Se não gostarem de mim, como eu gostarei?
Ainda no rescaldo da vitória de Portugal no Festival da Eurovisão da canção e de toda a comoção que se lhe seguiu (e que persistirá por mais alguns dias, certamente), dei por mim a tentar racionalizar esta euforia, a tentar desconstruir e perceber esta alegria generalizada.
No fundo, pressinto que nada disto teve a ver com música e esta minha observação não tem como finalidade desprestigiar ou menorizar a qualidade da música vencedora (como já referi noutro post, gosto da música, gosto do intérprete). Observando de perto, à lupa, aquela vitória foi como o recuperar de uma humilhação. Décadas a ver os «12 points» a passarem e a nunca cair no «nosso cesto», a derrota, os últimos lugares a surgirem como inevitabilidade. Aprendemos a desprezar o evento em questão. A fraca qualidade, a transformação de um espetáculo musical num espetáculo carnavalesco, ajudaram a esse desprezo, mas ainda residia aquela frustração recalcada, aquela moinha que roía lá dentro, coisa típica de quem é votado persistentemente ao desprezo.
Como li num mural de um amigo facebookiano, o nosso percurso neste festival assemelhou-se a um daqueles filmes em que o protagonista passa a história a levar porrada, levantando-se, sendo derrubado, persistindo num treino incansável até chegarmos ao clímax do filme, onde o nosso herói derrota quem o humilhou com um enxerto de porrada épico. Não nos limitámos a ganhar depois de cinco décadas de desprezo, fizemo-lo de forma épica.
Tomando-me como cobaia nesta minha pseudoanálise antropológica, apesar de considerar o festival uma espécie de carro alegórico do espetáculo televisivo, uma futilidade básica na área musical, ver os 12 pontos serem-nos atribuídos pelos júris de vários países e pelo voto popular, ver a bandeira nacional destacada num primeiro lugar (e atenção, tenho-me como a perfeita antítese do pensamento nacionalista, patriótico), ver aquilo foi estranhamente especial, uma espécie de catarse. Foi o enxerto de porrada épico, foi o aplacação do despeito, de uma certa frustração. Como se uma qualquer justiça «kármica» tivesse sido reposta, porque, no fundo, há sempre alguma metafísica metida ao barulho, mesmo na vivência do ser mais racional. A partir de agora será possível remeter o evento para a insignificância que lhe é devida, a partir de agora é possível ignorar porque a frustração já lá não está.
Observando agora o fenómeno de um ponto de vista mais alargado, voando e olhando de cima, a euforia generalizada por esta vitória musical vem juntar-se a um grupo de recentes fenómenos positivos: vitória num campeonato de futebol europeu, distinções várias na área do turismo, um aumento inequívoco de turistas no nosso país. E a isto juntam-se mais outras pequenas vitórias, distinções em diferentes áreas, etc.
Num país onde o culto do coitadinho, do desgraçadinho, da vítima, da humildade em jeito de submissão sempre foi coisa muito nossa, característica intrínseca, sempre tivemos uma óbvia necessidade de validação, aprovação externa. Somos todos uns zés-ninguéns até alguém de fora nos demonstrar o contrário.
A máxima: «se eu não gostar de mim, quem gostará?» nunca funcionou para nós. Acho que somos mais do género: «se ninguém gostar de mim, como eu poderei gostar?»
Como é que esta síndrome de inferioridade começou, não faço ideia, qual o seu combustível, as suas motivações, não saberei dizer, mas acho que por estes tempos descobrimos a pólvora. O nosso triste fado já não nos embala como dantes, já não queremos adormecer ao som das nossas lamúrias. Descobrimos uma nova banda sonora.
Assim, parece-me que esta euforia coletiva advém da recente descoberta do sabor doce da felicidade, do reconhecimento exterior pela luta, pelo esforço. Há uma certa estranheza nesta mudança de vítima para herói, há excessos próprios de quem prova e gosta do elixir da vitória. Toda a mudança de paradigma tem alguma convulsão envolvida, é inevitável.
Por isso, este assombro, esta quase loucura por Salvador Sobral, pela vitória num mero festival musical marginal, é, acima de tudo, simbólica, muito pouco objetiva. Uma necessidade básica de reconhecimento misturada com a euforia da descoberta do sabor doce da vitória.
Não é o Salvador, somos nós.
Momento da vitória da canção portuguesa no Festival da Eurovisão de 2017 (fotografia retirada daqui).