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Quimeras e Utopias

Quimeras e Utopias

Olhando o sofrimento dos outros

Susan Sontag morreu em 2004, um ano depois da escrita deste ensaio que teve edição portuguesa pela Quetzal em 2015. Mais do que a leitura desta obra, foi a reflexão sequente que me alvoroçou, numa perturbação que perdura passados dias de já ter largado aquelas páginas.

Neste ensaio, Susan Sontag fala das imagens de guerra. Começa uma análise que vai desde os primórdios da fotografia de guerra até à actualidade, referindo como exemplos da realidade recente a guerra nos Balcãs ou os conflitos israelo-palestinianos. A forma como evoluiu ao longo dos tempos a abordagem a estas imagens, por parte de quem as capta e de quem as observa como um produto final com propósitos supostamente informativos, retracta a evolução da própria sociedade ao longo do século XX e início do século XXI.

A imagem está de tal forma entranhada na nossa sociedade, que se lhe tornou um elemento intrínseco ao qual já não prestamos muito atenção ou pelo menos, não de uma forma efectiva, que perdure nos dias.

Por um lado, demonstramos grande indiferença perante as imagens de guerra, elas tornaram-se um produto dos telejornais e jornais, uma banalidade do dia-a-dia. Mas, num paradoxo, parecemos quase necessitar delas e, atrevo-me a dizer, quase sentir uma espécie de prazer perverso com elas (algo idêntico ao que nos faz abrandar perante um acidente aparatoso numa estrada, como refere Susan Sontag no livro). Talvez a miséria alheia seja sinónimo de que não temos uma vida assim tão miserável, uma espécie de acréscimo positivo à nossa existência, quando esta não parece coisa de grande valor.

A caça a imagens mais dramáticas (como frequentemente são descritas) comanda a empresa fotográfica e faz parte da normalidade de uma cultura, na qual o choque se tornou o principal estímulo ao consumo e uma fonte de valor.  — página 29

Nos termos de uma análise altamente influente, vivemos numa «sociedade do espectáculo». Cada situação tem de se transformar em espectáculo para ser real — quer dizer, interessante — para nós. As próprias pessoas aspiram a transformar-se em imagens: celebridades. A realidade abdicou. Apenas há representações: media. — página 105

No fundo, talvez ao observar uma imagem destas não consigamos, tal como o pretendido pelo fotógrafo, captar a realidade inimaginável daqueles horrores, da vida miserável daquelas pessoas. Talvez a imagem fotográfica seja algo diverso, um instantâneo de um momento que pretende criar uma consciencialização de uma situação, mas nunca transportar quem a vê até lá, mesmo que o momento captado seja o momento de uma morte, o momento exacto da perda de uma vida. E talvez, perante uma sucessão diária de imagens, de um bombardeamento contínuo directo aos nossos olhos e cérebro pensante e emocional, apenas exista espaço para o extremo — uma selectividade do verdadeiramente atroz.

A sociedade ocidental parece, também, mais orientada para a recepção de imagens de determinada proveniência. África, Ásia, são locais longínquos onde nos é mais difícil uma identificação com a realidade e as vítimas retractadas. Igualmente, o tipo de sofrimento que pretendemos ver, enquanto «consumidores» destes produtos informativos, não poderá ser qualquer um. — O sofrimento mais vezes reconhecido como digno de representação é aquele que se considera fruto da ira, divina ou humana. — página 45

O início desta leitura coincidiu com o aparecimento de uma imagem que colocou um maior grau de pressão na minha análise interior, embalada pela análise de Susan Sontag, sobre o poder, ou falta dele, das imagens de guerra.

A imagem de Aylan Kurdi. Uma criança afogada, despejada pelo mar numa praia. Uma criança morta numa terra que não chegou a conhecer. Não era uma imagem num palco de guerra, mas é uma imagem com uma guerra implícita.

