por parte do público, é incomodá-lo, arrastá-lo para o pântano emocional daquela história, fazê-lo passar as mesmas amarguras que aqueles personagens, aterrorizá-lo, meter-lhe medo, tirá-lo da sua rotina. No entanto, somos constantemente bombardeados por emoções no nosso dia a dia, de tal forma que quase nos tornamos indiferentes, cada vez mais difíceis de perturbar, tornando a tarefa dos criativos, criadores cada vez mais difícil.
A banda sonora, nos filmes, sempre serviu para reforçar o tom emocional pretendido, gerir as emoções da narrativa cinematográfica. Um clímax nunca será um clímax «a seco», sem som; uma perseguição, o medo do perseguido, nunca chegará a medo sem a ambiência criada pela banda sonora (mais não seja, na gestão dos silêncios).
O que surpreende nesta banda sonora é que ela não aparece aqui e ali. Ela está sempre (serão, no total, um par de minutos, os momentos do filme em que a banda sonora desaparece). É uma presença tão esmagadora que não é apenas uma banda sonora, é uma personagem em si. E num filme com vários personagens, várias histórias paralelas, onde nenhum personagem é destacado, afirmado como personagem principal, poderei declarar sem exagero que a personagem principal deste filme é, sem sombra de dúvida, a composição sonora de Zimmer.
Não direi que sem esta banda sonora o filme nada era, mas sem esta banda sonora, nenhum espetador teria saída das salas de cinema em profunda agitação, em lágrimas, aterrorizado, estupidificado com as contradições humanas.
Ouvindo «The mole» ou «supermarine», surge um quase apelo suicida, um desespero que, apanhando o ouvindo desatento, o fará necessariamente chorar. É esta subjugação, este saber-se manipulado pela emoção, transportado para fora do Agora, ou antes, inundado no Agora por um rol de emoções/pesadelos que não pertencem ali, que tornam esta banda sonora tão especial. Claro que há um uso sonoro de certos elementos que favorecem este descontrolo emocional. Sejam sons semelhantes a metralhadoras, um tic-tac de um relógio, um pulsar de um batimento cardíaco, a precursão acelerada que nos leva a um sentimento de urgência, perigo constante, que transportam o ouvinte a um ambiente acossado, de guerra, no limite da resistência humana.
Nolan e Zimmer tiveram um casamento perfeito com Dunkirk, mas como a composição de Zimmer vive plenamente sem o filme, como a música chama por mim sem necessitar do auxílio das imagens que a inspiraram, terei de bater palmas de pé a Zimmer.
Ainda no rescaldo da vitória de Portugal no Festival da Eurovisão da canção e de toda a comoção que se lhe seguiu (e que persistirá por mais alguns dias, certamente), dei por mim a tentar racionalizar esta euforia, a tentar desconstruir e perceber esta alegria generalizada.
No fundo, pressinto que nada disto teve a ver com música e esta minha observação não tem como finalidade desprestigiar ou menorizar a qualidade da música vencedora (como já referi noutro post, gosto da música, gosto do intérprete). Observando de perto, à lupa, aquela vitória foi como o recuperar de uma humilhação. Décadas a ver os «12 points» a passarem e a nunca cair no «nosso cesto», a derrota, os últimos lugares a surgirem como inevitabilidade. Aprendemos a desprezar o evento em questão. A fraca qualidade, a transformação de um espetáculo musical num espetáculo carnavalesco, ajudaram a esse desprezo, mas ainda residia aquela frustração recalcada, aquela moinha que roía lá dentro, coisa típica de quem é votado persistentemente ao desprezo.
Como li num mural de um amigo facebookiano, o nosso percurso neste festival assemelhou-se a um daqueles filmes em que o protagonista passa a história a levar porrada, levantando-se, sendo derrubado, persistindo num treino incansável até chegarmos ao clímax do filme, onde o nosso herói derrota quem o humilhou com um enxerto de porrada épico. Não nos limitámos a ganhar depois de cinco décadas de desprezo, fizemo-lo de forma épica.
