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Quimeras e Utopias

Quimeras e Utopias

A ficção especulativa dos nossos dias

Uma rapariga está sentada, vestindo apenas roupa interior, entre homens trajados à ocidental e mulheres tapadas dos pés à cabeça, envergando hijabs, capas negras esvoaçantes, como aves de mau agoiro.

Nas imagens, vê-se o deambular da rapariga pelo recinto escolar, depois na rua, para, momentos depois, ser abordada por viaturas (da polícia) e ser detida.

Da parte da Amnistia Internacional vem a informação do espancamento e da violência sexual sofridos pela jovem durante a detenção, depois daquilo que se julga ter sido um protesto contra o código de vestuário obrigatório no país, controlado até às últimas consequências pela polícia dos costumes.

Da parte do porta-voz da Universidade Azad, em Teerão, a informação divulgada é que a rapariga em questão sofre de distúrbios mentais.

Este tipo de revoltas individuais, vistas por nós, ocidentais, afiguram-se como pequenos episódios que nos recordam que, em certas partes do mundo, ainda se vive numa espécie de distopia, em universos sociais dignos de romances de ficção científica. Mas estamos bem, temos as nossas liberdades garantidas e consideramos que aquilo nunca poderia por aqui acontecer.

Quando li a notícia sobre os protestos da jovem Ahoo Daryayee no Irão e os problemas mentais foram dados como justificação, lembrei-me de uma outra história, essa passada no nosso bom Portugal. O ano era o de 1918 e uma mulher da alta sociedade, casada e mãe, resolve fugir com o seu motorista, vinte anos mais novo. O marido, homem influente, conseguiu que mulher e amante fossem perseguidos e apanhados pelas autoridades. O destino dela seria o internamento psiquiátrico compulsivo e o dele, o amante, a cadeia. Na época, vários médicos de renome atestaram as perturbações mentais de Maria Adelaide, a mulher infiel. Egas Moniz, Sobral Cid e Júlio de Matos anuíram em certificar uma loucura que não estava lá. Mas Maria Adelaide, mesmo com a vida destruída, o acesso aos seus bens vedado, não se calou. Falou com a imprensa, escreveu um livro. Após várias investigações jornalísticas, percebeu-se que o internamento psiquiátrico era usado na época como ferramenta corretiva feminina, ferramenta de castigo e de formatação. Centenas de outras mulheres tinham caído em instituições psiquiátricas só por não caberem na malha apertada do comportamento adequado, só por tentarem ter voz própria, opinião própria.

Um século passado, a justificação do distúrbio mental por parte das autoridades iranianas ressoa de uma maneira especial: toda a mulher insubmissa é louca, toda a mulher com voz própria é histérica e maluca.

Mas será esta versão alternativa da realidade, onde as mulheres podem ser silenciadas pelas vontades de um estado religioso ou pelas vontades dos seus maridos, com conivência de instituições públicas, uma coisa datada, do século passado ou, exclusiva, na atualidade, das sociedades consideradas subdesenvolvidas, autocráticas, ditatoriais e teocráticas?

Lia uma notícia sobre Trump ter lançado, há uns meses, uma bíblia a que chamou “God Bless America”, onde colocou desde excertos da bíblia original ao hino da sua campanha eleitoral. E, já se sabe, nenhum movimento de qualquer que seja o candidato a umas eleições é livre de ser um simples movimento. Não há aqui convicções religiosas, puro interesse moral. Há, isso sim, a perceção de se estar num país fortemente tomado por crenças evangélicas. Existem, nos E.U.A., 480 000 igrejas evangélicas, fazendo fé no artigo de Pedro Moraes para a CNN Portugal. Sendo que uma grande parte destas instituições se rege por crenças fortemente conservadoras e, no que aos direitos das mulheres diz respeito, altamente reacionárias, o apelo político a esta crescente franja da sociedade é, ainda assim, previsível. É uma quantidade brutal de gente que pode ser orientada a nível de voto, que tem, na sua crença, um ponto de vulnerabilidade que pode ser, e é, explorado por quem de interesse.

Li, já uns bons anos, o livro de Margaret Atwood, A história de uma serva, passado numa distópica sociedade norte-americana tomada por extremistas cristãos de extrema-direita, onde o papel da mulher é encolhido até ao de parideira sem direitos. Mesmo na época em que fiz esta primeira leitura, nunca vi a obra como uma peça literária de ficção científica, de fantasia ou nem mesmo de distopia. The handmaid’s tale era estranhamente real, possível. Uma das coisas que sempre compreendi ainda enquanto aluna do secundário (long time ago) foi que nenhum direito ou conquista se instalava na sociedade com carácter definitivo e irreversível. As sociedades evoluíam, retraíam, ganhavam direitos, deitavam-nos fora, ora olhavam para todos os seus cidadãos com genuíno interesse, ora expurgavam para as margens os indesejáveis.

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A história de uma serva, de Margaret Atwood, Bertrand Editora.

Quando vejo, no Irão, aquela mulher despida, uma espécie de aparição entre os seus lúgubres pares, vejo ainda, no mesmo scroll nas redes sociais, vídeos de uma nova trend, a das trad wife’s, mulheres tradicionais que ficam em casa seguindo ordens restritas dos seus maridos, cozinhando, limpando, cuidando dos filhos, vestindo-se de forma modesta, vejo uma dondoca brasileira apregoar o papel submisso da mulher para com o seu marido, papel inato e certificado por deus, vejo discussões sobre direitos que pareciam garantidos, como se ainda fosse necessário voltar a legislar sobre os direitos reprodutivos das mulheres, vejo um crescendo de comentários religiosos, como se a crença fosse pano que se pudesse ser passado por cima de tudo, desde o genocídio, à violação e abuso sexual, à pedofilia. Tudo.  

Nos E.U.A., vejo os direitos das mulheres serem revertidos nos estados mais conservadores, numa forma de controlo feminino quase medieval e, lentamente, uma legislação que parecia de carácter definitivo, torna-se de cariz periclitante, mesmo nos estados mais liberais.

E não deixa de ser interessante como, tanto para muçulmanos como cristãos, os direitos das mulheres são o assunto central das suas crenças. As três grandes religiões monoteístas têm a figura da mulher como obsessão central da sua ideologia. Uma obsessão quase a roçar o patológico. As vontades de deus andam sempre em redor do que a mulher pode ou não pode fazer, dizer ou pensar.

Margaret Atwood, numa das suas obras de não-ficção, fala sobre a catalogação do seu tipo de escrita e afirma que não quer que os seus livros sejam chamados de livros de ficção científica, pois tudo aquilo que escreve pode, de facto, vir a acontecer ou até já ter acontecido em algumas sociedades. Daí o termo da ficção especulativa ser o mais indicado. Não há fantasia na República de Gileade. E a autora sabe-o bem.   

E, assim, o seu livro A história de uma serva publicado originalmente em 1985, perde, a cada ano que passa, mais o seu carácter de ficção científica e distópica, para se aninhar na forte possibilidade.

Para acabar, como nota humorística, Margaret Atwood publicou nas suas redes sociais um cartoon que apelava ao voto nas eleições norte-americanas, fazendo alusão direta ao seu livro The handmaid’s tale, onde mostrava como o voto era a ferramenta de libertação feminina. A nota humorística chega quando um outro utilizador comenta, explicando erradamente as bases da história àquela que era a própria autora da obra. Um mansplaining na sua forma mais básica e banal.

