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Quimeras e Utopias

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O Evangelho Segundo Lázaro (Richard Zimler) — «Respondi-te no lugar onde se esconde o trovão».

Para se fazer uma crítica, para se avaliar o trabalho de alguém, será sempre necessário um olhar objetivo, despido de preconceito, focado na essência e não na circunstância. Não posso dizer que tenha capacidade para fazer uma crítica objetiva seja do que for. O meu julgamento está constantemente toldado pela emoção, contaminado pela subjetividade do meu olhar (a minha experiência de vida, aquilo que sou, faz-me fruir as coisas de maneira diversa de qualquer outra pessoa). O meu olhar não é despido, imparcial, ele é a soma de todas as partes e aquilo que nasce, evoluiu à minha frente sob o desígnio de uma determinada leitura, é necessariamente único, só eu o posso ver, sentir, resguardar-me sob a égide da sua força, sofrer os seus tumultos.

 

Por isso, se quero falar sobre o último livro de Richard Zimler, o que aqui vos escreverei não será uma crítica. Deixo-vos o Evangelho Segundo Lázaro, segundo Sónia Pereira.

 

As religiões, para mim, sempre se encerraram numa espécie de câmara de fascínios e horrores. Desde cedo me autoproclamei imune ao toque religioso, mas uma infância totalmente evangelizada, uma meia vida vivida sob a presença constante do catolicismo teve, inequivocamente, efeitos sobre mim. Sinto repulsa pela religião, mas uma tremenda atração pela crença. Daí, quando percebi que a última obra de Richard teria como personagens centrais Lázaro (Eliezer) e Jesus (Yeshua), a vontade de ter aquele livro na mão ganhou um contorno quase místico. A antevisão do que ali estaria, de até onde Richard conseguiria levar aqueles personagens e, consequentemente, levar-me a mim, puxava-me para aquelas páginas com uma força algo sobrenatural.

 

O narrador é Lázaro e aquilo que temos pela frente é o testemunho que este vai desfiando, página após página, ao seu neto Yaphiel. Fala da sua ressurreição, um retorno da terra dos mortos promovido por Jesus, dos efeitos perversos do seu regresso à vida, das dúvidas que aquele retorno despoletou, da forte união que tinha com Jesus, que começou ainda eram os dois crianças, na perseguição e morte do amigo, no desespero da perda, na impotência implícita, mas no laço (imaginado, real?) que se manteve além-vida e na reflexão de como, cada segundo, cada milímetro da vida dos dois, Lázaro e Jesus, poderá ter-se desenrolado para alcançar um determinado fim. Nada aconteceu em vão, nenhum sussurro foi um desperdício, nenhuma dor caiu no vazio.

 

Como ponto inicial, refiro a grandeza da contextualização história. Não raras vezes, sou confrontada com romances históricos que o são de forma medíocre. Não basta referir que a história se passa em tal sítio e em tal data para o autor conseguir transportar os leitores até àqueles tempos idos. Um romance histórico exige uma enorme investigação, uma total contextualização à época, aos personagens, da mensagem que o escritor pretende passar. Este romance de Zimler é magistral nesse sector. Para além de nos trazer dois personagens que necessariamente serão familiares a quase toda a gente, esses personagens estão magnificamente envolvidos numa época, com linguagem própria, com lendas próprias, com maneiras muito específicas de se viver e ver o mundo em redor. E Zimler teve o condão de trazer aqueles cheiros, aqueles sons, aquele rebuliço de uma época, de uma região, e encerrá-los dentro das páginas deste livro.

 

Conseguiu ainda erigir uma obra que facilmente poderia decair numa visão alternativa sobre textos sagrados existentes, um novo evangelho entre outros, um olhar sobre a vida de Jesus do ponto de vista de Lázaro, transmutando-a numa história que vai muito além da religião, da crença, da existência daquele ser humano especial que terá sido Yeshua. Na minha frente, cresceu um louvor a uma amizade extrema, a uma união entre dois seres humanos que ultrapassa a união física (embora também o seja), para ser uma união metafísica, espiritual, uma missão de vida (e para além da vida) conjunta, una.

 

Refiro ainda algo que é transversal a todos os romances do autor — a capacidade de transmitir o aconchego físico, o toque. Em mim reside um conflito interno sobre o toque humano. Quero-o, mas, paradoxalmente, tenho uma certa reserva em o aceitar. Talvez por isso, desde sempre percebi, com um certo fascínio, a relação do autor com a transmissão do aconchego físico, da afeição traduzida em gestos, sem reservas. Seres que não se inibem de se tocarem, de exprimirem afeto pelo toque, sejam homens, mulheres, crianças e até animais. O calor dessa afeição transmitida transpira por entre letras e páginas e chega até mim, leitora. E é reconfortante, de uma forma primária, mas superiorizada.

 

Numa crítica no jornal Público, Helena Vasconcelos considerava esta obra de Zimler o seu romance mais completo e magistral. E realmente é-o. Sou leitora de Zimler há anos, mas ler este livro foi como a subida a uma torre mágica, altaneira, de onde se consegue vislumbrar até aos confins da terra. E se vos digo que escrevo estas linhas num certo estado de exaltação, embalada numa mística que só os melhores autores conseguem criar, não vos estou a mentir. Ainda lá estou, em Betânia, em Jerusalém,  a ouvi-los, a pressentir a grandeza encerrada em cada palavra e gesto.

 

«Pede e o teu desejo será concedido. Procura e encontrarás. Bate à porta e ela abrir-se-á para ti.» Yeshua bem Yosef

(página 15 )

 

Respondi-te no lugar onde se esconde o trovão. (página 436)

 

evangelho segundo lázaro.jpg

Evangelho segundo Lázaro, Richard Zimler, Porto Editora

 

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