Tomando-me como cobaia nesta minha pseudoanálise antropológica, apesar de considerar o festival uma espécie de carro alegórico do espetáculo televisivo, uma futilidade básica na área musical, ver os 12 pontos serem-nos atribuídos pelos júris de vários países e pelo voto popular, ver a bandeira nacional destacada num primeiro lugar (e atenção, tenho-me como a perfeita antítese do pensamento nacionalista, patriótico), ver aquilo foi estranhamente especial, uma espécie de catarse. Foi o enxerto de porrada épico, foi o aplacação do despeito, de uma certa frustração. Como se uma qualquer justiça «kármica» tivesse sido reposta, porque, no fundo, há sempre alguma metafísica metida ao barulho, mesmo na vivência do ser mais racional. A partir de agora será possível remeter o evento para a insignificância que lhe é devida, a partir de agora é possível ignorar porque a frustração já lá não está.
Observando agora o fenómeno de um ponto de vista mais alargado, voando e olhando de cima, a euforia generalizada por esta vitória musical vem juntar-se a um grupo de recentes fenómenos positivos: vitória num campeonato de futebol europeu, distinções várias na área do turismo, um aumento inequívoco de turistas no nosso país. E a isto juntam-se mais outras pequenas vitórias, distinções em diferentes áreas, etc.
Num país onde o culto do coitadinho, do desgraçadinho, da vítima, da humildade em jeito de submissão sempre foi coisa muito nossa, característica intrínseca, sempre tivemos uma óbvia necessidade de validação, aprovação externa. Somos todos uns zés-ninguéns até alguém de fora nos demonstrar o contrário.
A máxima: «se eu não gostar de mim, quem gostará?» nunca funcionou para nós. Acho que somos mais do género: «se ninguém gostar de mim, como eu poderei gostar?»
Como é que esta síndrome de inferioridade começou, não faço ideia, qual o seu combustível, as suas motivações, não saberei dizer, mas acho que por estes tempos descobrimos a pólvora. O nosso triste fado já não nos embala como dantes, já não queremos adormecer ao som das nossas lamúrias. Descobrimos uma nova banda sonora.
Assim, parece-me que esta euforia coletiva advém da recente descoberta do sabor doce da felicidade, do reconhecimento exterior pela luta, pelo esforço. Há uma certa estranheza nesta mudança de vítima para herói, há excessos próprios de quem prova e gosta do elixir da vitória. Toda a mudança de paradigma tem alguma convulsão envolvida, é inevitável.
Por isso, este assombro, esta quase loucura por Salvador Sobral, pela vitória num mero festival musical marginal, é, acima de tudo, simbólica, muito pouco objetiva. Uma necessidade básica de reconhecimento misturada com a euforia da descoberta do sabor doce da vitória.
Não é o Salvador, somos nós.
Momento da vitória da canção portuguesa no Festival da Eurovisão de 2017 (fotografia retirada daqui).
Uma das minhas primeiras memórias preservadas durante décadas remonta a 1980/81, teria eu uns dois ou três anos e o que o ouvido captou e os olhos míopes ajudaram a gravar em memória foi o início da transmissão do Festival da Eurovisão da Canção. Numa época em que o entretenimento televisivo era bastante limitado e, morando eu numa zona rural, o entretenimento de uma forma geral era coisa arcaica quando comparada com os tempos que correm, a transmissão do Festival da canção era um momento de grande excitação e expetativa, vivido em família, motivo de conversa nos dias seguintes, momento televisivo imperdível.
Na memória desse longínquo ano ficou o hino inicial da transmissão, a imagem gráfica básica, mas que marcava o ponto de partida da grande noite que se seguia, tornando-se assim memorável.
