Tenho dedicado os últimos meses à leitura exclusiva no feminino e quando se lê apenas no feminino, mais facilmente se percebe as subtis (e não tão subtis) diferenças entre a escrita feminina e masculina. Se posso concluir que as diferenças notadas serão características exclusivas da escrita feminina, obviamente que não. Mas serão certamente mais frequentes ao ponto de se tornarem fatores característicos.
E uma dessas características é a narrativa não totalizante, mais fragmentada, que não procura dar respostas e que se fixa naquilo que a vida é: retalhos, fragmentos, perguntas sem resposta ou com respostas insatisfatórias, felicidade transitória, descontinuidade e confusão. Há uma espécie de serenidade na consciência da impossibilidade de se abarcar o mundo todo e de se chegar a uma felicidade completa e dominante.
Comecei por ler dois livros (para fins académicos) de não ficção:
Communities of Women - An idea in fiction, de Nina Auerbach
Um quarto só seu, de Virginia Woolf
O primeiro livro fala sobre a representação das mulheres, enquanto personagens em comunidade, na literatura, explorando alguns exemplos literários em que as mulheres aparecem como uma comunidade feminina. Apesar de ser um livro já com alguns anos (1978), pareceu-me de grande contemporaneidade. Há um fator de estranheza, ainda agora, quando vemos retratadas, em livro, uma comunidade (seja familiar ou social) exclusivamente ou dominantemente feminina. Mas não sentimos semelhante estranheza quando se passa com comunidades masculinas.
O livro de Virginia Woolf não fala na representação da mulher enquanto personagem, mas é um ensaio sobre a mulher enquanto criadora, enquanto escritora. Publicado originalmente em 1929, este ensaio que é baseado em duas conferências dadas pela escritora na época, embora possa ser visto como algo datado (felizmente, alguma água passou pelos nossos moinhos), ainda assim é essencial para percebermos aquilo que está na base daquilo que a mulher é hoje, como criadora, como autora, na sociedade atual. O presente não é feito sem conhecimento do passado e o nosso passado é aqui, nesta obra de Woolf, sagazmente explorado. E, apesar do passado parecer passado, o melhor é ir olhando para ele, de forma a se evitar que ele teime em ser presente.
Na ficção, li dois livros de duas autoras internacionais e dois livros de duas autoras portuguesas.
O pequeno amigo, de Donna Tartt.
O acontecimento, de Annie Ernaux.
Já tinha lido dois livros de Donna Tartt (O Pintassilgo e A história secreta) e resolvi comprar este livro que, cronologicamente falando, foi o segundo romance da escritora. Donna Tartt reúne duas características que parecem antagónicas, mas que para mim, enquanto leitora, funcionam bem: consegue ser bastante descritiva, demorar um tempo desmesurado em pormenores, e, ainda assim, consegue injetar na narrativa um determinado suspense que transforma os seus livros em page turners. Senti isso n’ O Pintassilgo e na História secreta, mas nem tanto com esta obra. A dada altura confesso que fiquei um pouco desmotivada, sem que isso me levasse a abandonar a leitura. No entanto, quando cheguei ao final, o livro aterrou-me todo em cima. Ao contrário das outras obras da autora, em que havia uma necessidade de tudo ficar explicado e mais explícito, este livro tem esta característica de ser real, como a vida - nem sempre temos resposta para tudo, nem sempre as coisas fazem total sentido e nem sempre as pessoas são exclusivamente boas ou más. É tudo bem mais complicado do que isso. E foi esta incompletude, esta sensação de falta que me fez gostar bastante do livro.
Relativamente ao livro de Annie Ernaux, li-o de uma assentada. Não tenho palavras para descrever os livros de Ernaux. Ou seja, não tenho palavras para descrever o que sinto ao ler os livros de Ernaux. Gasta-se muito o adjetivo brutal, mas será o melhor adjetivo. Brutal. Ernaux é crua na sua escrita e fala-nos com uma espécie de distanciamento necessário. Os acontecimentos de uma vida não são retratados para explorar emocionalmente o leitor. A força do que é descrito está, não na exploração emocional, mas na sua vista banal. Cada vez gosto mais da escrita de Annie Ernaux.
A história de Roma, de Joana Bértholo.
Teoria das catástrofes elementares, de Rita Canas Mendes.
Quando terminei o livro de Joana Bértholo, andei umas horas a cismar pela casa. Depois, abri o bloco de notas no telemóvel e escrevi: há livros que, ao terminar a última linha e fechando-se a capa, dizemos: gostei. Há outros que nos deixam desarrumados.
Bértholo deixou-me assim, como um quarto desarrumado, com tralha espalhada por todo lado. Como já deve ter dado para perceber, não sou muito de conseguir fazer um resumo da história (ou talvez seja capaz, mas não me interessa tanto), focando-me mais neste canal que sou, enquanto leitora (que também escreve). E esta História de Roma mexeu comigo enquanto leitora. Achocalhou-me, desarrumou-me e, placidamente, ficou especada a ver o meu desnorte. Joana Bértholo merece todos os prémios que por aí venham. Quando for grande, quero ser assim: como ela, como Annie Ernaux, como Donna Tartt e também como a minha mais recente descoberta, a Rita Canas Mendes. Quero ser como todas elas.
O livro de Rita Canas Mendes está construído tal como eu mais gosto: capítulos que parecem pequenos contos, numa união narrativa em fragmentos, como a vida numa soma de pequenos/grandes momentos. Como gosto de escrever assim, achei Teoria das catástrofes elementares como uma viagem a um local onde me sinto bem, me sinto à vontade, um local onde há muito o que explorar, mas onde me sinto acolhida no meio do caos. Mais uma vez, é esta característica da vida em retalhos, do incompleto e do indizível, que torna este livro uma agradável surpresa.
Derry Girls, criado e escrito por Lisa McGee (disponível na Netflix).