Por enquanto, a arrogância desmedida da ignorância ainda é engraçada. Mas até quando?

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Escritas no feminino - sugestões

Tenho dedicado os últimos meses à leitura exclusiva no feminino e quando se lê apenas no feminino, mais facilmente se percebe as subtis (e não tão subtis) diferenças entre a escrita feminina e masculina. Se posso concluir que as diferenças notadas serão características exclusivas da escrita feminina, obviamente que não. Mas serão certamente mais frequentes ao ponto de se tornarem fatores característicos.

E uma dessas características é a narrativa não totalizante, mais fragmentada, que não procura dar respostas e que se fixa naquilo que a vida é: retalhos, fragmentos, perguntas sem resposta ou com respostas insatisfatórias, felicidade transitória, descontinuidade e confusão. Há uma espécie de serenidade na consciência da impossibilidade de se abarcar o mundo todo e de se chegar a uma felicidade completa e dominante. 

Comecei por ler dois livros (para fins académicos) de não ficção:

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 Communities of Women - An idea in fiction, de Nina Auerbach

Um quarto só seu, de  Virginia Woolf

O primeiro livro fala sobre a representação das mulheres, enquanto personagens em comunidade, na literatura, explorando alguns exemplos literários em que as mulheres aparecem como uma comunidade feminina. Apesar de ser um livro já com alguns anos (1978), pareceu-me de grande contemporaneidade. Há um fator de estranheza, ainda agora, quando vemos retratadas, em livro, uma comunidade (seja familiar ou social) exclusivamente ou dominantemente feminina. Mas não sentimos semelhante estranheza quando se passa com comunidades masculinas.

O livro de Virginia Woolf não fala na representação da mulher enquanto personagem, mas é um ensaio sobre a mulher enquanto criadora, enquanto escritora. Publicado originalmente em 1929, este ensaio que é baseado em duas conferências dadas pela escritora na época, embora possa ser visto como algo datado (felizmente, alguma água passou pelos nossos moinhos), ainda assim é essencial para percebermos aquilo que está na base daquilo que a mulher é hoje, como criadora, como autora, na sociedade atual. O presente não é feito sem conhecimento do passado e o nosso passado é aqui, nesta obra de Woolf, sagazmente explorado. E, apesar do passado parecer passado, o melhor é ir olhando para ele, de forma a se evitar que ele teime em ser presente.

Na ficção, li dois livros de duas autoras internacionais e dois livros de duas autoras portuguesas.

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O pequeno amigo, de Donna Tartt.

O acontecimento, de Annie Ernaux.

Já tinha lido dois livros de Donna Tartt (O Pintassilgo e A história secreta) e resolvi comprar este livro que, cronologicamente falando, foi o segundo romance da escritora. Donna Tartt reúne duas características que parecem antagónicas, mas que para mim, enquanto leitora, funcionam bem: consegue ser bastante descritiva, demorar um tempo desmesurado em pormenores, e, ainda assim, consegue injetar na narrativa um determinado suspense que transforma os seus livros em page turners. Senti isso n’ O Pintassilgo e na História secreta, mas nem tanto com esta obra. A dada altura confesso que fiquei um pouco desmotivada, sem que isso me levasse a abandonar a leitura. No entanto, quando cheguei ao final, o livro aterrou-me todo em cima. Ao contrário das outras obras da autora, em que havia uma necessidade de tudo ficar explicado e mais explícito, este livro tem esta característica de ser real, como a vida - nem sempre temos resposta para tudo, nem sempre as coisas fazem total sentido e nem sempre as pessoas são exclusivamente boas ou más. É tudo bem mais complicado do que isso. E foi esta incompletude, esta sensação de falta que me fez gostar bastante do livro.

Relativamente ao livro de Annie Ernaux, li-o de uma assentada. Não tenho palavras para descrever os livros de Ernaux. Ou seja, não tenho palavras para descrever o que sinto ao ler os livros de Ernaux. Gasta-se muito o adjetivo brutal, mas será o melhor adjetivo. Brutal. Ernaux é crua na sua escrita e fala-nos com uma espécie de distanciamento necessário. Os acontecimentos de uma vida não são retratados para explorar emocionalmente o leitor. A força do que é descrito está, não na exploração emocional, mas na sua vista banal. Cada vez gosto mais da escrita de Annie Ernaux.  

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A história de Roma, de Joana Bértholo.

Teoria das catástrofes elementares, de Rita Canas Mendes.

Quando terminei o livro de Joana Bértholo, andei umas horas a cismar pela casa. Depois, abri o bloco de notas no telemóvel e escrevi: há livros que, ao terminar a última linha e fechando-se a capa, dizemos: gostei. Há outros que nos deixam desarrumados.

Bértholo deixou-me assim, como um quarto desarrumado, com tralha espalhada por todo lado. Como já deve ter dado para perceber, não sou muito de conseguir fazer um resumo da história (ou talvez seja capaz, mas não me interessa tanto), focando-me mais neste canal que sou, enquanto leitora (que também escreve). E esta História de Roma mexeu comigo enquanto leitora. Achocalhou-me, desarrumou-me e, placidamente, ficou especada a ver o meu desnorte. Joana Bértholo merece todos os prémios que por aí venham. Quando for grande, quero ser assim: como ela, como Annie Ernaux, como Donna Tartt e também como a minha mais recente descoberta, a Rita Canas Mendes. Quero ser como todas elas.

O livro de Rita Canas Mendes está construído tal como eu mais gosto: capítulos que parecem pequenos contos, numa união narrativa em fragmentos, como a vida numa soma de pequenos/grandes momentos. Como gosto de escrever assim, achei Teoria das catástrofes elementares como uma viagem a um local onde me sinto bem, me sinto à vontade, um local onde há muito o que explorar, mas onde me sinto acolhida no meio do caos. Mais uma vez, é esta característica da vida em retalhos, do incompleto e do indizível, que torna este livro uma agradável surpresa.

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Derry Girls, criado e escrito por Lisa McGee (disponível na Netflix).

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Decameron, criado por Kathleen Jordan (disponível na Netflix).

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Campo de papoilas, com argumento de Ioana Moraru (RTP2, disponível em RTP Play).

Na escrita para cinema e televisão, destaco Derry Girls como a série mais divertida que vi nos últimos tempos. É daquelas coisas que se pode dizer sem medo: está tudo bem nesta série – argumento, realização, interpretação, banda sonora. Tudo. Com uma escrita apurada, Lisa McGee conseguiu mostrar os fragmentos que compõem um país, as suas dissonâncias, as suas brutalidades (a Irlanda do Norte, nos tempos do IRA), inserindo todos estes aspetos como elementos do quotidiano na vida de um conjunto de adolescentes. É daquelas séries que sei que vou rever e, na qual, do alto dos meus 45 anos, encontro reconfortáveis referências e identificações, apesar das diferenças a nível político e social.

Decameron é também muito interessante e com um humor que identifico como muito feminino. Há algo no caos, na desordem e no desespero (retrata a história de várias pessoas durante a peste negra, quando se refugiam numa quinta no campo, para fugirem à doença), que torna a série estranhamente cómica e é essa estranheza do humor no caos que a faz ser tão brilhante. Gostei bastante e vi num fim de semana.