Hino Eurovisão RTP-ZDF (Marc-Antoine Charpentier - Te Deum)
Nos anos seguintes, a expetativa manteve-se. A transmissão do festival continuou a ser ponto alto no entretenimento em família, fonte de angústia e excitação (os momentos das votações dos vários países, o raio da vitória que nunca nos calhava na rifa, o complô evidente entre os países bálticos, a amizade entre os países escandinavos e o raio dos coitadinhos dos portugueses nunca tinham direito a nada). No festival de 1991 apareceu uma das minhas canções favoritas de sempre. A canção francesa de Amina agarrou-se-me à memória de tal maneira que, numa época sem internet e sem grandes recursos de procura musical, por lá hibernou, recordada em trauteios volta e não volta. Com o surgimento décadas depois do youtube, busquei Amina e trouxe-a à tona da memória e ali estava novamente «C'est le dernier qui a parlé qui a raison», sons de outrora disponíveis para serem relembrados.
Amina, Cést le dernier qui a parlé qui a raison (a música de Amina ficou em primeiro lugar empatada com a Suécia, mas este último país, tendo obtido mais vezes 12 pontos, foi declarado o vencedor do certame).
Com o avançar da década de noventa e com a chegada dos anos 2000, o fervor pelo festival foi desvanecendo lentamente. Novos canais televisivos surgiram, a qualidade das músicas apresentadas começou em franco declínio até chegarmos a um ponto em que o festival se transformou num espetáculo visual aparatoso, mas musicalmente pobre, não justificando que se gastasse horas a acompanhar a sua transmissão. A língua inglesa passou a ser língua de escolha preferencial para as letras das músicas, o género dominante é o pop (nada contra), mas, salvo raras exceções, o que se vê são cópias rápidas, sem grande originalidade, pobres a todos os níveis, transformando o concurso num desenrolar de «músicas» sem interesse.
Este ano, um certo fervor do passado regressou. Se há uns quantos anos não faltariam por aí pessoas que nem sequer saberiam quem era o concorrente português à eurovisão, este ano isso será fenómeno raro. A escolha de Salvador Sobral não convenceu toda a gente — para alguns, a música não será suficientemente festivaleira, musicalmente boa demais para o certame em questão (o que diz muito sobre a qualidade atual percecionada do festival), mas para outros, adequando-se ou não ao propósito para o qual foi escolhida, é uma boa música que nos dignifica enquanto país concorrente.
A quem neste momento abra um qualquer agregador de notícias, por lá encontrará uma boa quantidade de artigos sobre o concorrente português, a quem abra o youtube, por lá se deparará com diversas versões da música, entrevistas ao músico, vlogs de opiniões sobre a canção portuguesa. E o interesse por um certame, até à data decadente por estas bandas, ganhou um ímpeto inusitado que trouxe o Festival da Eurovisão para tema central das conversas de café e das redes sociais.
Salvador Sobral, Amar pelos dois.
Pessoalmente, gosto da nossa música e embora não tenha acompanhado o festival nas últimas décadas, as memórias da infância, aquele vislumbre de tempos idos, leva-me a depositar um carinho especial por este evento. A memória regressa à infância, regressa ao frenesim daqueles tempos e secretamente sussurro:
No Dia Internacional da Mulher podia falar na descarada subversão que é feita da data pelos agentes comerciais, transformando um dia que assinala a luta pelos direitos das mulheres, num dia de florzinhas, prendinhas catitas, jantaradas animadas entre amigas, um dia de celebração do ser-se mulher, quando essa celebração deve ser diária e não coisa marcada em calendário.
No Dia Internacional da Mulher podia falar nos penteados, zumba, unhas de gel e massagens oferecidos pela Câmara Municipal de Coimbra como forma de celebração da data, reduzindo a mulher ao estereótipo da futilidade do costume. Não que as mulheres (algumas) não apreciem unhas de gel e zumba (not me), mas assinalar uma data que promove a luta pela igualdade, a equidade de género, apelando aos estereótipos femininos enraizados é só um bocadinho parvo.
No entanto, não me apetece desenvolver nada disto. Não em apetece chafurdar nas polémicas do costume. No Dia Internacional da Mulher, apetece-me falar de uma mulher.
