«Quem são estas pessoas? Serão pessoas ou serão monstros?»
Navegando pela internet, pelas redes sociais, caindo em queda livre nos comentários de uma qualquer postagem, não será difícil a frase sair-me da boca. Uma pergunta para a qual sei a resposta, mas que ainda assim se escapa pela estupefação, embora os comportamentos, as palavras cruéis nada tenham de novo.
Ontem via no Instagram um desabafo de uma tradutora/promotora literária, que sigo nas redes. A pessoa em questão foi ao lançamento do livro «No meu Bairro», de Lúcia Vicente/Tiago M. e foi “apanhada” no turbilhão de ódio de uns quantos grunhos que por lá apareceram a manifestar-se.
Ora, desta frase anterior, corrijo a palavra “grunhos”, porque embora a tendência seja classificar o comportamento inadequado de alguém de uma forma mais reles, com adjetivos depreciativos, essa classificação como que isenta o outro de responsabilidade dos seus atos. Nunca se trata de monstros a fazer coisas monstruosas, tratam-se de seres humanos como eu a fazer coisas humanas, embora ações que são nutridas pelo ódio e pela falta de empatia. Corrijo ainda a palavra “manifestar-se”, porque toda a gente sabe que aqueles homens que invadiram um lançamento de um livro com um megafone não se estavam a manifestar, não reivindicavam nada. A natureza daqueles atos era outra.
Bem, o post da H., a tradutora/divulgadora literária, mostrava uns quantos screenshots de comentários sobre ela, debaixo de uma fotografia que lhe foi tirada por um dos manifestantes durante esse lançamento literário, onde o seu aspeto físico, a sua cor da pele eram usados como forma de enxovalhamento na forma mais cruel que se possa imaginar. Quando não há argumentos, há insultos e ali havia de tudo: racismo, xenofobia, misoginia, masculinidade tóxica (que de tão tóxica que era, envenenava qualquer resquício de empatia que aquelas pessoas poderiam ter dentro de si). Por momentos, aquilo que supostamente tinha movido aquelas pessoas a se manifestarem desaparecia. Sobravam apenas as palavras cruas e duras: gorda, mestiça, brasileira, fenótipo assim, fenótipo assado.
E ao ler aquilo, ao pensar como H. se deveria estar a sentir ao ler aquelas palavras, ao me sair da boca a frase «Que pessoas são estas que dizem estas coisas de uma forma tão cruel e com tanta ligeireza?», caiu-me no colo a contagem das vezes que tinha pronunciado a mesma frase num mero par de dias: comentários maldosos num grupo de partilha de leitura de livros, onde o que me pareceu um problema técnico da página foi classificado por algumas pessoas nos comentário como má vontade da administradora do grupo, logo ali prontamente classificada de desocupada, desempregada, divorciada, mal resolvida (com a carga sexual que tem sempre de ser trazida ao barulho e com todas as piadas foleiras associadas). Umas horas antes, falava com uns amigos americanos que descreviam como tinham sido enxovalhados por um fulano anti-vacinas quando, num grupo de expatriados, tinham apenas divulgado o calendário de vacinação da Covid 19 para maiores de 60 anos. Insultos e ameaças que os deixou perplexos pela desproporção da resposta a uma mera divulgação do SNS. Comentários à notícia do julgamento de Mamadou Ba, comentários à notícia de abertura de uma livraria feminista em Lisboa. Pequenos exemplos, numa longa lista, onde eram fáceis de perceber os tópicos que mais alarves chamava para os comentários. Palavras escritas para fazer doer, palavras como pedras, palavras que pretendiam humilhar pela brutalidade.
E ao ler centenas de frases pronunciadas no mundo virtual, escoltadas pela segurança de não terem sido ditas «cara a cara», mas sob a proteção da distância, de dedos que dedilham teclas num aparelho, ainda assim vem a pergunta: «Quem são estas pessoas? E porque é que dizem estas coisas?»