Por último, o Campo de Papoilas tem um argumento que não é convencional. Parece que estamos a ser levados para um lugar, desviamo-nos para outro (que era o lugar onde era suposto estarmos) e depois o filme acaba, deixando-nos a desejar um regresso ao lugar inicial. Fiquei um bocado a pensar naquilo e, a nível de história, estava ali tudo o que realmente era o que deveria ser contado, mas o desenho convencional dos argumentos e das narrativas, no geral, deixa-nos a braços com a vontade de um desenlace romântico, quando o que estava em causa nesta história era outra coisa. O foco era o desconforto de um polícia homossexual dentro de uma corporação policial obviamente homofóbica e tóxica, e quando esse desconforto transforma o polícia homossexual, o molda a esse ambiente, o deixa num limbo estranho de aversão/conhecimento/aceitação ou tolerância por parte dos seus pares. Achei bastante interessante, precisamente por me deixar essa sensação de incompletude e por não preencher os meus desejos narrativos, enquanto espetadora. Escrita pouco convencional e, se não o fosse, o mais certo era não ter pensado mais no filme.

 

Young Royals - os milagres de Santa Lisa

Não serão muitos os casos em que espetadores de séries e filmes saberão quem são os argumentistas por detrás do que acabaram de ver. Quando uma série tem sucesso e se segue uma outra do mesmo criador, talvez aí o argumentista tenha direito, a nível de divulgação e promoção da obra, a uma referência do tipo «do mesmo criador de… », mas nem aí o destaque merecerá sequer a referência do nome. No caso dos filmes, temos ainda muitos casos em que realizador e criador da ideia/argumentista são a mesma pessoa, o que acaba por facilitar o reconhecimento. Mas tirando estas exceções referidas, parece que o reconhecimento de um escritor por detrás de uma obra está como que reservado à área da literatura. Aos argumentistas, mesmo que a ideia do mais espetacular filme e série lhes tenha saído da cabeça, está-lhes destinado um já muito habitual anonimato. Sabemos nomes de atores, com menos frequência nomes de realizadores, mas argumentistas… nem por isso.

E se comecei este texto com este preâmbulo, foi porque vou apresentar uma interessante exceção à regra. Há três anos, dou por mim num sábado chuvoso a tentar descortinar algo novo para ver na Netflix. Apareceu-me uma sugestão de uma série sueca, que me pareceia ser do segmento Young Adult. Nesta área, vou vendo algumas coisas muito selecionadas, porque acabo por achar algumas séries com uma escrita muito pobre e básica. No entanto, fora dos circuitos anglo-saxónicos por vezes aparecem algumas coisas bastante interessantes ou, pelo menos, diferentes de um certo padrão já instalado. Assim, numa escolha que se revelou fatal (pela adição que criou) dou por mim a ver Young Royals. Em 2021, tinha saído apenas a primeira temporada de seis episódios, seguiu-se uma segunda temporada em finais de 2022 e a terceira e última temporada em Março de 2024.

E o que parecia uma série de adolescentes rapidamente se revelou muito mais do que isso. Nos seis episódios da primeira temporada temos jogos de tensão muito bem construídos (embora sempre numa estrutura narrativa clássica), mas sem nunca deixar que a construção de personagens caia em nenhum tipo de estereótipo e facilitismo. As personagens são densas, complexas e, embora haja um aparente antagonista, os protagonistas são, como todos nós, propensos ao melhor e ao pior. Não há maniqueísmos nesta escrita televisiva.

Logo após esta primeira temporada, não só a série ganhou visibilidade como a própria criadora e argumentista, Lisa Hamjörn, se tornou uma figura de interesse nas redes sociais, a par dos jovens atores da série.

Com a segunda e terceira temporadas, a importância de Lisa cresceu de forma exponencial. A série sueca começou a criar uma tal base de fãs, que o destino de personagens e o desenvolvimento narrativo pareciam depositados nas mãos de Hamjörn e esta tornou-se o alvo de toda a atenção dos milhares de fãs da série. Não havia promoção da série sem Lisa, não havia entrevista sem Lisa, não havia fandom sem a Santa Lisa.

Se na segunda temporada temos seis episódios de pura tensão e de nervos em franja, com a terceira e última temporada podemos finalmente perceber a qualidade da escrita no seu todo.

E se os fins são sempre algo agridoces, o fim desta série não escapa à regra. Doce, porque finalmente se consegue ver a história como um todo, amarga, porque acabou para sempre.

No entanto, para mim, enquanto pessoa que gosta de escrever, é maravilhoso perceber como uma singela série juvenil tem um plano de escrita que engloba todas as temporadas, que não deixou nada ao acaso e que onde tudo parece pensado desde o início, tendo sempre em vista apenas os 18 episódios, sem ambições de novas temporadas que só destruiriam a história. E este plano passa por aspetos de escrita que englobam coisas como o guarda-roupa, a luz, elementos que acrescentam camadas à narrativa e suas personagens. Mesmo pequenas coisas que pareciam ter ficado penduradas, palavras ditas que pareciam não ter levado a lado nenhum, ataram-se na perfeição com o que ainda estava para vir. Há ainda dois outros aspetos de escrita que me interessaram bastante: as questões dos paralelismos e do simbólico. As três temporadas têm muitas cenas espelho, que caracterizam personagens, através do paralelo (seja pela semelhança ou contraste), que revelam mais sobre a complexidade daquelas pessoas, do que os diálogos em si. O simbólico está presente em toda a série, mas, no último episódio, é interessante como a escrita através do símbolo acaba por revelar o desenlace final de toda a trama, mesmo quando tudo parece ir em sentido contrário. Nos últimos dez minutos, apesar de Lisa ter levado o espetador até a um beco de medo, desespero e choro, ela já nos tinha mostrado antes, através do simbólico, como nos estava a enganar, como tudo iria acabar.

Também a introdução de elementos de reflexão está muito bem-feita, entrando na escrita da série sem ser de forma forçada. As questões das microagressões raciais, a homofobia, as diferenças de classes e respetivos privilégios de umas em relação às outras, as doenças mentais e seus impactos, as adições, etc., todas estas coisas que fazem parte do nosso dia-a-dia e que vemos introduzidas na escrita desta série com muita elegância e mestria, sem parecer que se está a introduzir elementos de exploração emocional só porque sim.

Por último, o que nesta escrita mais me fascinou foi a construção de personagens “reais”, no sentido em que ninguém é absolutamente bom ou mau. O arco das personagens, da primeira à terceira temporada, é perfeito. Tratando-se de adolescentes, nem todos os comportamentos, mesmo dos dois protagonistas (Wilhelm e Simon), serão sempre exemplares, consistentes, lógicos. E, no que diz respeito ao vilão/antagonista, passamos de um ódio visceral por aquela personagem irritante e miserável (August), para uma total compreensão da gênese daqueles comportamentos. Esta brincadeira com a perceção dos espetadores através da construção da personagem é fabulosa e, acima de tudo, muito relacionável. Há um fator de identificação, a dada altura, com toda e qualquer personagem. Todos nós já fomos bondosos e execráveis, amorosos e impacientes, altruístas e profundamente egoístas e é esta sensação de estarmos perante pessoas verdadeiras, com histórias verdadeiras, que cria este fenómeno de popularidade da série.