Seriam poucos os dias em que, no mediterrâneo, não se viam corpos mortos a boiar nas águas, corpos estirados sobre as praias, num final inglório de uma busca por uma vida melhor. Tinham passado meses, muitos meses, sobre as primeiras vagas de refugiados, sobre o início da emergência de uma acção conveniente por parte das autoridades europeias para uma situação há muito descontrolada. No entanto, o que acontecia por certas praias gregas, italianas ou turcas não fazia eco na realidade do dia-a-dia da grande maioria dos europeus. Enquanto a vida particular de cada um de nós continua imperturbável, não há mal que venha ao mundo. Mas aquela fotografia… aquela fotografia acabou com a imperturbabilidade. E embora eu consiga perceber o porquê, a razão por detrás do poder daquela imagem, também a mim me afecta. E o poder da imagem é tal, que por mais vezes que ela me apareça pela frente, o baque que sinto dentro do peito é exactamente o mesmo, com a mesma intensidade, tal e qual como da primeira vez.

Esta imagem específica reserva em si quase a totalidade do debate, das dúvidas, da ambiguidade de sentimentos e comportamentos humanos, analisados por Susan Sontag no livro Olhando o Sofrimento dos Outros. O mundo continuou ignorante, apesar das imagens de corpos alinhados nas praias, mas um corpo de uma criança, sozinho, em determinada postura, numa praia deserta, teve um impacto tremendo na maneira como passámos a observar aquela vaga de refugiados, a guerra da qual a maioria fugia, os tormentos pelos quais passavam até à chegada ao continente europeu. Aquele menino tinha nome, uma família, uma história e com ele, veio a consciência de que aquelas pessoas não eram números, eram seres humanos como nós. Víamos naquela criança a projecção dos nossos próprios filhos, da possibilidade e isso chocou-nos.

Ignorámos corpos adultos, ignorámos até corpos de crianças, mas fotografados com uma diferente mise en scène. Numa sociedade iconoclasta, precisávamos de uma imagem icónica e com Aylan deitado na praia essa imagem chegou. E mesmo que a imagem não tenha sido fruto de uma disparo fotográfico impulsivo de um fotógrafo impressionado, mas sim fruto de um arranjo, de uma escolha calculada de ângulos, etc., ela cumpriu o efeito para o qual todas as imagens de guerra estão à partida desenhadas — informar, consciencializar, criar uma lembrança futura, com raízes nas lembranças passadas e despoletar uma qualquer acção por parte de quem observa.

É-nos impossível imaginar as provações reais da viagem de barco que levaram à morte de Aylan, é impossível imaginarmos os extremos a que uma vida pode chegar — a constância da guerra, bombardeamentos diários, casas em ruínas, as privações de campos de refugiados sobrelotados — para que uma viagem que envolve perigos extremos possa ser considerada uma opção viável. Não podemos imaginar nada disso, talvez apenas pressentir e de forma enviesada, pois os nossos pontos de referência são ou ficcionais (filmes, séries, jogos) ou apenas fragmentos visuais, instantâneos de um segundo da vida de alguém, que nos chegam de longe, fora do nosso contexto diário.

A história da fotografia de guerra tem várias imagens icónicas que mesmo o mais desinteressado pelo tema reconhece. A imagem da Menina de Napalm, correndo despida, num grito de desespero que rompe a imagem e chega até nós, ilustra de forma inesquecível a guerra do Vietnam e é reconhecida internacionalmente, transversalmente por todos. Creio que a imagem de Aylan tem em si o mesmo destino. O destino de uma imagem icónica que perdurará no tempo.

«Nós» — este «nós» são todos aqueles que nunca viveram nada de semelhante àquilo porque eles passaram — não compreendemos. Não entendemos. Não podemos realmente imaginar como foi. Não podemos imaginar como a guerra é terrível, como é aterradora; e como se torna normal. Não podemos compreender, não podemos imaginar. É o que sente obsessivamente cada soldado, cada jornalista, cada voluntário de organizações humanitárias, cada observador independente que já alguma vez esteve debaixo de fogo e teve a sorte de iludir a morte que se abateu sobre outros ao lado dele. E têm razão. — página 120 e 121  

 

Olhando o Sofrimento dos Outros, Susan Sontag — Quetzal Editores

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