E a resposta não é bonita, porque é óbvia. Não há qualquer grandeza na descoberta da Verdade, não há um Nós vs Os outros, Humanos vs Monstros. Aquelas pessoas que ali falam apenas procuram uma coisa, que quase todas as pessoas no mundo procuram também. Mas ao invés da procura ser interior ou junto daqueles que os rodeiam, há como que um estrebuchamento perante aquilo que não conseguem entender, perante aquilo que é acessível, mas quase nenhum ser humano consegue apreender:
A nossa relevância no mundo não tem de ser espalhafatosa, não tem de ser notada pelos outros milhões de habitantes do planeta. O motor da nossa existência, aquilo que nos faz levantar de manhã e ter coragem de sair da cama, aquilo que leva milhares de pessoas a correrem riscos, a não desistirem, a procurarem segurança, alimento, amor, não tem de ser um evento global aplaudido e notado a uma escala nacional/internacional. E não se entender isto – a insignificância de todos nós – , que apenas ganhamos importância junto daqueles que nos amam, através dos nossas ações, que, com sorte, nos podem fazer perdurar na memória daqueles que ainda hão de vir, não entender esta dado básico da engrenagem do mundo só nos traz solidão.
Aquela pessoa que destila ódio nos comentários está só. Aquela pessoa sabe que aquelas suas palavras amargas gerarão respostas e sabe ainda que se lá escrever um comentário «do bem», cheio de otimismo, positividade, alegria, a interação que irá granjear será nula. O ódio revolta, espicaça, gera contacto. O Bem, aquilo que se espera do bom ser humano, é como um dado adquirido, não é notado, questionado, aplaudido ou motivado. E, de uma forma retorcida, aquelas pessoas são vistas, são notadas, ficam momentaneamente menos sós. E no meio de muitas respostas amargas àquele que inicialmente insulta, vêm também aqueles que, como ele, procuram o seu lugar no mundo, ser relevantes, justificar a sua existência.
Os que odeiam conhecem-se, formam um grupo de ódio, odeiam juntos. E a solidão parece menor, encolhe um pouco e odiar será combustível existencial como outro qualquer.
Quando leio comentários assim, imagino de imediato aquela pessoa que destilou ódio, a que está do outro lado, numa ânsia a olhar para o telemóvel, aguardando o apito sonoro que o alerte da chegada de uma reação às suas palavras. E, estranhamente, sinto pena.
Com as redes sociais, é fácil sermos apanhados pela aparente grandeza da vida dos outros. O que fazem, onde vão, quem os rodeia, como são bonitos, o que conquistam, como são aplaudidos. Acontece-me a mim. Ao seguir aqueles que me são referência nas áreas que me são mais queridas, não há como não sentir o toque da insignificância, não há como a minha vida não ser vista sob o projetor da mediocridade. Mas ainda assim, há que respirar fundo e perceber que aquilo que me poderia fazer sentir relevante não virá através da diminuição dos outros, dos feitos dos outros, das palavras e ações dos outros. E talvez a relevância esteja aqui mesmo ao lado, no amor que poderei dar e receber daqueles que me são próximos, em existir com dignidade, criar memórias bonitas no meu filho, porque não é preciso um auditório cheio a aplaudir para a minha vida ou a de qualquer outra pessoa fazer sentido.
No fundo, ainda não sabemos lidar com aquilo que a evolução das espécies nos trouxe, enquanto espécie humana. Esta consciência de nós próprios, esta auto perceção da nossa pequenez, de sermos um entre milhões, num pequeno planeta num universo sem fim à vista, a aleatoriedade da vida, todas estas coisas fez-nos criar deuses, levou-nos à arte, transformou-nos em seres sociais, parte integrante de uma rede de ligações familiares e de amizade, fez-nos buscar a beleza, procurar o desconhecido, mas nenhuma destas coisas conseguiu ainda eliminar por completo a necessidade das perguntas:
«Qual o sentido da minha vida?»
«O que faço aqui?»
«Qual a minha relevância?
»Porquê continuar?»
E, sem qualquer espanto, compreendo que aqueles que odeiam, também eles, procurem todos os dias, incansavelmente, resposta para estas mesmas perguntas.
O mundo é um lugar imenso e simultaneamente uma pequena vilória provinciana. Sabemos o que certas celebridades do outro lado do mundo comem e bebem, de que gostam, de que falam, com quem fazem amor e a quem odeiam e sabemo-lo como qualquer bom coscuvilheiro da aldeia. Mas, num paradoxo com esta aparente proximidade (de um eu, tu e eles, transformados com facilidade num nós), é possível que alguém se esfume sem deixar rasto, que alguém que ontem era, hoje já não o seja. É possível que um Ele se mantenha um Ele, longe e teimosamente afastado de Nós.