E foi este desenvolvimento das personagens, ao longo de 18 episódios, que me revelou a qualidade da série. Quando vemos o último episódio e nos vemos remetidos para a lembrança do primeiro episódio de todos, percebemos como tudo faz perfeito sentido, mesmo dentro de todas as ambivalências próprias de qualquer adolescente ou jovem adulto. O final é como o desenlace óbvio, mas que, ainda assim, não estávamos à espera.

Os fãs da série, antes da estreia da última temporada, rezavam a Lisa Hamjörn para que não os dececionasse. Se ela não lhes podia dar mais do que estes últimos seis episódios, pelo menos que estes «terminassem bem». E, depois de muitas preces, Lisa atendeu-os. Com um absoluto domínio de gestão de tensão e de construção de personagens, Lisa e a sua equipa de escrita fez o milagre.

Young Royas acabou, mas foi majestoso enquanto durou.

Depois desta série, de ter visto algumas entrevistas com a argumentista, a vontade de expandir a minha escrita para os domínios do argumento aumentou. Por vezes não é necessário um aparato disruptivo para se fazer algo com qualidade. E, por vezes, também não é necessário abandonar modelos clássicos de escrita televisiva para se fazer algo com interesse.

Assim, quando for grande gostava de fazer milagres como a Santa Lisa.

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Lisa Hamjörn

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Omar Rudberg e Edvin Ryding (6 episódio da 3ª temporada, Young Royals).

O silêncio ensurdecedor nas entrelinhas

Refugiava-me por detrás de um semblante azedo e de um mutismo acusatório. Parecia-me impossível que ele não compreende-se o que me atormentava, as aflições e inseguranças que me acossavam. Cheguei a comentar com uma amiga: “Será que é preciso fazer um desenho?” As minhas frases curtas, os meus silêncios, as minhas lágrimas mal escondidas… as entrelinhas que eu esperava que ele conseguisse ler e interpretar passavam-lhe ao lado, como uma brisa. Se inicialmente julguei que ignorava o que, para mim, era uma enxurrada de informação que eu lhe oferecia em desespero, com o passar dos anos percebi que não havia qualquer maldade associada. Os meus silêncios, para ele, eram apenas isso: a falta de som, de palavras; a minha expressão carregada de mágoa, as minhas reações hiperbólicas às pequenas coisas eram a manifestação de um dia menos bom, cansaço, saturação. Coisas da vida. Havia nele uma completa incapacidade de perceber esta linguagem em que me expressava.

Esta guerra nuclear que me abrasa, ele não a vê, desconhece-lhe a devastação associada.

Durante décadas questionei-me se o mal desta incompreensão era exclusividade dele, do meu marido, se era a minha forma de me expressar que era demasiado enrodilhada e complexa ou se era culpa de uma generalizada incapacidade masculina de perceber o colosso que é o hipertexto da comunicação feminina.

Esta semana, deparei-me com umas publicações de um realizador nacional sobre algumas das últimas novidades cinematográficas internacionais. Acabo por ter interesse em saber a opinião dos outros sobre livros e filmes, porque a escrita, seja de prosa ou argumento, é-me importante. Através destas análises literárias ou cinematográficas compreendo que a forma como vejo o mundo é, não raras vezes, idêntica à das outras pessoas. Mas, outras vezes, abre-se um fosso. Um abismo aparentemente intransponível entre eles e eu.

O primeiro filme era o filme francês Anatomia de uma queda e o segundo é o filme Vidas passadas. Gostei bastante dos dois filmes, principalmente do argumento e assim foi com um certa incompreensão que li as críticas que o cineasta fazia às duas obras. E o que o incomodava exatamente nestes dois filmes? O banal, a suposta simplicidade narrativa, a forma que apelidou de televisiva da cinematografia, a narrativa curta que era esticada, sobrando silêncios, porque não havia nada para se dizer. Alguns dos comentários às publicações referiam ainda a frieza da personagem principal do filme francês, a contenção ou falta de emoção (e esta crítica bateu ainda mais forte, porque Sandra Hüller tem um desempenho fenomenal, digno de todos os prémios que apareçam pela frente).

Fiquei a matutar naquelas apreciações, como normalmente fico quando a visão é diferente da minha. Tento compreender o que separa o meu mundo do dos outros, tento compreender a cisão, a fenda que separa aquilo que me move daquilo que mexe com os outros.

Pensava para mim que tanto um texto como o outro estavam muito bem escritos, dois argumentos excecionais, moviam-se no que estava nas entrelinhas, sem serem condescendentes com o espetador e, sim, o que não era dito, o que se sabia estrangulado, era de brutal importância e tudo aquilo que era essencial não acabava na palavra pronunciada. Nenhum dos dois estava enquadrado dentro de uma forma narrativa clássica, dentro dos seus géneros, mas essa aparente desconstrução ou fragmentação só acrescentava densidade, nunca fragilidade.

“Mas será que é preciso fazer um desenho para que eles entendam?”

Quando percebi o que unia estes dois filmes produzidos em países diferentes, falados em diferentes línguas, um outro filme mais antigo assomou-se-me através das frinchas da memória. Um filme australiano de 2003 chamado Japanese story. Vi o filme há quase duas décadas e lembro-me da inusitada sensação do peso da tensão criada pelas emoções que não eram dissecadas em diálogos explanatórios, da estranha evolução narrativa e da evidência, antes mesmo de ter visto os créditos, de que aquele filme tinha sido realizado e escrito por uma mulher. E foi. Realizado por Sue Brooks e escrito por Alison Tilson.

Também Anatomia de uma queda foi escrito e realizado por uma mulher – Justine Triet, e o mesmo se passa com Vidas Passadas, escrito e realizado por Celine Song.

E sabendo que não havia nenhuma misoginia ou maldade na apreciação do realizador a quem eu cuscava nas redes sociais as críticas cinematográficas, restava a evidência de que, por vezes, é mesmo preciso fazer um desenho. Há uma característica nas escritas no feminino, quando são feitas com autenticidade ou, como lhe chama a escritora Elena Ferrante, verdade literária, que as afasta da escrita no masculino. E esta característica é a capacidade de compactar uma guerra nuclear no silêncio, naquilo que fica por dizer; um turbilhão ameaçador, esmagador num esgar de boca, uma tristeza profunda, uma vida que se esvazia de sentido num rosto que não se vira para trás, um grito altissonante contido numa mão que repousa despreocupadamente sobre uma perna. A devastação travestida de banalidade.

E pegando apenas nas minhas leituras no feminino dos últimos dois meses, Os anos de Annie Ernaux, Canção doce de Leila Slimani, Tudo é possível e Olive Kitteridge de Elisabeth Strout e Vidas de raparigas e Mulheres de Alice Munro, todos estes textos literários sofrem dessa aparente banalidade, de uma contenção que extravasa por todas as frinchas do que está implícito, de uma certa desconstrução genérica e de um desconforto que magoa. São textos que se constroem para além da leitura imediata, para além do ato físico da leitura, porque, embora todo o texto literário seja apenas palavras, quando há engenho de quem escreve, aquilo que fica por dizer, o silêncio nas entrelinhas é mais ensurdecedor do que qualquer frase descritiva de um grito uivado.  