Decameron, criado por Kathleen Jordan (disponível na Netflix).
Campo de papoilas, com argumento de Ioana Moraru (RTP2, disponível em RTP Play).
Na escrita para cinema e televisão, destaco Derry Girls como a série mais divertida que vi nos últimos tempos. É daquelas coisas que se pode dizer sem medo: está tudo bem nesta série – argumento, realização, interpretação, banda sonora. Tudo. Com uma escrita apurada, Lisa McGee conseguiu mostrar os fragmentos que compõem um país, as suas dissonâncias, as suas brutalidades (a Irlanda do Norte, nos tempos do IRA), inserindo todos estes aspetos como elementos do quotidiano na vida de um conjunto de adolescentes. É daquelas séries que sei que vou rever e, na qual, do alto dos meus 45 anos, encontro reconfortáveis referências e identificações, apesar das diferenças a nível político e social.
Decameron é também muito interessante e com um humor que identifico como muito feminino. Há algo no caos, na desordem e no desespero (retrata a história de várias pessoas durante a peste negra, quando se refugiam numa quinta no campo, para fugirem à doença), que torna a série estranhamente cómica e é essa estranheza do humor no caos que a faz ser tão brilhante. Gostei bastante e vi num fim de semana.
Por último, o Campo de Papoilas tem um argumento que não é convencional. Parece que estamos a ser levados para um lugar, desviamo-nos para outro (que era o lugar onde era suposto estarmos) e depois o filme acaba, deixando-nos a desejar um regresso ao lugar inicial. Fiquei um bocado a pensar naquilo e, a nível de história, estava ali tudo o que realmente era o que deveria ser contado, mas o desenho convencional dos argumentos e das narrativas, no geral, deixa-nos a braços com a vontade de um desenlace romântico, quando o que estava em causa nesta história era outra coisa. O foco era o desconforto de um polícia homossexual dentro de uma corporação policial obviamente homofóbica e tóxica, e quando esse desconforto transforma o polícia homossexual, o molda a esse ambiente, o deixa num limbo estranho de aversão/conhecimento/aceitação ou tolerância por parte dos seus pares. Achei bastante interessante, precisamente por me deixar essa sensação de incompletude e por não preencher os meus desejos narrativos, enquanto espetadora. Escrita pouco convencional e, se não o fosse, o mais certo era não ter pensado mais no filme.
Há onze anos, andava eu a pesquisar para a minha tese de mestrado sobre a publicação de manuais de conduta para mulheres durante o Estado Novo, passando dias inteiros enfiada na Biblioteca Municipal do Porto, entre livros mofentos (no sentido literal e figurativo). Quando mais investigava, mais pilhas de livros me apareciam na secretária. A primeira metade do século XX estava pejada de publicações deste tipo de manuais. Havia uma necessidade óbvia de formar a mulher para que ela encaixasse num molde de submissão, um molde que não permitia extravasamentos. Li páginas e mais páginas de como a mulher se devia comportar, como devia gerir a casa, como devia se submeter ao marido, como devia criar e educar os filhos, como devia ser temente a deus e se resignar (com alegria) ao seu papel de mãe, dona de casa, cuidadora e educadora. À mulher, estava reservada a santíssima trindade: lar, marido e filhos. E era triste ver livros editados originalmente no século XIX (em vários países da Europa), serem considerados, em meados do século XX, nas suas edições e reedições portuguesas, livros de vanguarda para a conduta feminina.
Em 1950, o século XX teimava em não chegar a terras lusas.
E embora as minhas pesquisas tivessem o seu quê de depressivas, sessenta e setenta, oitenta anos pareciam uma eternidade. Eu sentia uma enorme segurança na passagem do tempo. Todo aquele discurso encerrado naquelas páginas era obsceno e feria-me, mas via-o à distância, como uma peça histórica de museu, um mundo e uma visão que tinham ficado no passado.
A situação complicou-se quando comecei a fazer pesquisa bibliográfica para fins comparativos, de forma a estabelecer uma análise de fratura ou continuidade entre os diferentes períodos políticos. Qual seria a visão sobre as mulheres entre 1900 e 1932 (um período que ia da monarquia, à instauração da República, até à implementação do estado Novo)? Seriam aquelas publicações dos manuais de conduta femininos durante a ditadura uma continuidade do que já vinha a ser publicado no início do século ou, num contraste, uma fratura com o passado?
Em cima da escrivaninha da biblioteca, pousaram-me dois livros de Ana de Castro Osório. Um deles, Às Mulheres Portuguesas, publicado em 1905, ainda durante a Monarquia, e o outro, A mulher no casamento e no divórcio, publicado após a instauração da República, em 1911. Ler Ana de Castro Osório era como tê-la à conversa ali ao meu lado, mas num português de outros acordos ortográficos. Não havia bolor nas suas palavras e cem anos faziam-se num nada ali ao virar da esquina. Havia um fulgor combativo, uma necessidade de mudança nas suas palavras e havia ainda uma compreensão de que a mulher não era apenas aquela do seu grupo social e intelectual. Num Portugal rural do início do século XX, a mulher era analfabeta, beata, devota a deus e ao trabalho e à família e Ana de Castro Osório percebia que havia muito por onde a mudança lavrar, que havia muito terreno a desbravar, mas havia nas suas palavras a confiança nessa mudança.
Quando comecei a ler o livro publicado após a instauração da República, A mulher no casamento e no divórcio, acabei por desabar. Não exagero nem estarei a efabular para fins literários se vos disser que chorei. Estava sentada numa biblioteca pública, com um livro com mais de cem anos entre mãos, a limpar as lágrimas que me iam caindo rosto abaixo, para não as deixar macular as preciosas folhas centenárias.
A mulher no casamento e no Divórcio, Ana de Castro Osório, 1911.