Sigmund Krähe é um compositor alemão. Quando digo é, no presente do indicativo, estou a dar um grande salto de fé assumindo que ainda vive, que respira entre nós.
Até há um ano e tal atrás, seria possível encontrar no youtube centenas de composições suas, num canal em nome próprio, que não cheguei a conhecer. A maioria das composições são para órgão de tubos – dramáticas, obscuras, mas não demasiado rebuscadas. Algumas pecarão mesmo pela simplicidade, assemelhando-se a bandas sonoras de filmes de mistério e fantasia. Demasiado sintetizadas, num registo já ouvido? Talvez. Mas ainda assim com um travo épico que, pessoalmente, me fascina.
Nada de novo no mundo. Um artista a usar uma plataforma global para difundir a sua música. Um nome associado a centenas de registos musicais e nada mais.
Até há um ano. De um dia para o outro, Sigmund e a sua música desapareceram. O canal desapareceu do Youtube, apagado pelo autor ou pela plataforma. A partir daí começa a especulação: o que acontecera a Krähe e à sua música?
Como pode alguém ser e não ser? Ser apenas um nome, ser centenas de peças musicais, ser ouvido por milhares de pessoas, ser comentado, apreciado e também desdenhado e, num segundo, deixar de o ser? Deixar de ser para Nós, deixar de existir enquanto ser global, enquanto artista, desvanecer como um Houdini?
Uma das minhas professoras de mestrado, falando dos escritos dos alunos mantidos na «gaveta», diz-nos provocadoramente que aquilo que fazemos não é arte. E não fala da qualidade do que escrevemos, pois desconhece se a temos ou não ou sequer se tal coisa, a qualidade, é coisa quantificável.
Do que ela fala é da necessidade de haver uma comunidade que usufrui, que está envolvida na experiência, no ritual de fruição de uma peça de arte. Sem o outro não há arte.
Sigmund Krähe tinha o outro, o seu público, fazia arte, mas decidiu (decidiram por ele, morreu, enlouqueceu, aborreceu-se?) subtrair o estatuto de arte àquilo que fazia. Desaparecer com tudo. Sem o seu público, acabou-se a arte.
Acabou-se?
Bem, muitos dos seus seguidores tinham guardado uma substancial parte das suas composições e, chocados com a descoberta do canal apagado, com o passar dos dias e nada acontecer (um regresso noutro canal, noutra plataforma, qualquer coisa), decidiram criar canais para fazer reupload das músicas que tinham guardado para usufruto pessoal.
Um ano passado, são vários os canais com a música de Krähe e ninguém a vir reclamar direitos autorais da mesma. A arte perde o direito à maternidade mal nasce, torna-se pública, anda de mãos em mãos, corpo perdido numa orgia.
Mas, será correto? Se a vontade de um autor é desaparecer, ele e a sua arte, será correto ressuscitá-la para o mundo contra a sua vontade?
Pergunto sem malícia, sem ter uma resposta em mente. Porque se escrevo sobre isto é porque ouvi as músicas lançadas ao mundo por outras mãos que não as do compositor. Mas há em mim o egoísmo de achar que aquilo que faço, que crio, embora precisando dos outros para SER, é maternalmente meu.
Nesta última segunda-feira, o Brasil acolheu, com sentimentos contraditórios, a decisão judicial de um juiz que, através de uma liminar, veio considerar legal que psicólogos possam oferecer a clientes/pacientes terapias de reversão sexual. Até à data, esta prática, embora levada sub-repticiamente a cabo por alguns «especialistas» através do uso de pseudoterapias desconsideradas/censuradas pela comunidade médica, pela OMS e pelo Conselho Federal de Psicologia, era considerada ilegal podendo levar à cassação da licença por parte dos profissionais que tais práticas oferecessem aos seus pacientes.
Embora, em momento algum, o juiz que concedeu a liminar se refira à homossexualidade como uma doença, a verdade é que, de forma implícita isso é transmitido a quem lê o documento. Não é possível permitir a prática de um tratamento de cura para uma doença que não existe. Se essa cura é, pelos órgãos judiciais, considerada como válida, percebe-se nas entrelinhas que uma cura tem de ter na origem uma doença. A justificação usada pelo juiz apoia-se da liberdade de escolha (um pouco como: se alguém procura uma cura e alguém a oferece, não deve vir mal ao mundo por isso) ou ainda na questão científica (a proibição das terapias de certa forma, condiciona a liberdade científica nessa área).