Talvez haja alguma estranheza perante uma escrita que ainda não é mainstream, a escrita no feminino, principalmente quando se fala de cinema, mas creio que com o tempo se chegue a um patamar em que não seja necessário fazer um desenho, em que qualquer um de nós, homens e mulheres, seremos capazes de ler nas entrelinhas, perceber os silêncios, sentir a ressonância das palavras que ficaram estranguladas numa banal frase breve.

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Vidas passadas, de Celine Song, 2023.

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Anatomia de uma queda, de Justine Triet, 2023.

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Uma história japonesa de amor, de Sue Brooks, 2003.

Red, White and Royal Blue

Ultimamente, tendo a começar os meus textos ou conversas com a afirmação: «Eu tenho 45 anos» como se isso, por si só, respondesse a todas as perguntas ou explicasse todo o disparate ou estranheza que fossem pronunciados por mim dali para a frente.

Neste caso, em que me preparo para escrever sobre uma comédia romântica, o «eu tenho 45 anos» explica tudo e mais alguma coisa. Ter 45 anos explica o número de estrelas que darei a um filme, explica que posso ter, sem vergonha, chorado a vê-lo, explica que já nem sinta vergonha de o admitir.

Quando era adolescente e no início da minha idade adulta entreguei-me aos prazeres das crises existenciais, do sofrimento e da expiação e embora o amor estivesse lá como uma possibilidade, o fatalismo era a minha religião. Entreguei-me aos mestres da literatura, procurava as obscuridades cinematográficas, as músicas depressivas com laivos suicidas. Em mim não havia lugar para o amor meloso, isto porque eu acreditava que ele existia, mas que não era para mim ou era imperativo rejeitá-lo.

Acho que na minha juventude nunca terei visto uma comédia romântica: escolher um filme desse género, convidar os amigos e ir ao cinema vê-lo. E embora tenha assistido a muito cinema dito comercial, a comédia romântica era o que de mais baixo se poderia ir ver a uma sala de cinema. Era preferível assumir perante os amigos a autoria de um qualquer crime de sangue a admitir-se que se tinha gastado dinheiro com uma mediocridade cinematográfica como uma comédia romântica.

Agora, chegada a meio da década de quarenta, aqui estou eu a ver e rever uma comédia romântica que pode ser classificada com todos os objetivos pejorativos que eu tinha antes guardados para este tipo de cinema.

Red, White and Royal Blue é uma comédia romântica da Amazon Prime, baseada no livro homónimo de Casey McQuiston. Já tinha ouvido falar do livro, mas não o li. Na altura em que saiu, fiquei com a impressão de ser um tipo de leitura muito orientada para um público jovem adulto.

E embora não haja motivo para vergonhas em admitir que já casei Dostoiévski com Jo Nesbo ou Yrsa Sigurdardóttir com Toni Morrison, a pilha de livros comprados e ainda não lidos era (e é) gigante e não caí na tentação de comprar o livro em questão.

Mas quando o filme saiu e depois de alguns dos meus amigos, que sabem exatamente o que quero dizer com o «eu tenho 45 anos», mo terem aconselhado, lá fui vê-lo.

E realmente é:

Adolescente, foleiro, meloso, irrealista, piroso, lamechas, manipulador de emoções, fofinho e previsível.

E eu adorei.

Eu sei que o mundo não é assim, eu sei que os obstáculos derrubam as pessoas, eu sei que o diabo do amor é coisa tão complicada, complexa, que já nem sinto vontade de falar dele, eu sei que o que há de mau para acontecer normalmente acontece, eu sei que a mediania e a mediocridade imperam, eu sei que não há espaço nem vontade para os grandes gestos, para as grandes ações, eu sei que aquele frenesim adolescente, aquela sensação de se ter uma vida inteira pela frente, pronta para ser heroicamente desbravada, eu sei que essa impetuosidade, impulsividade está moribunda, como morta, emitindo os seus últimos estertores. Eu sei, como diz o outro, que vou falhar e… falho. Tenho plena consciência de tudo isso.

Já tenho idade para conhecer todas as engrenagens disto de se viver e, como tal, nunca como agora fez sentido rir de coisas básicas, parvinhas, algo pirosas, nunca fez sentido como agora verter lágrimas pela fortuna de alguém amar alguém, mesmo que esse amor tenha sido desenhado propositadamente para pessoas como eu, nunca antes fez sentido vibrar com uma cena íntima entre dois homens e captar em tudo aquilo, em dedos que se tocam, em palavras bravas que se pronunciam sem medo, uma centelha do que foi ser-se jovem e de se sentir o mundo entre os dedos.

Red, White and Royal Blue não é Bergman, não é Manoel de Oliveira, não é nenhum Tarantino (embora por lá ande a Uma Thurman), mas é ridiculamente querido, pateticamente meloso, dolorosamente adolescente, entre o riso e o choro, exatamente por onde cada adolescente (e adolescente wannabe) deve navegar.

Para um adulto que decida ver o filme, o mais certo é todo o início dar uma certa vontade de se querer odiar aquilo. É uma comédia adolescente que ali se começa a desenrolar, com laivos (a todos os níveis) de Disney Channel, uma estrutura narrativa óbvia de inimigos que viram amigos que viram amantes. Mas é absolutamente impossível manter essa vontade de odiar após uma dezena de minutos, porque, mesmo que não se queira, mesmo que seja absurdo admitir-se, nós precisamos daquilo.   

Para além desta observação mais pessoal, deixo ainda aqui uma outra nota. Estamos a falar de uma comédia romântica queer, em que as personagens principais são dois homens e, acho que se todo o mundo heterossexual teve direito a boas doses de pirosice, porque não dar também essa oportunidade, essa representatividade do amor meloso, piroso, fofo e algo foleiro à comunidade LGBTIQA+? Não haverá maior normalização da diversidade do que quando esta chega a coisas tão básicas como as comédias românticas.

Para além da parte romântica, refiro ainda outra nota. Falando de política e dos vários sistemas políticos (seja a monarquia no Reino Unido e um sistema democrático republicano federalista nos E.U.A.), o filme acaba por trazer à fala questões como a representação política de comunidades menos visíveis e da importância desse representatividade (a comunidade hispânica nos Estados Unidos) e também a questão da relevância ou utilidade da monarquia no século XXI.

Assim, este filme é todos os adjetivos que reservamos para as comédias românticas, mas não há qualquer mal nisso. O cinema, tal como outras expressões artísticas, guarda em si a possibilidade do entretenimento, do ligeiro, do imediato, do infantil e da submissão ao objeto artístico.

Amanhã, o mundo trará sangue, suor e lágrimas, queda, desconforto e solidão, misoginia normalizada e homofobia enraizada. Por hoje, fico-me por uma história romântica que acaba bem.

Red, white and royal Blue

Realizador: Matthew Lopez

Atores principais: Nicholas Galitzine, Taylor Perez, Uma Thurman, Sarah Shahi, Rachel Hilson e Stephen Fry.

Amazon Prime

Escrever é só palavras

Passaram quase três horas. Escrevi meia dúzia de linhas. Rabisquei as duas cenas seguintes num caderno, para justificar tanto tempo perdido, mas não consigo abrir o diabo daquela porta, fazer a personagem entrar naquele quarto, confrontar-se com as perdas, com a memória do que foi e que não poderá voltar a ser.

Não consigo rodar a maçaneta e escrever as duas cenas finais.