Num livro que analisava as recentes alterações jurídicas implementada após a instauração da República, leis que finalmente configuravam o direito da mulher ao divórcio, mas também à educação e ao voto, a alegria de Ana de Castro Osório transpirava em cada linha. Ela percebia que ainda havia muito a fazer, mas a máquina da mudança, a tão necessária transformação do papel da mulher na sociedade, estava em movimento. E aquele tratado feminista em forma de compêndio jurídico fez-me chorar, não pelo que tinha escrito nas suas páginas, mas por tudo aquilo que eu sabia que lhe procederia.
“Minha queria Ana, a seguir virá o caos, a seguir virá o obscurantismo. A seguir serás silenciada, a seguir a tua carreira literária ficará reduzida à literatura infantil, a seguir as tuas palavras serão consideradas um atentado ao pudor, palavras blasfemas, contra a moral e os bons costumes. A seguir estas leis serão revogadas e à mulher restará o lar e a submissão ao marido. A seguir virá o silêncio”.
E se vou esquecendo, por vezes, aquela tarde na biblioteca, tem dias em que as notícias da atualidade a trazem de volta, com a força da necessidade da lembrança.
Naquela tarde de 2013, adquiri o mais precioso conhecimento de toda a minha vida académica: não há liberdades garantidas e irrevogáveis. A luta tem de ser permanente, constante e contínua, porque, mal baixemos a guarda, não faltarão aqueles que se aproveitarão da nossa imobilidade para nos submeter aos seus ideais podres, bolorentos e arcaicos.
Nos cinquenta anos de Abril, só desejo que nenhuma mulher do futuro leia relatos da nossa época com semelhantes lágrimas nos olhos às que verti quando li as sábias palavras de Ana de Castro Osório.
Que as nossas liberdades sejam tesouros que preservemos a todo o custo e que nunca as olhemos com os olhos da indiferença e do hábito. Porque num repente, numa nossa desatenção, a distopia pode fazer-se realidade.
Refugiava-me por detrás de um semblante azedo e de um mutismo acusatório. Parecia-me impossível que ele não compreende-se o que me atormentava, as aflições e inseguranças que me acossavam. Cheguei a comentar com uma amiga: “Será que é preciso fazer um desenho?” As minhas frases curtas, os meus silêncios, as minhas lágrimas mal escondidas… as entrelinhas que eu esperava que ele conseguisse ler e interpretar passavam-lhe ao lado, como uma brisa. Se inicialmente julguei que ignorava o que, para mim, era uma enxurrada de informação que eu lhe oferecia em desespero, com o passar dos anos percebi que não havia qualquer maldade associada. Os meus silêncios, para ele, eram apenas isso: a falta de som, de palavras; a minha expressão carregada de mágoa, as minhas reações hiperbólicas às pequenas coisas eram a manifestação de um dia menos bom, cansaço, saturação. Coisas da vida. Havia nele uma completa incapacidade de perceber esta linguagem em que me expressava.
Esta guerra nuclear que me abrasa, ele não a vê, desconhece-lhe a devastação associada.
Durante décadas questionei-me se o mal desta incompreensão era exclusividade dele, do meu marido, se era a minha forma de me expressar que era demasiado enrodilhada e complexa ou se era culpa de uma generalizada incapacidade masculina de perceber o colosso que é o hipertexto da comunicação feminina.
Esta semana, deparei-me com umas publicações de um realizador nacional sobre algumas das últimas novidades cinematográficas internacionais. Acabo por ter interesse em saber a opinião dos outros sobre livros e filmes, porque a escrita, seja de prosa ou argumento, é-me importante. Através destas análises literárias ou cinematográficas compreendo que a forma como vejo o mundo é, não raras vezes, idêntica à das outras pessoas. Mas, outras vezes, abre-se um fosso. Um abismo aparentemente intransponível entre eles e eu.
O primeiro filme era o filme francês Anatomia de uma queda e o segundo é o filme Vidas passadas. Gostei bastante dos dois filmes, principalmente do argumento e assim foi com um certa incompreensão que li as críticas que o cineasta fazia às duas obras. E o que o incomodava exatamente nestes dois filmes? O banal, a suposta simplicidade narrativa, a forma que apelidou de televisiva da cinematografia, a narrativa curta que era esticada, sobrando silêncios, porque não havia nada para se dizer. Alguns dos comentários às publicações referiam ainda a frieza da personagem principal do filme francês, a contenção ou falta de emoção (e esta crítica bateu ainda mais forte, porque Sandra Hüller tem um desempenho fenomenal, digno de todos os prémios que apareçam pela frente).
Fiquei a matutar naquelas apreciações, como normalmente fico quando a visão é diferente da minha. Tento compreender o que separa o meu mundo do dos outros, tento compreender a cisão, a fenda que separa aquilo que me move daquilo que mexe com os outros.
Pensava para mim que tanto um texto como o outro estavam muito bem escritos, dois argumentos excecionais, moviam-se no que estava nas entrelinhas, sem serem condescendentes com o espetador e, sim, o que não era dito, o que se sabia estrangulado, era de brutal importância e tudo aquilo que era essencial não acabava na palavra pronunciada. Nenhum dos dois estava enquadrado dentro de uma forma narrativa clássica, dentro dos seus gêneros, mas essa aparente desconstrução ou fragmentação só acrescentava densidade, nunca fragilidade.
“Mas será que é preciso fazer um desenho para que eles entendam?”
Quando percebi o que unia estes dois filmes produzidos em países diferentes, falados em diferentes línguas, um outro filme mais antigo assomou-se-me através das frinchas da memória. Um filme australiano de 2003 chamado Japanese story. Vi o filme há quase duas décadas e lembro-me da inusitada sensação do peso da tensão criada pelas emoções que não eram dissecadas em diálogos explanatórios, da estranha evolução narrativa e da evidência, antes mesmo de ter visto os créditos, de que aquele filme tinha sido realizado e escrito por uma mulher. E foi. Realizado por Sue Brooks e escrito por Alison Tilson.