Normalmente não sou grande ouvinte de música pop, mas dei de caras com esta belezura há umas semanas. Laura Pergolizzi, conhecido por LP, cantora, compositora, letrista, faz umas músicas à maneira. Depois, a parte estética acaba por completar o meu recente fascínio. Longe da imagem dos ícones pop que fazem da exposição do corpo parte do pacote musical (não há música pop sem nádegas firmes a badalar, mamocas a espreitar, roupinhas reduzidas a deixar muito pouco à imaginação), LP distancia-se desse tipo de diva pop. Lésbica assumida, o seu aspeto físico deixa a dúvida se estamos a olhar para um homem ou uma mulher. Magra, vestida até às orelhas, sobra apenas a música, a voz, as letras. A androgenia casa de forma perfeita com a voz forte, feminina e combativa. E os videoclipes, apesar de sensuais, são de uma sensualidade feminina, um olhar feminino sobre a mulher, nada foleiro, nada chunga. A mulher pode estar seminua ou mesmo nua sem que se passe a imagem de que se olha um objeto, um ser sexualizado indutor de prazer (dou por mim a pensar, depois destas palavras, que hoje estou um bocadinho lésbica).
No Dia Internacional da Mulher, a música de uma mulher como banda sonora para o dia que marca uma luta que ainda não acabou.
Quando morrermos, seremos a soma de todos os cheiros cheirados, de todas as palavras proferidas e ouvidas, de todos os gestos e agressões sentidos e provocados, de todos os sabores provados com delícia ou repugnância, de todas as imagens captadas pela nossa retina e transformadas em memórias visuais e de todas as músicas ouvidas, sons da natureza ou da urbanidade que nos remetem para episódios inteiros de uma vida passada. Atingimos o nosso frasco cheio no preciso momento em que fechamos os olhos para sempre.
Este prólogo vem a propósito da música e da sua preponderância nesta soma de todas as partes, na equação que começa a ser desenhada desde o dia que nascemos. E da música à nostalgia musical, maleita que começa a bater com força a partir da idade adulta, mas que se faz sentir desde tenra idade, vai uma brevidade de tempo que se olha como uma vida, um infinito de evocações e emoções.
Ainda mal tinha posto os pés na adolescência e já sentia uma certa nostalgia ao ouvir os Ondachoc e Ministars, embora os considerasse uma autêntica piroseira infantil. Aquelas notas remetiam-me para um tempo de infância, de inocência, letras cantadas aos saltos no meu quarto, onde cada objecto poderia ser transformado num microfone improvisado, verões quentes e festas de aniversário. Tempos idos e olhados com saudosismo mesmo que na altura deste primeiro arrufo nostálgico fosse apenas uma adolescente.
Agora, ouvindo secretamente o meu ídolo da pré-adolescência, Bryan Adams, faço um elogio mental ao álbum Waking up the neighbours. Recordo o primeiro concerto musical a que fui, a ambiência do local sob o meu olhar de doze anos, a emoção que senti naquela noite, a adrenalina que pululava em mim de cada vez que ouvia a cassete daquele álbum no meu walkman. Não posso dizer que actualmente seja grande fã do Bryan Adams, mas ele está num lugar especial das minhas memórias musicais.
Ainda na mesma altura, entre os dez e os catorze anos, costumava ouvir rádio já deitada na cama, como preâmbulo ao sono que viria. E se agora, nos meus trinta e sete anos, me aparece pela frente as músicas Everybody’s got to learn sometimes dos The Korgis, I’m not in love dos 10cc, Forever young dos Alphaville, Wuthering heights de Kate Bush e algumas outras, imediatamente viajo até àquelas noites, quarto escuro, o peso dos cobertores e a música a inventar histórias mágicas na minha cabeça de adolescente. Algumas delas também me transportam até viagens no autocarro do colégio. O condutor ligava o rádio sempre na mesma estação na viagem de regresso a casa e no programa de discos pedidos estas músicas figuravam invariavelmente. Mesmo que, numa análise racional, possa considerar algumas destas sonoridades lamechas, datadas, continuo a adorá-las. Sente-se a vibrar no peito uma espécie de saudade de tempos que não se repetirão, de momentos a que não chegámos a dar o devido valor, mas que sob o prisma da nostalgia, são preciosos, tesouros que guardamos com ternura.