Por esta altura, parece impossível fazê-la perceber que não vale a pena tanta resistência. Nada disto é real, nada disto é materializável fora da minha cabeça, nada disto existe para além dela, a personagem, e de mim, a sua criadora.

Sinto-me alvoroçada, como se aquilo que estivesse ali para acontecer, aquilo que eu estou prestes a fazer suceder, não fosse apenas um amontoado de palavras que se organizam numa estrutura pensada, num documento guardado no meu computador. A minha pulsação está alterada, a minha respiração - inspirações e expirações breves, atabalhoadas - comporta-se como se antecipasse um grande acontecimento, a chegada de uma notícia decisiva. Um beijo de uma boca que se aproxima, a notícia de uma morte inesperada, o anúncio de uma saída digna disto tudo.

Mas sou só eu a viver mais um dia da minha vida. Banal, trivial e previsível. Eu sentada numa cadeira, no escritório, frente ao computador. E aquilo que faço aparecer sem qualquer magia na tela do computador são apenas palavras. Só palavras.

Palavras que fazem andar, abrir portas, chorar baixinho, quase sem som. Palavras que percebem as camadas complicadas de um olhar medroso, palavras que confrontam com o silêncio, a ausência, palavras como facas, que retalham, esventram, fazem sangrar, palavras como caricias num rosto que não as esperava. Palavras que sobressaltam com um punhado de letras. Palavras num orgasmo que faz estremecer, descontrolar, perder o pé por segundos, para logo flutuar em águas tépidas e calmas.

Palavras que submergem um filho em águas profundas, palavras que o resgatam com um abraço líquido, beijos no rosto, mãos cravadas na carne.

Escrever é remoer durante dias nos contornos daquele universo que nos habita, um universo paralelo ao da nossa vida real, para logo depois se ficar consternado frente a uma linha de texto incompleta, pendente da sua vontade, com o nosso coração a bombear sangue pelo corpo todo a uma velocidade furiosa, com a nossa respiração percussiva a ribombar nos ouvidos como banda sonora.

Escrever é os dedos pousados com afeto numas quantas teclas do computador, refreados pela trela que lhe colocamos de correr arrebatadamente até à palavra FIM.  

Protege-me daquilo que eu quero

Quanto tempo é muito tempo? Quanto tempo é tempo demais? E poderá o tempo ter um tal efeito corruptor que a sua passagem nos deixe danificados para sempre?

Ainda adolescente acho que já tinha a noção, embora de forma inconsciente, como uma presença que se movia sub-repticiamente ao meu redor, de que me deveria proteger daquilo que queria, porque aquilo que eu queria não era para mim, não era coisa que eu devesse querer.

Na tentativa de iludir esse meu querer, escolhi caminhos, estradas e becos de vida que, como se costuma dizer, não lembram ao menino Jesus. Se é possível alguém fazer tudo errado num percurso de vida, é bem capaz de o ser. Eu pelo menos tentei.

Escrevi o meu primeiro romance a meio da minha década de vinte. Um calhamaço histórico, escrito numa fúria desenfreada, sem filtro e cada dia em que me sentava para escrever no computador, era como entrar em transe, mergulhar num universo que me absorvia, me puxava pelos pés, não me deixava escapar. Não o fazia em segredo, mas não era algo que gostasse de me gabar. Fazia-o porque precisava, porque me sentia impelida a fazê-lo. Uma espécie de urgência aliada à necessidade de escapismo.

E no precisar parece que não há arte. 

Mas há algo de perverso na escrita, na criação de mundos, de universos paralelos. Quando se tem de regressar ao mundo do Aqui e do Agora, instala-se uma solidão medonha e dessa solidão nasce uma vontade mesquinha de encontrar alguém que seja como nós, que veja o mundo como nós, que use os mesmos óculos de ver a realidade, uns óculos iguais aos nossos. E quanto mais escrevemos mais nos afastamos do real, mais as personagens encerradas dentro do disco rígido do nosso computador deixam de ser letras numa página branca, ganham formas e reclamam do nosso abandono quando pomos fim à vida que lhes criámos.

Tentei de todas as formas que conhecia na altura (e também agora) dar-lhes uma oportunidade de vida e, certamente, também curar o meu ego ferido por um querer que não me era devido. Dos muitos envios a editoras ao longo de duas décadas, os dedos de uma mão chegarão para contar as respostas obtidas. Entre os Nãos simpáticos e o silêncio, eu sabia o que deveria fazer.

Parar.

Meses passados de um doloroso luto ─ que não é apenas luto, mas crime também, pois não tive eu de matar personagens, incendiar e terraplanar mundos, votá-los todos ao esquecimento, ao abandono ─ tento ser uma pessoa normal, brincar às pessoas normais. Ter um trabalho normal, gostar de coisas normais, conversar sobre assuntos normais. Mas há algo na minha natureza profundamente anormal.

Volto ao mesmo. Caio, esmurro-me toda, levanto-me, sacudo-me e, raios me partam, volto a cair meia dúzia de metros depois. É um estado de dissonância cognitiva permanente, em que de estado transitório, habito o Estado Nação da Dissonância.

Mesmo quando não escrevo, seja sentada a um computador ou num caderno de rascunho, aquilo germina, ganha formas, voz e corpo, arquitetura e cheiro, sons distintos. Estou a conduzir, estou nas aulas, estou no trabalho, estou no supermercado, estou a ver uma parvoíce qualquer no telemóvel, e uma frase sai de uma boca, um medo obscuro revela-se num deles, um prédio monta-se, como um lego, numa paisagem urbana, uma comida feita com amor é levada à boca por alguém sem fome no seu desalento. Estas histórias crescem ao meu redor como ervas daninhas num inverno chuvoso, agarram-se-me às pernas, como uma hera e em menos de nada cobrem-me o corpo, a mente, não deixando qualquer nesga de mim a salvo.

Ao fim de três romances escritos, de duas décadas passadas, percebo que o impacto que a escrita e a solidão que lhe vem associada, o distanciamento criado pelos universos em que me levo a habitar, as dores de cada uma daquelas pessoas que, não sendo pessoas reais, vivem estranhamente comigo, me estão a causar um dano tal que, por esta altura, me parece um dano irreversível.

Em mim vivem pessoas, morrem pessoas, edificam-se edifício, bombardeiam-se outros, experienciam-se amores colossais, vivem-se amores ingénuos e banais, têm-se dúvidas atrozes, medos mesquinhos e medos dilacerantes, cantam-se músicas, dança-se e chora-se, desenterram-se memórias, criam-se novas e…

não sei se,

             sozinha,

consigo lidar com tudo isto.   

Mais um gajo!

Fazia um scroll desinteressado no telemóvel numa rede social, quando me apareceu a notícia da divulgação do prémio Saramago 2022, entre polícia na universidade, Ronaldo, Qatar e a guerra na Ucrânia.

Abro a notícia do prémio literário e a primeira coisa que me saiu, alto e a bom som, sem filtro prévio, foi:

─ Mais um gajo!

Mas apontar o óbvio, mesmo usando dados que suportem esse óbvio, só traz dissabores. Não faltarão os guardiões da meritocracia, da justiça da qualidade, do valor do vencedor. Se ganhou, é porque era o melhor, dirão alguns.

Mas hoje acordei teimosa, por isso, aqui vai. Peguemos nos principais prémios literários portugueses e de língua portuguesa. Refiro-os como principais pois são os que terão um maior prémio monetário e são também os que trarão aos vencedores uma maior notoriedade.