Também Anatomia de uma queda foi escrito e realizado por uma mulher – Justine Triet, e o mesmo se passa com Vidas Passadas, escrito e realizado por Celine Song.
E sabendo que não havia nenhuma misoginia ou maldade na apreciação do realizador a quem eu cuscava nas redes sociais as críticas cinematográficas, restava a evidência de que, por vezes, é mesmo preciso fazer um desenho. Há uma característica nas escritas no feminino, quando são feitas com autenticidade ou, como lhe chama a escritora Elena Ferrante, verdade literária, que as afasta da escrita no masculino. E esta característica é a capacidade de compactar uma guerra nuclear no silêncio, naquilo que fica por dizer; um turbilhão ameaçador, esmagador num esgar de boca, uma tristeza profunda, uma vida que se esvazia de sentido num rosto que não se vira para trás, um grito altissonante contido numa mão que repousa despreocupadamente sobre uma perna. A devastação travestida de banalidade.
E pegando apenas nas minhas leituras no feminino dos últimos dois meses, Os anos de Annie Ernaux, Canção doce de Leila Slimani, Tudo é possível e Olive Kitteridge de Elisabeth Strout e Vidas de raparigas e Mulheres de Alice Munro, todos estes textos literários sofrem dessa aparente banalidade, de uma contenção que extravasa por todas as frinchas do que está implícito, de uma certa desconstrução genérica e de um desconforto que magoa. São textos que se constroem para além da leitura imediata, para além do ato físico da leitura, porque, embora todo o texto literário seja apenas palavras, quando há engenho de quem escreve, aquilo que fica por dizer, o silêncio nas entrelinhas é mais ensurdecedor do que qualquer frase descritiva de um grito uivado.
Talvez haja alguma estranheza perante uma escrita que ainda não é mainstream, a escrita no feminino, principalmente quando se fala de cinema, mas creio que com o tempo se chegue a um patamar em que não seja necessário fazer um desenho, em que qualquer um de nós, homens e mulheres, seremos capazes de ler nas entrelinhas, perceber os silêncios, sentir a ressonância das palavras que ficaram estranguladas numa banal frase breve.
Vidas passadas, de Celine Song, 2023.
Anatomia de uma queda, de Justine Triet, 2023.
Uma história japonesa de amor, de Sue Brooks, 2003.
Corria a década de noventa do século XX e eu, uma adolescente viciada em música e livros e que aspirava estudar cinema, vivia uma invulgar obsessão, uma curiosidade por um mundo particular, que não era o meu.
Desde que tenho memória, o universo homossexual masculino sempre surtiu em mim um estranho efeito apelativo. Olhando numa perspetiva histórica para esse passado, o da minha adolescência, alguns poderão justificar essa pretensa obsessão devido à obscuridade (a nível de representação artística) que os homens gays e as suas histórias tinham na época, ainda para mais num país como Portugal. Não era de todo fácil encontrar livros ou filmes em que uma personagem homossexual fosse representada e assim o pouco que encontrava, apreciava-o como se de um tesouro se tratasse.
Mas de onde vinha esta minha tara? E era uma tara, obsessão, uma curiosidade, era exatamente o quê? Durante estes vários anos nunca pensei muito em me justificar e bastava sentir-me bem a navegar naquele universo que não era o meu e no qual não estava representada, para continuar na minha senda por esses representações literárias e cinematográficas ─ a busca por uma total e completa representação daqueles que estavam num espetro afetivo tão distante do meu.
Foram precisas três décadas para finalmente me questionar e o questionamento vem porque a obsessão persiste. E se a pergunta agora se impõe é porque percebo, com alguma surpresa, que não estou sozinha. Se na adolescência eu era a rainha das cenas gays, agora eu sou um pequeno peão num gigantesco mercado. Se antes eu era a esquisita que vasculhava livros obscuros na biblioteca ou numa livraria, agora não preciso sequer de pedir, vasculhar, procurar. Há-os à farta, em vários registos, em vários formatos artísticos e de entretenimento.
E esta constatação não vem em tom de crítica. Olho em volto e falando com algumas adolescentes de agora (haverá frase com maior força para me atirar para os confins da meia idade do que esta?), percebo que também elas partilham em muito desta adoração por este universo LGBTQIA+. E o mercado obedece. Chegados à década de vinte do século XXI, vemos o entretenimento e a arte supostamente atentos e preocupados com as minorias, principalmente as minorias no que à orientação sexual e identidade de gênero diz respeito. Mas será que estão? Preocupados?
Percorrendo alguns canais de Youtube sobre este tema, é recorrente o surgimento de uma opinião interessante: todo o conteúdo LGBTQIA+ não é propriamente direcionado a um público LGBTQIA+ (e nunca o seria em exclusivo). Os conteúdos são direcionados para a fatia de público que mais os demanda, que os procura e que, sendo uma fatia gigante, é a fatia a se agradar: adolescentes e mulheres heterossexuais. E nesta obediência do mercado ao público que lhe rende, há em mim um rol de emoções algo ambivalentes. Por um lado, pergunto-me se os nossos gostos não estarão a ferir (de alguma forma) uma minoria até agora silenciada e marginalizada, por outro lado, não sinto culpa pela submissão dos mercados, por uma razão muito simples: enquanto mulher, vi durante toda a minha vida os “produtos” artísticos serem produzidos, pensados, desenhados, tendo em conta quase exclusivamente um público masculino. Mesmo aquilo que supostamente era direcionado a nós, mulheres, que nos tinha como público preferencial, era moldado sob uma tutoria masculina. E nós acabamos a olhar o mundo de uma forma muito deformada por esses óculos que não eram os nossos. Agora, ouvindo o tinir dos sinos do lucro, eles decidiram ouvir-nos a nós. Se há algo de retorcido nesta constatação, há-o certamente e não sei bem o que sentir relativamente a isso.