Como referi, embora o juiz não considere inequivocamente a homossexualidade uma patologia, na sua liminar o juiz, contraditoriamente, determina:
[…] que o órgão [OMS] altere a interpretação de suas normas de forma a não impedir os profissionais "de promoverem estudos ou atendimento profissional, de forma reservada, pertinente à (re)orientação sexual, garantindo-lhes, assim, a plena liberdade científica acerca da matéria, sem qualquer censura ou necessidade de licença prévia". Juiz Waldemar de Carvalho, em El País Brasil, retirado daqui.
Refiro ainda que esta decisão judicial vem em consequência de uma ação movida por Rosangela Justino. Esta psicóloga e missionária, viu em 2009 a sua licença de psicóloga cassada precisamente por aplicação da chamada cura gay em pacientes e decidiu mover uma ação contra o Conselho federal de Psicologia pedindo a suspensão das regras que proibiam a aplicação de tais terapias.
" […] o movimento pró-homossexualismo tem feito alianças com conselhos de psicologia e quer implantar a ditadura gay no país". Por fim admitiu: "Tenho minha experiência religiosa que eu não nego. Tudo que faço fora do consultório é permeado pelo religioso. Sinto-me direcionada por Deus para ajudar as pessoas que estão homossexuais". Rosangela Alves Justino, em El País Brasil, retirado daqui.
Rosangela, que usa a psicologia e a religião como práticas paralelas e coadunáveis na sua conduta profissional, é um reflexo de um Brasil cada vez mais dominado, em todos os quadrantes que deveriam ser imparciais, pilares essenciais para um país livre, por uma cada vez mais poderosa presença religiosa, neste caso, evangélica.
Embora se possa considerar de somenos importância tal decisão, ela planta na mente de uma parte da sociedade suscetível a manipulações, a crença da doença, da prática condenável e vergonhosa e isto, por si, basta para a propagação da descriminação e, em último caso, da violência.
E se, por toda a internet surgiram brincadeiras que ridicularizavam a decisão judicial, paralelamente apareceram também pessoas e grupos que viram assim a sua descriminação, a sua caça às bruxas legitimada pelo sistema de maior importância numa sociedade: o sistema judicial.
Brincadeiras dos internautas relativamente à «cura gay». Imagem retirada daqui.
Resta-nos sorrir da interpretação humorística (já com uns anos) da visão da cura gay, por parte da trupe da Porta dos Fundos:
Aqui na minha rua, os últimos meses foram de obras: limpeza e pinturas de muros de proteção e pintura da sinalização no asfalto. Depois de meses (anos) em que tal obra já merecia (urgia) ser feita, pensei para mim que as eleições sempre serviam para alguma coisa. Para bem da terra, era bom era haver eleições de ano a ano, mais não fosse para que estas pequenas coisas não fossem guardadas para serem feitas dois meses antes das eleições. Era garantido que as obras andavam sempre a bom ritmo.
Mas depois lembrei-me dos cartazes. Não!! Não aguentaria tal suplício anual. É coisa normal haver cartazes eleitorais semeados por todo o lado em alturas de eleições, mas este ano, na minha santa terrinha, isto atingiu níveis endémicos. O raio dos cartazes parece que se reproduzem durante a noite, criam metáteses em locais improváveis. Se um dos partidos parece contido, apostando numa quantidade de cartazes aproximada à das eleições anteriores, outros dois partidos estão «on fire». De tanto ver as caras dos candidatos a fitarem-me a cada esquina, em cada rua, em cada beco, temo ter pesadelos com eles durante a noite. Como alívio desta tormenta visual (claramente excessiva e perturbadora da paisagem), chegam as alcunhas engraçadas que o meu filho arranjou para cada um daqueles rostos sorridentes e profissionais que nos perseguem diariamente no percurso para a escola (cara de fraldinha, cara de bebé, por exemplo).
É que se ao menos por aqui houvesse uns cartazes cómicos, estranhos, com frases deslocadas, ainda dava para uma pessoa se divertir, mas nada. Pelas minhas bandas ficaram-se pelas fotografias insípidas do costume e pelas frases feitas sem nada de memorável.