Temos o Prémio Leya, com um valor de 50 mil euros, instituído desde 2008. Durante o período de 2008 a 2022 (sendo que em alguns anos o prémio, por decisão do júri, não foi entregue), ganharam o galardão 7 homens e 2 mulheres - 2 mulheres num total de 9 vencedores.

De notar que a própria composição do júri é também, a nível de género, bastante díspar. Começaram em 2008 com 6 homens e 1 mulher (7 membros) e hoje em dia estão com 5 homens e 2 mulheres.

Avancemos para o Prémio Saramago, que é um prémio bienal, atribuído desde 1999, com o valor de 40 mil euros. Dos 12 vencedores até à data, apenas 2 mulheres ganharam o prémio desde 1999. Ver o nome do vencedor de 2022, o escritor brasileiro Rafael Gallo, nem espanto causa. Surpreendente é ler os comentários à notícia do vencedor. A celeuma pelo anúncio não estava ligada ao facto de ser mais um homem a vencer o galardão, mas sim ser um escritor brasileiro.

Deste prémio, saliento ainda a composição dos membros do júri nesta última edição - 8 membros, sendo 5 deles homens. Esses 5 homens eram todos eles antigos vencedores do prémio em questão.

Para completar aqui este apanhado de prémios, refiro o prémio Oceanos, prémio que começou por se chamar Prémio Portugal Telecom e que é um prémio para autores de Língua Portuguesa, atribuído neste momento no Brasil, com o valor total de 250 mil reais (a distribuir entre os 3 primeiros lugares). Entre 2003 e 2021, dos 19 vencedores (primeiro lugar), apenas 3 mulheres conseguiram ganhar este prémio.

Remato com o Prémio Camões, prémio atribuído desde 1989, pelos governos de Portugal e Brasil, com o valor atual de 100 mil euros, pelo conjunto e importância da obra dos autores vencedores. Em 34 vencedores, temos 7 mulheres.

Extravasando as fronteiras da língua portuguesa e dos prémios para autores em língua portuguesa, deixo apenas os dados dos vencedores do Prémio Nobel da Literatura: 119 vencedores, 17 mulheres.

Ora, com esta pequena e singela análise não pretendo aferir que os vencedores de todos estes prémios durante todos estes anos não serão escritores capazes. Longe de mim sugerir tal coisa. Muitos deles são habitués das minhas estantes, muitos deles são presença constante nas notícias que leio, nos feeds das minhas redes sociais. Mas, tê-los a todos como presenças habituais nos meus mundos ficcionais, deixa-me um travo amargo na boca. Eu, mulher, consumo muita literatura escrita por homens. Eu, mulher, levo o meu tempo a ver o mundo pelos olhos de um homem, de muitos homens. Eu, mulher, consumo histórias sobre mulheres, escritas por homens.

─ Ah, mas são eles os melhores. Se ganharam, devem ser os melhores de todos os candidatos.

─ Serão?

Temos prémios literários decididos quase exclusivamente por homens e ganhos por homens. Temos publicações nas maiores editoras movidas por esses prémios, carreiras que se agigantam à conta desses prémios e o que sobra é uma visão unilateral do mundo, uma visão masculina do mundo. E o mais engraçado disto tudo, o mais estúpido disto tudo é que a maioria dos leitores, a maior percentagem daqueles que lê de um a mais livros por ano, é feminina.

No meu mestrado de Escrita Criativa na Faculdade de Letras em Coimbra, 80% dos alunos do meu curso são mulheres. Daqueles que querem escrever, daqueles que querem melhorar capacidades, procurar uma identidade literária e poli-la, 80% são mulheres. Mas mulheres também elas já afogadas em muita literatura masculina, possivelmente já moldadas por muitos anos a ver o mundo através de óculos masculinos.

E não deixo sugestões para uma mudança neste paradigma. Vislumbro apenas fragmentos da engrenagem por detrás desta gigante máquina que é o mundo editorial e mesmo assim consigo concluir que sou demasiado velha para acreditar em mudanças.

Foi assim, é assim e continuará assim.

 

Young Royals – contagem decrescente para a T2

As aparências iludem. Os rótulos enganam. Chegando-se ao momento da confrontação, há que se ter hombridade e se admitir que o que nos levou a um lugar especial não foi uma motivação pertinente, mas a busca de um entretenimento fácil.

Mas ainda assim chegamos lá, mesmo que por atalhos esconsos.

Há um ano atrás, num sábado, estava entediada. Chovia, não tinha nenhum programa especial marcado, estava em casa sem nada para fazer (podia ter lido um livro, mas o tempo lá fora chorava por algo mais básico e reconfortante) e meti-me a coscuvilhar opções na Netflix. Apareceu-me, entre outras coisas, uma série sueca chamada Young Royals. Pela descrição, parecia-me uma daquelas séries teens, tipo Elite, mas deixei-me convencer por duas razões: era uma série sueca e sinto-me cativada (de uma forma entre o inexplicável e o absurdo) pela Suécia e era uma série com uma temática gay e sinto-me cativada (de uma forma entre o inexplicável e o absurdo) por toda a iconografia gay desde que era adolescente (coisa que foi há muitos, muitos, muitos anos atrás).

Eram seis episódios e… vi-os todos nesse mesmo sábado. E, nesse dia, nesse malfadado dia, deu-se um fenómeno sobrenatural que ainda perdura. Nunca na vida tinha revisto uma série (já tinha revisto filmes, mas escassas vezes e é raro reler livros – há muitos filmes e séries para ver e muitos livros para ler, para se perder tempo com revisitas). Mas, desde esse nubloso dia, já revi a série Young Royals umas quantas vezes.

Porquê?

A escrita para mim é coisa de grande importância. Já estudei cinema, com o intuito de aprofundar a disciplina de escrita de argumento, estudo escrita criativa neste momento, tentando manter um arnês e uma trela, em jeito de subjugação, numa área querida mas que não consigo ainda dominar ou levar descontraidamente a passear.

Por vezes, quando «consumimos» produtos audiovisuais, deixamo-los pelo meio, não prosseguimos, achamos entediante ou repetitivo e não conseguimos perceber a razão. Normalmente uma das razões disso acontecer passa pela escrita deficiente desses produtos. Quando nos deixamos apanhar por algo, quando rejubilamos, nem percebemos a mestria daqueles que, com muita habilidade e talento (e através da escrita), montaram aquilo que nos levou ao céu.  

Esta série está, acima de tudo (mas não só), muito bem escrita. O argumento é de Lisa Ambjörn e das irmãs Forsman e espanta-me a capacidade de, no que parece um curto espaço disponível (6 episódios) tanto acontecer, sem nunca cair no previsível, no cliché, no forçado e, acima de tudo, no inverosímil. É uma montanha russa, mas, ao contrário das montanhas russas, em que tudo nos passa pelos olhos a correr, sem permitir tempo para ver, pensar, absorver, esta montanha russa tem muita atenção aos detalhes. E são esses detalhes que, numa fabulosa soma, transformam este produto audiovisual numa obra de arte.

Assim, a escrita é espantosa. E o resto?