Na atualidade, no segmento editorial Young Adult, as novidades de livros queer são diárias, embora também as haja entre o segmento de literatura convencional, no streaming, entre filmes e séries para um público mais adolescente ou mais adulto, as ofertas também são variadas. É difícil passar mais de uma semana sem uma novidade numa das plataformas ou no cinema. E temos séries como Heartstopper (Netflix) transformada num sucesso, com milhares de fãs em todo mundo ou o filme da Amazon Prime Red, White and Royal Blue a aparecer como um dos filmes mais visionados da plataforma em questão.
E não havendo nenhum mal nisso, em se direcionar um conteúdo para um público que o quer, surge, no entanto, algumas preocupações, vindas principalmente do público LGBTQIA+:
Estarão, nesta agora mais comum representação queer, as personagens masculinas representadas de uma forma mais heteronormativa para agradar o público feminino heterossexual?
Haverá uma espécie de adaptação heterossexual (a vários níveis: sexual, social, cultural) de um universo que não o é, para agradar a um público específico?
Havendo uma abundância de representação homossexual masculina, porque é que é tão difícil ainda agora encontrar uma maior representação sáfica? Será porque o público feminino heterossexual não se interessa?
Haverá uma espécie de fetiche feminino por estas representações homossexuais masculinas?
Olhando agora para a minha pilha de livros, dos últimos que li este ano, passando os olhos pelos belíssimos Nadar no Escuro de Tomasz Jedrowski e Young Mungo de Douglas Stuart, recordando as imagens do filme God’s Own Country, um dos poucos filmes em que espetei com cinco estrelas no Letterbox ou ainda o ridículo, adolescente e adorável (filme e livro) Red, White and Royal Blue, vem a pergunta milionária: porque é que gosto disto, porque é que um universo afetivo, sexual, cultural, social, que para mim aparece como um universo fantástico (pois não lhe pertenço), se apresenta como o universo onde quero estar?
Pesquisando aqui e ali, analisando-me e aos que me rodeiam e que partilham do mesmo gosto, talvez seja possível chegar a um punhado de respostas, embora ache que uma tese na área da psicologia pudesse ser interessante, porque tudo o que disser será de índole muito superficial:
─ Aquilo que causa estranheza aos outros nesta identificação peculiar é na realidade a chave da explicação: identifico-me com a história de um homem gay, com a história romântica ou de superação de um homem gay porque não estou lá representada. E pensando num universo afetivo onde não se está representado, concluiu-se que não é possível estabelecer comparações.
Como adolescente, sempre fui muito insegura a vários níveis. Achava que não era suficiente em nada: no aspeto físico, na beleza, na inteligência, na capacidade de superação. Medíocre ou mediana como um todo. Suponho que esta sensação avassaladora de se estar aquém tenha moldado em muito a minha forma de ver e aceitar o mundo à minha volta. E talvez o mesmo se passe com as adolescentes de hoje em dia. E a única forma de se experienciar um mundo onde existe amor, beleza, superação e revolução, é procurando um universo onde não se esteja, onde não seja possível estabelecer nenhum tipo de confronto comparativo: ela é melhor do que eu, mais bonita, mais elegante, mais inteligente, mais capaz, mais independente, mais otimista, mais simpática, mais astuta, mais destemida.
Onde não havia elas, só eles, eu podia estar, porque não havia nenhum espelho onde pudesse ser confrontada pelo meu pobre reflexo.
─ Outro dos fatores de interesse é o que classifico de desconstrução de estereótipos de gênero. As figuras masculinas que tinha como referência há trinta anos eram figuras que facilmente cairiam numa comum caracterização do sexo masculino: homens que irradiavam uma masculinidade tóxica, muito machos, mesmo entre os adolescentes borbulhentos da escola, com grande dificuldade em demonstrar afeto e que criticavam fortemente quem (de entre eles) o fizesse. O gesto era comedido, a não ser que se estivesse no campo da abordagem sexual, onde aí era dominante, mais agressivo. Tudo o que era da ordem das emoções era maricas, efeminado, coisas de gaja.
No entanto, num universo onde não havia mulheres para se dominar, submeter, mostrar superioridade, esses estereótipos de género eram subvertidos, quebrados. Pegava em Maurice de E. M. Foster e encontrava Maurice dominado por uma afeição, um amor por Clive, que não lhe permitia uma expressão física desse afeto, e encontrava um tipo de homem que não existia na minha realidade. Um homem que não tinha medo das suas emoções, que mesmo se sentido ameaçado pelos seus sentimentos impossíveis, decidia ir contra a corrente, ser aquilo que o invadia: desejo, afeto, carinho, amor.
Esta quebra, subversão de uma construção de gênero acabou por ser, para mim, enquanto adolescente, uma das principais motivações para a procura daquele tipo específico de objeto artístico. O que ali se encontrava era uma suavização do que era áspero, bruto, empedrado. Para mim, se pensasse em igualdade de gênero, era nisso que pensava: alguém capaz de sentir e demonstrar o que sentia para além da convenção, alguém capaz de chorar como eu.
─ Por último, o que aquele universo trazia e era de difícil replicação num qualquer outro universo era a batalha e superação daquilo que era proibido, criticado, mesmo que o protagonista estivesse sujeito a injúrias por ser aquilo que era.