Resta-me largar umas gargalhadas com alguns dos exemplos que apanhei pela net de cartazes autárquicos deste nosso Portugal. É que há de tudo: falta de noção, erros ortográficos, piadas com os nomes das localidades que saem completamente ao lado e coisas de tão estranhas, chegam a roçar o assustador.
Piadas com um inexplicável teor fálico/sexual:
Erros ortográficos grosseiros:
Jogos de palavras parvos:
Cartazes em que o nome da terra ou do candidato (advertida ou inadvertidamente) atrapalha:
E aqueles cartazes em que passa a sensação que o pessoal devia estar a fumar umas cenas estranhas quando achou que aquilo seria uma boa ideia. São os chamados cartazes WTF.
Dois dos muitos cartazes do «podes chamar-me Salomé».
???
Um político que não deixa cair o estereótipo de político em saco roto. Começa a quebrar as promessas de campanha logo na campanha eleitoral. Assim dá gosto ver.
Não é um cartaz, mas é uma ação de campanha. Fiquei entre o riso e o choro. :)
Faço minhas as palavras do Olimpo. Tanto cartaz?! Chiça, porra que é demais.
Foi uma longa ausência, eu sei. Uma ausência imposta e, simultaneamente, autoinfligida. Se por um lado os meus deveres maternais me deixaram pouco tempo para a blogosfera, por outro lado a questão da relevância disto, deste espaço, também me pressionou à reflexão, ao afastamento.
Durante estes meses de verão nos quais raramente por aqui passei estive um mês com um reduzidíssimo acesso à internet. Férias na praia sem redes sociais, sem notícias online, sem email, sem tudo aquilo que hoje em dia se tornou indispensável para qualquer ser humano «normal». Nos primeiros dias dou por mim a pegar incessantemente no telemóvel, como uma drogadita em abstinência, a deslizar o dedo e a sentir um baque por perceber que aqueles eram movimentos inúteis. A imensidão cibernética estava-me vedada. Mas na mala esperavam os passatempos antiquados, mas que teriam de servir: uma generosa pilha de livros.
De entre outros, li dois livros de Svetlana Alexievich — Vozes de Chernobyl e A guerra não tem rosto de mulher (escreverei amanhã um outro texto sobre estas duas obras da autora bielorussa). Se hoje falei deles neste texto de regresso, não foi por pretender dissecar o conteúdo dos mesmos, mas pelo impacto destas leituras a seco. Com o mar a murmurejar em pano de fundo, com a areia entre os dedos dos pés ou deitada na cama à noite, nunca uma leitura me pareceu tão pura, tão clarividente como as leituras destas férias. O afastamento do caos informativo, dos casos diários que geram revolta e logo caiem no esquecimento, das opiniões diversas contraditórias, os dramas políticos nacionais e internacionais, deixou em mim um tremendo espaço vazio que permitiu fluir a leitura com uma profundidade nunca antes conseguida.
Lia os testemunhos de mulheres que combateram na segunda guerra mundial, as atrocidades contadas na primeira pessoa, o entusiasmo em poder ajudar a nação, emoção que não raras vezes redundava em morte ou dano permanente, e esta experiencia não foi apenas uma leitura, foi uma conversa com pessoas de um passado coletivo, uma conversa de uma lucidez atroz, mas poderosa, bela. Parava, olhava o mar, e tudo à minha volta confluía para aquelas palavras encerradas no livro, um movimento cósmico, universal, em direção à clarividência daquelas linhas, daqueles testemunhos.
Quando regressei à civilização, quando a internet surgiu como o copo de vinho cheio frente ao bêbedo em ressaca, dei por mim a questionar-me, a dissertar sobre a experiência de abstinência informativa: a informação é preciosa. Nunca me ouvirão fazer uma apologia da ignorância (embora haja uma quase inerente felicidade a ela associada). No entanto, será que haverá um ponto em que aquilo que consumimos deixa de ser informativo e passa a ser apenas mais do mesmo, redundância constante, um encher de chouriços que em nada contribuiu para o esclarecimento, mas antes entorpece, anestesia pela repetição, torna-nos trôpegos perante a realidade?