Já depois dos trinta anos comecei a revisitar esporadicamente temas musicais que foram pontos altos da minha adolescência, embora fossem evocadores de momentos mais depressivos do que propriamente edílicos. Alice in Chains, Paradise Lost, Guns N’ Roses, Skid Row regressaram ao meu repertório musical e a caminho dos quarenta, recuperei os Faith No More, por quem morria de amores. Ouvir Man in the box, Dirt, Down in the hole, Would? dos Alice in Chains pinta, frente ao meu olhar mais envelhecido, dias e noites de lágrimas vertidas na almofada da cama, uma sensação de estar desajustada do mundo que me rodeava, um inconformismo que, ao invés de me exaltar, me tolhia os movimentos.
Estas evocações com um travo suicida são temperadas por um outro velho favorito — a Paixão Segundo São Mateus de Bach. A esta obra dividida em três CDs, ouço-a há vinte e cinco anos e não foi preciso repescá-la devido a um assalto nostálgico. Depois de tantos anos, com letras em alemão quase decoradas apesar de poucas palavras encontrarem algum significado na minha cabeça, certos momentos da obra são, ainda assim, canais para um dia de sol com vinte anos. Baixa de Lisboa, Chiado, pessoas sobem e descem a rua, Fernando Pessoa permanece estático perante os avanços dos turistas fotógrafos e eu, à saída do metro, de auriculares do discman nos ouvidos, observo a cidade, as pessoas, em busca de uma história pessoal em movimentos banais, sinto o calor do sol, que tem o condão de desanuviar a nebulosidade dos meus pensamentos e ouço o tenor, numa voz enlevada, aos meus ouvidos:
Ich werde von nun an nicht mehr von diesem Gewächs des Weinstocks trinken bis an den Tag, da ichs neu trinken werde mit euch in meines Vaters Reich.
Agora questiono-me que sonoridades presentes serão evocadas no meu futuro (se o tiver). Que músicas me farão viajar até ao passado e que momentos específicos serão recordados com nostalgia. E esses momentos, que chegarão em fragmentos, em reminiscências despoletadas pelo som de uma música, que cheiros, sons, movimentos trarão ancorados e que me farão pensar nesta era, neste agora, como sendo especial, irrepetível, um instante absolutamente perfeito.
Não me apetece escrever sobre quem partiu. Estão os blogs cheios de Requiescat in pace ou, numa alternativa mais grotesca, de insultos vários. Rumando contra a corrente, falarei dos que ainda por aqui estão, daqueles que de alguma forma contribuem para o filme da minha vida, dando-lhe som, imagens, um guião de fantasia.
Nunca fui grande consumidora de música pop. Em adolescente ouvia, noite e dia, hard-rock, heavy-metal ou então música clássica. Embora hoje seja mais eclética nas escolhas e haja espaço para novos géneros musicais, a música pop não tem grande expressão na minha seleção musical.
No entanto, há quase vinte anos que tenho um fraquinho musical por um artista pop. Francesa, mas nascida no Canadá, já vendeu milhões de discos nos países francófonos, consegue arrastar multidões aos seus concertos, tornou-se uma diva pop e ícone da comunidade LGBT. Os clips das suas músicas são como pequenos filmes (produzidos com um cuidado cinematográfico), os seus concertos são megalómanos com direito a um guarda-roupa exclusivo, bailarinos em coreografias laboriosas, e todo um aparatoso sistema de luzes, imagens e mise en scene.
Mylène Farmer, cantora e compositora, com uma voz frágil (um fio de voz) consegue, ainda assim, fazer maravilhas com tão pouco. O tempo passa e regresso-lhe aos braços sem reservas. Músicas que me fazem dançar pela casa, músicas que me fazem chorar como uma adolescente por um Bieber, músicas que elevam aquela mulher a um olimpo pessoal. E a atração musical é também uma atração pela pessoa, pelo mistério com que Mylène, tão bela, se envolve.
A Mylène, que venha tudo o que uma diva pop tem direito.
Mylène farmer - Je te dis tout (álbum Monkey me)
Mylène Farmer - Diabolique mon ange (edição do clip com imagens dos queconcertos da tourné Timeless)