Grande parte da literatura gay e lésbica da minha adolescência estava focada precisamente no conceito base do crime/proibição/pecado/censura e crítica social. Aquelas pessoas ali retratadas eram, só por sentirem paixão/desejo/amor por alguém do mesmo sexo, a face do crime e um gesto de afeto era uma transgressão. Assim, aquelas demonstrações afetivas ali retratadas tinham uma valoração diferente de qualquer outra que pudesse ser demonstrada por um homem heterossexual por uma qualquer mulher. Não havia no meu universo heterossexual qualquer possível paralelo com aquilo, pois nem eu nem nenhum homem heterossexual teria de superar tais obstáculos, ver as suas demonstrações de afeto serem consideradas nojentas ou criminosas, alvo de escrutínio público, sujeitas a sanções. O peso do meu afeto heterossexual nunca poderia ser tamanho, tão extremo, tão evidente. Tão imenso. Havia assim um elemento épico que não encontrava em mais lado nenhum, a não ser naquele universo.
Em suma, a possível identificação, mas sem elementos de comparação, a subversão de certos estereótipos de gênero, a suavização da masculinidade e o elemento épico, sem paralelo na minha vida, serão, os elementos que mais facilmente encontro como justificação de uma preferência literária/artística e de entretenimento. Talvez se tivesse sido uma adolescente carregada de auto estima, as minhas leituras tivessem sido outras. É bem possível. Ou talvez não.
Depois deste pequeno exorcismo, desta psicanálise do meu eu adolescente, deixo apenas uma referência à questão do fetichismo. Não me parece que esta acusação de fetichização tenha fundamento, no sentido em que, tanto no entretenimento como na arte no geral procuramos pontos de fuga, mas também pequenos lugares de identificação. O que nos leva à escolha de um livro, de um filme para ver ou até mesmo de uma exposição de arte, são os lugares de identificação, mesmo que esta aconteça através do desconforto, da desorientação. Há sempre um Eu a procurar um buraco de fechadura para espreitar.
O nosso Eu é dominante, mesmo quando pretendemos subjugá-lo e esvaziarmo-nos dele. O que quer dizer que, de certa forma, ou chamamos outra coisa a essa procura do nosso Eu naquilo que nos rodeia ou então teremos de classificar toda e qualquer relação com a arte e o entretenimento como fetichista.
Ultimamente, tendo a começar os meus textos ou conversas com a afirmação: «Eu tenho 45 anos» como se isso, por si só, respondesse a todas as perguntas ou explicasse todo o disparate ou estranheza que fossem pronunciados por mim dali para a frente.
Neste caso, em que me preparo para escrever sobre uma comédia romântica, o «eu tenho 45 anos» explica tudo e mais alguma coisa. Ter 45 anos explica o número de estrelas que darei a um filme, explica que posso ter, sem vergonha, chorado a vê-lo, explica que já nem sinta vergonha de o admitir.
Quando era adolescente e no início da minha idade adulta entreguei-me aos prazeres das crises existenciais, do sofrimento e da expiação e embora o amor estivesse lá como uma possibilidade, o fatalismo era a minha religião. Entreguei-me aos mestres da literatura, procurava as obscuridades cinematográficas, as músicas depressivas com laivos suicidas. Em mim não havia lugar para o amor meloso, isto porque eu acreditava que ele existia, mas que não era para mim ou era imperativo rejeitá-lo.
Acho que na minha juventude nunca terei visto uma comédia romântica: escolher um filme desse género, convidar os amigos e ir ao cinema vê-lo. E embora tenha assistido a muito cinema dito comercial, a comédia romântica era o que de mais baixo se poderia ir ver a uma sala de cinema. Era preferível assumir perante os amigos a autoria de um qualquer crime de sangue a admitir-se que se tinha gastado dinheiro com uma mediocridade cinematográfica como uma comédia romântica.
Agora, chegada a meio da década de quarenta, aqui estou eu a ver e rever uma comédia romântica que pode ser classificada com todos os objetivos pejorativos que eu tinha antes guardados para este tipo de cinema.
Red, White and Royal Blue é uma comédia romântica da Amazon Prime, baseada no livro homónimo de Casey McQuiston. Já tinha ouvido falar do livro, mas não o li. Na altura em que saiu, fiquei com a impressão de ser um tipo de leitura muito orientada para um público jovem adulto.
E embora não haja motivo para vergonhas em admitir que já casei Dostoiévski com Jo Nesbo ou Yrsa Sigurdardóttir com Toni Morrison, a pilha de livros comprados e ainda não lidos era (e é) gigante e não caí na tentação de comprar o livro em questão.
Mas quando o filme saiu e depois de alguns dos meus amigos, que sabem exatamente o que quero dizer com o «eu tenho 45 anos», mo terem aconselhado, lá fui vê-lo.
E realmente é:
Adolescente, foleiro, meloso, irrealista, piroso, lamechas, manipulador de emoções, fofinho e previsível.
E eu adorei.
Eu sei que o mundo não é assim, eu sei que os obstáculos derrubam as pessoas, eu sei que o diabo do amor é coisa tão complicada, complexa, que já nem sinto vontade de falar dele, eu sei que o que há de mau para acontecer normalmente acontece, eu sei que a mediania e a mediocridade imperam, eu sei que não há espaço nem vontade para os grandes gestos, para as grandes ações, eu sei que aquele frenesim adolescente, aquela sensação de se ter uma vida inteira pela frente, pronta para ser heroicamente desbravada, eu sei que essa impetuosidade, impulsividade está moribunda, como morta, emitindo os seus últimos estertores. Eu sei, como diz o outro, que vou falhar e… falho. Tenho plena consciência de tudo isso.
Já tenho idade para conhecer todas as engrenagens disto de se viver e, como tal, nunca como agora fez sentido rir de coisas básicas, parvinhas, algo pirosas, nunca fez sentido como agora verter lágrimas pela fortuna de alguém amar alguém, mesmo que esse amor tenha sido desenhado propositadamente para pessoas como eu, nunca antes fez sentido vibrar com uma cena íntima entre dois homens e captar em tudo aquilo, em dedos que se tocam, em palavras bravas que se pronunciam sem medo, uma centelha do que foi ser-se jovem e de se sentir o mundo entre os dedos.