O meu filho via um qualquer programa infantil na televisão e veio contar-me que os dodôs, já extintos, engoliam pedras (na goela) para ajudar à digestão. Daí nasceu este paralelismo básico, uma metáfora elementar, mas ainda assim válida: teremos nós de engolir tamanha quantidade de pedras para conseguirmos «comer», pelo meio, alguma informação de jeito? E não estará tal quantidade de pedregulhos a pesar-nos em demasia, a atrofiar a forma como passamos a fruir a informação, novas leituras, o mundo que nos rodeia num geral?
Talvez uns passos atrás, um ligeiro afastamento nos permita ver esta nossa realidade de agora com maior nitidez, inserida num todo e não excluída e vendida como única, pertinente, exclusiva.
Amanhã regressarei com Svetlana. Estes dois livros merecem mais do que uma pequena referência fugaz num post de regresso à blogosfera.
Ontem, ainda digerindo a notícia da morte de Chris Cornell, surge a notícia da morte da escritora bielorussa Svetlana Alexievitch, prémio Nobel da Literatura em 2015. A notícia apareceu nas versões online dos principais meios de comunicação social nacionais, inicialmente sem explicar as causas da morte da escritora, referindo apenas que a notícia tinha sido avançada pela nova ministra da cultura francesa (que antes era co-diretora da casa editorial que editava Svetlana em França).
Fiquei triste, remoendo por dentro pela injustiça de uma pessoa ainda jovem, tão inteligente, ter partido antecipadamente. Mas o meu luto por Svetlana durou pouco. Minutos depois surgem várias notícias a informar que a notícia avançada da morte da escritora afinal era falsa.
Reconstruindo a situação, um jornalista italiano, Tommasso Debenedetti, conhecido por criar contas falsa de Twitter precisamente para difundir notícias falsas, usando nomes de pessoas conhecidas, resolveu criar uma conta em nome da nova ministra da cultura francesa. Através dessa conta anunciou a morte da escritora bielorussa. O jornal francês Le Figaro, tomando como referência o tweet dessa conta falsa, fez o anúncio da morte de Svetlana na sua página online e isso bastou para que centenas de outros jornais e meios de comunicação na Europa difundissem a notícia sem qualquer tipo de verificação prévia, tomando como única referência informativa o tweet da suposta conta da ministra e a notícia do Le Figaro.
As notícias tornaram-se produto de consumo rápido e a difusão de notícias online veio trazer uma urgência noticiosa que antes não existia. Se algo acontece na Alemanha ou em qualquer outro sítio do mundo, isso tem de ser noticiado imediatamente, porque um jornal português não quererá que o seu leitor vá gastar o precioso click num jornal estrangeiro, quando o pode gastar no seu jornal, mesmo que isso comprometa a qualidade da informação dada. As notícias difundem-se sem qualquer investigação prévia, apenas porque a velocidade, a rapidez informativa tornou-se fator de maior relevância do que o rigor, a qualidade da informação dada.
Não teria sido muito complicado confirmar que Svetlana estava em Seul, a dar conferências, vivinha da silva. No entanto, nenhum meio de comunicação quis gastar cinco minutos que fosse a fazer uma confirmação simples.
Não sei que motivações movem o jornalista italiano Debenedetti, mas as suas farsas talvez tenham como finalidade uma espécie de alerta para a forma enviesada como a informação é tratada e difundida hoje em dia. Um alerta àqueles que tem o poder da informação na mão, mostrando-lhes como podem ser tão facilmente ludibriados, apesar da repetição da armadilha. No entanto, acho que é uma batalha perdida. Parece-me evidente que o rigor já há muito foi substituído pela urgência, pela necessidade de atrair a visualização do leitor transformada em dividendos publicitários.
Para a próxima, para não causarem tamanho transtorno e comoção, sugiro que «matem» alguém odioso. Sempre uma pessoa faz uma pequena festa, mesmo que seja felicidade de pouca dura.
No início da semana, escrevi sobre a tragédia que ocorrera numa lixeira na Etiópia: um desabamento de lixo que soterrara dezenas de pessoas, tirando a vida a cerca de cinquenta. O número de mortos foi posteriormente atualizado e chegam agora a mais de cem as pessoas que sucumbiram à avalanche de lixo. A notícia passou relativamente desapercebida e o choque ao nos apercebermos de que algo assim aconteceu é seguido de um ataque à imprensa por não informarem, não noticiarem factos de relevância, mas sempre mais do mesmo. Ora, ontem estava a ver uma página no Facebook onde me apareceu uma imagem de um desabafo do editor online do Público e que dizia respeito a essa mesma notícia que referi.
