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Quimeras e Utopias

Quimeras e Utopias

Protege-me daquilo que eu quero

Quanto tempo é muito tempo? Quanto tempo é tempo demais? E poderá o tempo ter um tal efeito corruptor que a sua passagem nos deixe danificados para sempre?

Ainda adolescente acho que já tinha a noção, embora de forma inconsciente, como uma presença que se movia sub-repticiamente ao meu redor, de que me deveria proteger daquilo que queria, porque aquilo que eu queria não era para mim, não era coisa que eu devesse querer.

Na tentativa de iludir esse meu querer, escolhi caminhos, estradas e becos de vida que, como se costuma dizer, não lembram ao menino Jesus. Se é possível alguém fazer tudo errado num percurso de vida, é bem capaz de o ser. Eu pelo menos tentei.

Escrevi o meu primeiro romance a meio da minha década de vinte. Um calhamaço histórico, escrito numa fúria desenfreada, sem filtro e cada dia em que me sentava para escrever no computador, era como entrar em transe, mergulhar num universo que me absorvia, me puxava pelos pés, não me deixava escapar. Não o fazia em segredo, mas não era algo que gostasse de me gabar. Fazia-o porque precisava, porque me sentia impelida a fazê-lo. Uma espécie de urgência aliada à necessidade de escapismo.

E no precisar parece que não há arte. 

Mas há algo de perverso na escrita, na criação de mundos, de universos paralelos. Quando se tem de regressar ao mundo do Aqui e do Agora, instala-se uma solidão medonha e dessa solidão nasce uma vontade mesquinha de encontrar alguém que seja como nós, que veja o mundo como nós, que use os mesmos óculos de ver a realidade, uns óculos iguais aos nossos. E quanto mais escrevemos mais nos afastamos do real, mais as personagens encerradas dentro do disco rígido do nosso computador deixam de ser letras numa página branca, ganham formas e reclamam do nosso abandono quando pomos fim à vida que lhes criámos.

Tentei de todas as formas que conhecia na altura (e também agora) dar-lhes uma oportunidade de vida e, certamente, também curar o meu ego ferido por um querer que não me era devido. Dos muitos envios a editoras ao longo de duas décadas, os dedos de uma mão chegarão para contar as respostas obtidas. Entre os Nãos simpáticos e o silêncio, eu sabia o que deveria fazer.

Parar.

Meses passados de um doloroso luto ─ que não é apenas luto, mas crime também, pois não tive eu de matar personagens, incendiar e terraplanar mundos, votá-los todos ao esquecimento, ao abandono ─ tento ser uma pessoa normal, brincar às pessoas normais. Ter um trabalho normal, gostar de coisas normais, conversar sobre assuntos normais. Mas há algo na minha natureza profundamente anormal.

Volto ao mesmo. Caio, esmurro-me toda, levanto-me, sacudo-me e, raios me partam, volto a cair meia dúzia de metros depois. É um estado de dissonância cognitiva permanente, em que de estado transitório, habito o Estado Nação da Dissonância.

Mesmo quando não escrevo, seja sentada a um computador ou num caderno de rascunho, aquilo germina, ganha formas, voz e corpo, arquitetura e cheiro, sons distintos. Estou a conduzir, estou nas aulas, estou no trabalho, estou no supermercado, estou a ver uma parvoíce qualquer no telemóvel, e uma frase sai de uma boca, um medo obscuro revela-se num deles, um prédio monta-se, como um lego, numa paisagem urbana, uma comida feita com amor é levada à boca por alguém sem fome no seu desalento. Estas histórias crescem ao meu redor como ervas daninhas num inverno chuvoso, agarram-se-me às pernas, como uma hera e em menos de nada cobrem-me o corpo, a mente, não deixando qualquer nesga de mim a salvo.

Ao fim de três romances escritos, de duas décadas passadas, percebo que o impacto que a escrita e a solidão que lhe vem associada, o distanciamento criado pelos universos em que me levo a habitar, as dores de cada uma daquelas pessoas que, não sendo pessoas reais, vivem estranhamente comigo, me estão a causar um dano tal que, por esta altura, me parece um dano irreversível.

Em mim vivem pessoas, morrem pessoas, edificam-se edifício, bombardeiam-se outros, experienciam-se amores colossais, vivem-se amores ingénuos e banais, têm-se dúvidas atrozes, medos mesquinhos e medos dilacerantes, cantam-se músicas, dança-se e chora-se, desenterram-se memórias, criam-se novas e…

não sei se,

             sozinha,

consigo lidar com tudo isto.   

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