Red, White and Royal Blue não é Bergman, não é Manoel de Oliveira, não é nenhum Tarantino (embora por lá ande a Uma Thurman), mas é ridiculamente querido, pateticamente meloso, dolorosamente adolescente, entre o riso e o choro, exatamente por onde cada adolescente (e adolescente wannabe) deve navegar.
Para um adulto que decida ver o filme, o mais certo é todo o início dar uma certa vontade de se querer odiar aquilo. É uma comédia adolescente que ali se começa a desenrolar, com laivos (a todos os níveis) de Disney Channel, uma estrutura narrativa óbvia de inimigos que viram amigos que viram amantes. Mas é absolutamente impossível manter essa vontade de odiar após uma dezena de minutos, porque, mesmo que não se queira, mesmo que seja absurdo admitir-se, nós precisamos daquilo.
Para além desta observação mais pessoal, deixo ainda aqui uma outra nota. Estamos a falar de uma comédia romântica queer, em que as personagens principais são dois homens e, acho que se todo o mundo heterossexual teve direito a boas doses de pirosice, porque não dar também essa oportunidade, essa representatividade do amor meloso, piroso, fofo e algo foleiro à comunidade LGBTIQA+? Não haverá maior normalização da diversidade do que quando esta chega a coisas tão básicas como as comédias românticas.
Para além da parte romântica, refiro ainda outra nota. Falando de política e dos vários sistemas políticos (seja a monarquia no Reino Unido e um sistema democrático republicano federalista nos E.U.A.), o filme acaba por trazer à fala questões como a representação política de comunidades menos visíveis e da importância desse representatividade (a comunidade hispânica nos Estados Unidos) e também a questão da relevância ou utilidade da monarquia no século XXI.
Assim, este filme é todos os adjetivos que reservamos para as comédias românticas, mas não há qualquer mal nisso. O cinema, tal como outras expressões artísticas, guarda em si a possibilidade do entretenimento, do ligeiro, do imediato, do infantil e da submissão ao objeto artístico.
Amanhã, o mundo trará sangue, suor e lágrimas, queda, desconforto e solidão, misoginia normalizada e homofobia enraizada. Por hoje, fico-me por uma história romântica que acaba bem.
Red, white and royal Blue
Realizador: Matthew Lopez
Atores principais: Nicholas Galitzine, Taylor Perez, Uma Thurman, Sarah Shahi, Rachel Hilson e Stephen Fry.
Quanto tempo é muito tempo? Quanto tempo é tempo demais? E poderá o tempo ter um tal efeito corruptor que a sua passagem nos deixe danificados para sempre?
Ainda adolescente acho que já tinha a noção, embora de forma inconsciente, como uma presença que se movia sub-repticiamente ao meu redor, de que me deveria proteger daquilo que queria, porque aquilo que eu queria não era para mim, não era coisa que eu devesse querer.
Na tentativa de iludir esse meu querer, escolhi caminhos, estradas e becos de vida que, como se costuma dizer, não lembram ao menino Jesus. Se é possível alguém fazer tudo errado num percurso de vida, é bem capaz de o ser. Eu pelo menos tentei.
Escrevi o meu primeiro romance a meio da minha década de vinte. Um calhamaço histórico, escrito numa fúria desenfreada, sem filtro e cada dia em que me sentava para escrever no computador, era como entrar em transe, mergulhar num universo que me absorvia, me puxava pelos pés, não me deixava escapar. Não o fazia em segredo, mas não era algo que gostasse de me gabar. Fazia-o porque precisava, porque me sentia impelida a fazê-lo. Uma espécie de urgência aliada à necessidade de escapismo.
E no precisar parece que não há arte.
Mas há algo de perverso na escrita, na criação de mundos, de universos paralelos. Quando se tem de regressar ao mundo do Aqui e do Agora, instala-se uma solidão medonha e dessa solidão nasce uma vontade mesquinha de encontrar alguém que seja como nós, que veja o mundo como nós, que use os mesmos óculos de ver a realidade, uns óculos iguais aos nossos. E quanto mais escrevemos mais nos afastamos do real, mais as personagens encerradas dentro do disco rígido do nosso computador deixam de ser letras numa página branca, ganham formas e reclamam do nosso abandono quando pomos fim à vida que lhes criámos.
Tentei de todas as formas que conhecia na altura (e também agora) dar-lhes uma oportunidade de vida e, certamente, também curar o meu ego ferido por um querer que não me era devido. Dos muitos envios a editoras ao longo de duas décadas, os dedos de uma mão chegarão para contar as respostas obtidas. Entre os Nãos simpáticos e o silêncio, eu sabia o que deveria fazer.
Parar.
Meses passados de um doloroso luto ─ que não é apenas luto, mas crime também, pois não tive eu de matar personagens, incendiar e terraplanar mundos, votá-los todos ao esquecimento, ao abandono ─ tento ser uma pessoa normal, brincar às pessoas normais. Ter um trabalho normal, gostar de coisas normais, conversar sobre assuntos normais. Mas há algo na minha natureza profundamente anormal.
Volto ao mesmo. Caio, esmurro-me toda, levanto-me, sacudo-me e, raios me partam, volto a cair meia dúzia de metros depois. É um estado de dissonância cognitiva permanente, em que de estado transitório, habito o Estado Nação da Dissonância.
Mesmo quando não escrevo, seja sentada a um computador ou num caderno de rascunho, aquilo germina, ganha formas, voz e corpo, arquitetura e cheiro, sons distintos. Estou a conduzir, estou nas aulas, estou no trabalho, estou no supermercado, estou a ver uma parvoíce qualquer no telemóvel, e uma frase sai de uma boca, um medo obscuro revela-se num deles, um prédio monta-se, como um lego, numa paisagem urbana, uma comida feita com amor é levada à boca por alguém sem fome no seu desalento. Estas histórias crescem ao meu redor como ervas daninhas num inverno chuvoso, agarram-se-me às pernas, como uma hera e em menos de nada cobrem-me o corpo, a mente, não deixando qualquer nesga de mim a salvo.