Imagem retirada da página do facebook dos Truques da Imprensa Portuguesa.
O jornal Público noticiou, pôs a notícia em destaque e… quase ninguém a leu, comentou, partilhou. Numa era em que o jornalismo tem grande parte do seu financiamento proveniente da publicidade online que está ancorada no número de cliques/visualizações de uma notícia, é óbvio que o destaque de uma notícia sem visualizações não tem interesse e logo essa mesma notícia é jogada para segundo plano. A mais terrível das notícias cai facilmente no esquecimento devido à indiferença dos leitores.
No fundo, somos todos uns narcisistas patológicos. Procuramos o nosso reflexo no espelho em toda a superfície refletora. Ignoramos os reflexos que não nos favoreçam, onde não nos encontramos. Temos pavor quando o reflexo que nos chega é de uma cara desconhecida e o pavor roça o nojo quando esse outro que nos olha do outro lado vive numa realidade para nós obscura.
Reconhecemos numa vítima que estava num restaurante aquando de um atentado terrorista. Também vamos a restaurantes, também gostamos de nos refastelar numa esplanada. Podíamos ser nós. Reconhecemos numa vítima de um atentado num aeroporto. Também andamos de avião e adoramos viajar. Podíamos ser nós. Reconhecemo-nos numa vítima de uma avalanche nos Alpes. Também gostamos de fazer férias na neve. Podíamos ser nós.
Se uma avalanche de lixo tira a vida a uma centena de pessoas, não nos encontramos no reflexo desse espelho. Não andamos a vasculhar no lixo. A ideia de o podermos fazer é inconcebível, surreal. Achamos, com convicção, que aquilo só acontece aos outros, «àqueles» que vivem para aquelas bandas. Não podíamos ser nós.
Sem identificação, sem o nosso belo reflexo no espelho, não há interesse, não há leitura da notícia, não há vontade jornalística que nos valha.
E por mais que nos esforcemos, não há volta a dar. O mundo está dividido em dois tipos de pessoas: nós e os outros. E os outros… são apenas os outros.
Um atentado no Canadá faz seis mortos. Dois (ou três) homens entraram numa mesquita e atiraram indiscriminadamente sobre as pessoas que estavam no interior. Seis pessoas perderam a vida, o primeiro-ministro canadiano lamenta o ato cobarde e terrorista, dois homens foram presos como presumíveis autores, há a possibilidade de um terceiro ter escapado.
Leio a notícia, sentindo o mundo como um lugar estranho, imersa naquele aperto de peito que as mortes evitáveis causam, rodeada pela confusão do não entendimento das razões que levam alguém a causar a morte a pessoas que nem conhece.
Inadvertidamente, fui fazendo scroll pela página da notícia e lá estavam… os comentários grosseiros, a psicopatia em forma de palavras, a baixeza do ser humano escarrapachada em dezenas de comentários horríveis. A defesa do ato terrorista, o desejo da morte de todos os muçulmanos mundo afora. E o ridículo dos ridículos — o extremismo das palavras contra aqueles que são apelidados de extremistas.
Fechei os olhos e repeti para mim mesma: nunca leias os comentários das notícias, nunca leias os comentários das notícias, nunca leias os comentários das notícias.
Aquelas pessoas, que destilam veneno nas caixas de comentários, habitam entre nós, andam por aqui, têm filhos que andam nas escolas dos nossos filhos, vão à missa aos domingos, saem com os amigos em alegres convívios, trabalham entre nós, atendem-nos em serviços públicos, atendem-nos em empresas privadas, votam, conversamos com elas de forma insuspeita.
Posso combater esta onda de ignorância? Não me parece.
O melhor a fazer é vestir o casaco da ingenuidade, da inocência. Se eu não ler, não me perturba. E assim, posso continuar a fingir que todos nós somos pessoas de boa índole, com empatia pelo sofrimento alheio, conscientes dos males do mundo, pessoas que não estão focadas no seu próprio umbigo e que conseguem ver para além do ódio motivado pelo medo.
Assim, repitam dez vezes: nunca ler os comentários das notícias. Nunca ler os comentários das notícias.