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Quimeras e Utopias

Quimeras e Utopias

Sonhos estranhos

É raro recordar, ao acordar, os sonhos que tive durante o sono. Num ano, chegarão à claridade do dia apenas duas ou três lembranças das minhas andanças oníricas. As exceções que permanecem em memória costumam estar ligadas a situações extremas, terríficas, que continuam a ecoar mesmo depois do despertar. Um dos sonhos que mais me marcou foi o de perder o meu filho num passeio normal de sábado de manhã pelo centro da minha vila. Um outro que também sobreviveu ao acordar foi o da fuga aterradora num cenário de guerra, em que o medo de ser capturada, o medo da tortura e da morte continuaram a latejar em mim horas depois de acordar sobressaltada.

 

Em suma, a banalidade ou até mesmo a excentricidade, se não estiver associada ao medo, ao terror, não tem o poder de sobreviver fora do sono, não consegue permanecer para memória futura.

 

Mas mesmo dentro da exceção da memória, há exceções da categoria que se recorda e hoje acordei «enfiada» dentro de um sonho que nada tinha de terrífico, era apenas de uma trivialidade estranha.

 

Estava num comboio, sentada ao lado do escritor João Ricardo Pedro e conversávamos. Não sei qual a razão do meu cérebro sonhador ter escolhido este escritor e não outro. Não comprei o último livro dele, não li qualquer entrevista dele ou artigo sobre o seu último livro, a leitura do seu primeiro livro já tem anos, por isso esta escolha de co-protagonista onírico não tem uma explicação lógica.

 

A dada altura, ele pede-me o telemóvel para poder aceder à internet e consultar os emails. Emprestei-lho, embora agora, acordada, me pergunte qual a razão do moço não ter um telemóvel próprio e ter de cravar um aparelho a uma pessoa que mal conhece. Explicou que aguardava um email da editora sobre um projeto. E aí, nas suas mãos, aparece uma catrefada de papelada que prontamente decide mostrar-me. Texto e várias fotografias de carros de rally e de Formula 1. Tentei demonstrar um genuíno interesse, embora o desporto automóvel não seja bem a minha praia, mas não pretendia ferir os sentimentos do meu entusiasmado interlocutor.

 

No entanto, todo aquele interesse pela exposição do seu manuscrito rapidamente desvaneceu quando João vislumbrou, num acento mais atrás, alguém conhecido. Levantou-se sem explicações e foi sentar-se junto a uma mulher. Estava eu ainda um pouco confusa com aquele abandono súbito, quando uma outra mulher se senta junto a mim, uma mulher loura bem bonita, cheia de secretismos, que me deu a entender que João escondia algo, estava metido em alguma alhada. Aqui, quando o enredo parecia adensar-se e aquela viagem de comboio tinha potencial para se transformar numa aventura policial onde teria honras de protagonista, fui acordada pelo meu marido. Eram horas de me levantar para a rotina de um novo dia.

 

A primeira coisa que me veio à cabeça, ao despertar, foi que João Ricardo Pedro não tinha chegado a devolver-me o telemóvel antes de me trocar por uma outra companheira de viagem. Só depois deste pensamento é que emergiu a estranheza da escolha aleatória dos personagens daquele sonho.

 

Depois da experiência onírica desta noite, aviso-vos: nunca emprestem um telemóvel a João Ricardo Pedro num dos vossos sonhos. Ele fica-vos com ele. E tentem sonhar o sonho completo antes de ser horas de saltar da cama. Isto de ficar com o sonho pelo meio, quando aquele será um dos poucos espécimes recordados nesse ano, é uma grande chatice.  

 

João Ricardo Pedro.jpg

Fotografia de João Ricardo Pedro retirada do site www. wook.pt

Postal de Detroit é o mais recente livro do autor

 

2 comentários

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    Sónia Pereira 10.05.2016

    Fernando, por mais que nos cortem, esfrangalhem a vontade de viver, a capacidade de sonhar acordado deve persistir. Para mim, essa fuga de olhos abertos é essencial. Vivo vidas alternativas, complexas e há dias em que pareço respirar só para isso, para essa realidade que não é real, mas que na minha cabeça se materializa. E não há ninguém que me possa tirar isso. Só a morte o fará.
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