Ao fim de três romances escritos, de duas décadas passadas, percebo que o impacto que a escrita e a solidão que lhe vem associada, o distanciamento criado pelos universos em que me levo a habitar, as dores de cada uma daquelas pessoas que, não sendo pessoas reais, vivem estranhamente comigo, me estão a causar um dano tal que, por esta altura, me parece um dano irreversível.
Em mim vivem pessoas, morrem pessoas, edificam-se edifício, bombardeiam-se outros, experienciam-se amores colossais, vivem-se amores ingénuos e banais, têm-se dúvidas atrozes, medos mesquinhos e medos dilacerantes, cantam-se músicas, dança-se e chora-se, desenterram-se memórias, criam-se novas e…
Fazia um scroll desinteressado no telemóvel numa rede social, quando me apareceu a notícia da divulgação do prémio Saramago 2022, entre polícia na universidade, Ronaldo, Qatar e a guerra na Ucrânia.
Abro a notícia do prémio literário e a primeira coisa que me saiu, alto e a bom som, sem filtro prévio, foi:
─ Mais um gajo!
Mas apontar o óbvio, mesmo usando dados que suportem esse óbvio, só traz dissabores. Não faltarão os guardiões da meritocracia, da justiça da qualidade, do valor do vencedor. Se ganhou, é porque era o melhor, dirão alguns.
Mas hoje acordei teimosa, por isso, aqui vai. Peguemos nos principais prémios literários portugueses e de língua portuguesa. Refiro-os como principais pois são os que terão um maior prémio monetário e são também os que trarão aos vencedores uma maior notoriedade.
Temos o Prémio Leya, com um valor de 50 mil euros, instituído desde 2008. Durante o período de 2008 a 2022 (sendo que em alguns anos o prémio, por decisão do júri, não foi entregue), ganharam o galardão 7 homens e 2 mulheres - 2 mulheres num total de 9 vencedores.
De notar que a própria composição do júri é também, a nível de género, bastante díspar. Começaram em 2008 com 6 homens e 1 mulher (7 membros) e hoje em dia estão com 5 homens e 2 mulheres.
Avancemos para o Prémio Saramago, que é um prémio bienal, atribuído desde 1999, com o valor de 40 mil euros. Dos 12 vencedores até à data, apenas 2 mulheres ganharam o prémio desde 1999. Ver o nome do vencedor de 2022, o escritor brasileiro Rafael Gallo, nem espanto causa. Surpreendente é ler os comentários à notícia do vencedor. A celeuma pelo anúncio não estava ligada ao facto de ser mais um homem a vencer o galardão, mas sim ser um escritor brasileiro.
Deste prémio, saliento ainda a composição dos membros do júri nesta última edição - 8 membros, sendo 5 deles homens. Esses 5 homens eram todos eles antigos vencedores do prémio em questão.
Para completar aqui este apanhado de prémios, refiro o prémio Oceanos, prémio que começou por se chamar Prémio Portugal Telecom e que é um prémio para autores de Língua Portuguesa, atribuído neste momento no Brasil, com o valor total de 250 mil reais (a distribuir entre os 3 primeiros lugares). Entre 2003 e 2021, dos 19 vencedores (primeiro lugar), apenas 3 mulheres conseguiram ganhar este prémio.
Remato com o Prémio Camões, prémio atribuído desde 1989, pelos governos de Portugal e Brasil, com o valor atual de 100 mil euros, pelo conjunto e importância da obra dos autores vencedores. Em 34 vencedores, temos 7 mulheres.
Extravasando as fronteiras da língua portuguesa e dos prémios para autores em língua portuguesa, deixo apenas os dados dos vencedores do Prémio Nobel da Literatura: 119 vencedores, 17 mulheres.
Ora, com esta pequena e singela análise não pretendo aferir que os vencedores de todos estes prémios durante todos estes anos não serão escritores capazes. Longe de mim sugerir tal coisa. Muitos deles são habitués das minhas estantes, muitos deles são presença constante nas notícias que leio, nos feeds das minhas redes sociais. Mas, tê-los a todos como presenças habituais nos meus mundos ficcionais, deixa-me um travo amargo na boca. Eu, mulher, consumo muita literatura escrita por homens. Eu, mulher, levo o meu tempo a ver o mundo pelos olhos de um homem, de muitos homens. Eu, mulher, consumo histórias sobre mulheres, escritas por homens.
─ Ah, mas são eles os melhores. Se ganharam, devem ser os melhores de todos os candidatos.
─ Serão?
Temos prémios literários decididos quase exclusivamente por homens e ganhos por homens. Temos publicações nas maiores editoras movidas por esses prémios, carreiras que se agigantam à conta desses prémios e o que sobra é uma visão unilateral do mundo, uma visão masculina do mundo. E o mais engraçado disto tudo, o mais estúpido disto tudo é que a maioria dos leitores, a maior percentagem daqueles que lê de um a mais livros por ano, é feminina.
No meu mestrado de Escrita Criativa na Faculdade de Letras em Coimbra, 80% dos alunos do meu curso são mulheres. Daqueles que querem escrever, daqueles que querem melhorar capacidades, procurar uma identidade literária e poli-la, 80% são mulheres. Mas mulheres também elas já afogadas em muita literatura masculina, possivelmente já moldadas por muitos anos a ver o mundo através de óculos masculinos.
E não deixo sugestões para uma mudança neste paradigma. Vislumbro apenas fragmentos da engrenagem por detrás desta gigante máquina que é o mundo editorial e mesmo assim consigo concluir que sou demasiado velha para acreditar em mudanças.