O diabo do resto também. Uma realização excecional, com uma cinematografia em que os movimentos de câmara, os jogos de cores, escolha de certos planos aproximados parecem componentes de uma orquestra em absurda sintonia em busca da exaltação. A sonografia também me pareceu excelente, com uma gestão de silêncios e som e uma escolha da banda sonora sempre pertinentes (não é irritante quando encharcam filmes e séries com uma banda sonora clássica básica, a puxar a lágrima, mas que, ao invés de fazer chorar, dá vontade de espancar alguém?).

E depois, o elenco. Os atores. Aqui entra um dos fatores que, inicialmente, mais me cativou, por uma razão inesperada. Temos um grupo de jovens diferentes uns dos outros, com aparências diversas, como em qualquer escola e… inesperadamente (pelos padrões da indústria audiovisual) borbulhentos.

Se imagino Edvin Ryding, o ator principal, numa série americana? Imagino, dado que ele é um talentoso ator. Mas, carregadinho de base na cara. Aquele rosto, tal como aparece na série, seria rejeitado fora da industria audiovisual europeia. Demasiado acne, demasiada imperfeição.

A opção de ter os atores tal como são, com acne, com cicatrizes, cultiva uma maior identificação com os espetadores, pois no público estarão adolescentes e estarão outros, tal como eu, que já não o são, mas já o fomos. É mostrar o ser humano nas suas facetas diversas, mas ainda assim, mostrando a beleza dessas mesmas facetas.

Tirando a questão do aspeto natural dos atores, todos eles são excelentes e digo-o sem exagero. Edvin, apesar de ter uns 19 anos, é já ator desde pequeno. Omar, embora estreante, não se percebe ponta de inexperiência. Depois temos Mälte. Se temos vontade de agredir o ator que é o vilão (?) da série, parte dessa vontade nasce da capacidade irrepreensível de um ator desempenhar esse papel.    

Assim, no dia em que saiu o trailer da segunda temporada da série, que estreia a 1 de Novembro, digo-vos apenas que:

Parece uma série para jovens adultos, mas…

Não é só uma série para jovens adultos!

 

Uma soma de bem fazer em várias áreas, que culminou num «produto» de qualidade.

É um dos produtos televisivos mais bem conseguidos que tive a oportunidade de ver nos últimos tempos.

 

 

Trailer 2ª temporada Young Royals

Trailer 1ª temporada Young Royals

Personagens e seus lugares como fantasmas em casas assombradas

Ao revisitar um lugar da nossa vida, talvez anos depois da nossa última visita, fragmentos da nossa presença antiga reverberam pelo tempo. Evocamos sem esfoço sensações, emoções sentidas naquele local há anos, em nós materializam-se odores, sabores, como se o tempo não fosse tempo e ali, à nossa frente, se tivesse aberto uma porta física para o passado. Sentimos o odor de um cozinhado, o cheiro de uma planta, de uma flor, que parece só ali existir e um cheiro faz-nos viajar, ora aos trambolhões, numa estrada esburacada de ansiedade, ora ao som de um hino nostálgico que nos faz sorrir.

Através deste portal mágico, a evocação de uma conversa, das pessoas que nela estavam envolvidas e do cenário onde esta se desenrolou, com todos os detalhes cénicos, tudo isto aterra com estrondo ali à nossa frente.

Os espaços nunca são só espaços e mesmo quando são espaços novos, nunca visitados antes por mim, têm em si a tatuagem de todas as presenças antigas, os ecos da sua história, como um organismo vivo que se alimenta de tempo. Do tempo de cada pessoa, animal, planta e árvore que por ali nasceu, cresceu e morreu.

Mas e o que acontece quando a evocação não é real? Quando aquilo que se materializa ali à nossa frente não existe, nunca existiu em mais lado nenhum a não ser na nossa cabeça e num documento word gravado num disco rígido de um computador?

Num passeio de fim de semana, regressei a um local onde já não ia há anos, mas que revisito com frequência, não fisicamente, mas através de palavras escritas, de uma história inventada que se desenrola naquele lugar real.

Centenas de pessoas enchiam o espaço, num evento automobilístico, mas para cada lado que olhava, apenas as via, às minhas personagens. Fantasmas que faziam desaparecer tudo o resto.

Os dois homens sentados nos degraus exteriores do museu a lerem uma carta, de dedos trémulos, pela emoção daquilo que liam e pela presença um do outro. Só os dois, na escadaria larga, diluindo todas as presenças do agora numa névoa.

museu.jpg

Museu do Caramulo

E entre conversas cruzadas dos visitantes, roncos exibicionistas de ferraris, a voz do speaker do evento a invadir tudo através dos altifalantes, ainda assim as conseguia ouvir, às minhas personagens.

Salvador a traduzir para inglês um carta para o outro, ali a seu lado, a entender. E entre palavras que não eram as dele, pois aquela carta não era de nenhum dos dois, a sua cadência, a sua entoação vertia para Alexander tudo o que lhe ia na alma, o medo, a ansiedade, o estrondo da paixão, a emoção da novidade de alguém o desejar, de o proteger.

Quando me dirigi para a zona das partidas da corrida automobilística, onde cada carro com arranques espalhafatosos tentava fazer mais barulho do que o anterior, porque barulho era excitação, era exaltação, era uma plateia ao rubro, vi o hotel à minha frente, no outro lado da estrada, na sua graça de edifício antigo.

Pressenti a presença das minhas personagens atrás das cortinas de uma das janelas, presenças eufóricas pela descoberta do amor. E os seus murmúrios lânguidos, os seus beijos sôfregos, os seus suspiros excitados abafavam os grunhidos toscos dos motores, na antecipação do arranque e subida da rampa.

Quando depois apareceu o avião para fazer acrobacias aéreas, voos em parafuso, voos invertidos, voos a baixa altitude, a sua passagem a riscar o céu azul, senti-me colapsar pelo medo da «minha» Alexandra.

Quando ela viu os aviões de combate em aproximação ao edifício devoluto, o antigo sanatório na serra, local onde ela julgava que o irmão estava escondido, o desespero dominou-a. Sentia-se desesperada e impotente: ela, uma adolescente, seria incapaz de travar o que aquelas máquinas de guerra tinham vindo ali fazer: destruir, reduzir a escombros um edifício e os que lá estivessem dentro.  

O avião de acrobacias sobrevoava o museu, o hotel, a serra, a baixa altitude e em mim, no meu peito, ribombavam os batimentos cardíacos aflitos da minha personagem. Os medos dela, as suas desilusões, foram, por momentos, os meus também. Em mim, tal como a ela, nada resta. Uma vida em escombros, uma vida onde se empilham corpos e perdas.

E ali estava eu num espaço que me fez evocar momentos, emoções, sentimentos, palavras de pessoas que não existem. E como é que é possível que algo que não é, se faça pressentir de forma tão forte, tão intensa?! Como é que algo que nunca aconteceu pode rasgar espaço e tempo, pode estrebuchar na memória, pode fazer doer?

Passaram anos, um livro guardado numa gaveta, numa cloud, como um génio numa lâmpada, mas as suas personagens vivem, como fantasmas numa casa assombrada, numa repetição contínua de uma história, numa luta para se escaparem de uma dimensão que é a delas, mas que aos seus olhos e aos meus, não lhes chega.

Quanto a mim, aquela que as criou, talvez precise de um exorcismo destas personagens, de lhes fechar o portal, de as deixar morrer na dimensão a que pertencem.

Esquecê-las e avançar.    

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