O crânio da gruta da Aroeira — murmúrios ancestrais
Decorria o ano de 2014 quando uma equipa do Centro de Arqueologia da Universidade de Lisboa descobriu um crânio numa gruta da Aroeira onde estavam a trabalhar. Uma ferramenta que escavava a rocha perfurou o que, surpreendentemente, se descobriria ser o mais antigo fóssil humano encontrado na Península Ibérica e um dos mais antigos encontrados no continente europeu. Fossilizado num bloco de pedra, foram precisos dois anos até ser possível completar a extração do crânio. Com a datação feita, com a análise dos vários utensílios e restos fossilizados de animais que ali se encontravam, estima-se assim que o achado tenha entre 395.000 a 430.000 anos. Esta descoberta arqueológica vem, assim, acrescentar mais uma peça ao puzzle que é a evolução humana e a evolução dos vários hominídeos ao longo da história. Mas este puzzle evolutivo, com cada nova descoberta, não ganha clareza, antes expande-se, ganha complexidade e traz novas questões.
A forma simplista como se classificava os achados arqueológicos, associando determinadas características morfológicas a restos humanos com determinada datação, atribuindo-lhes uma espécie, tem vindo a cair por terra a cada nova descoberta. No crânio humano da gruta da Aroeira é possível encontrar características morfológicas que estão ligadas aos neandertais arcaicos, mas também a outros achados fósseis classificados de diferente maneira e ainda características completamente novas, exclusivas deste fóssil humano.
Crânio humano encontrado na gruta da Aroeira.
É de referir que esta descoberta surpreendente não foi a primeira descoberta impactante liderada pelo arqueólogo João Zilhão. Em 1998, foi descoberto no vale do Lapedo, perto de Leiria, o esqueleto de uma criança com cerca de quatro anos que viveu naquele local há 25.000 anos. Também esta descoberta deixou o mundo da arqueologia em polvorosa devido às características morfológicas únicas daquele achado. Havia traços morfológicos homo sapiens, mas também traços característicos neandertais, levantando a questão de uma possível miscigenação entre as duas espécies. Esta questão, descartada até à época, é atualmente aceite e comprovável. Embora, na altura, tenha levado a acesos debates académicos e tenha feito correr muita tinta em publicações científicas. Sobre este tema, aconselho o livro «Lapedo — uma criança no vale» do falecido escritor João Aguiar. É um olhar exterior ao mundo académico da arqueologia (João Aguiar era escritor e jornalista), acessível a curiosos sem formação na área.
Lapedo, uma criança no vale, de João Aguiar, Edições ASA, uma obra de bastante interesse sobre as descobertas no vale do Lapedo em 1998.
Para mim, uma completa leiga na matéria, mas alguém movida pela curiosidade, estes achados arqueológicos revestem-se de grande interesse. Não me interessa particularmente saber se nós, homo sapiens, temos herança genética deste ou daquele hominídeo, mas é um pouco como se procurasse no passado remoto a génese do nosso comportamento atual. O que terá feito de nós, homo sapiens modernos, a espécie triunfante sobre outras espécies humanas, quais as razões que alavancaram o nosso sucesso e o porquê do aniquilamento, em vários locais distintos do globo, das outras espécies humanas (como por exemplos os neandertais na Europa)? A resposta a todas estas questões são o início da nossa caracterização enquanto humanos, porque inevitavelmente seremos hoje um eco nítido dos nossos ancestrais, um produto da nossa evolução.
Em outubro deste ano teremos em exposição no Museu Nacional de Arqueologia esta descoberta da gruta da Aroeira, assim como também a criança do Lapedo. Será uma exposição a não perder. Deixo ainda aqui o link dos artigos do jornal Público e do site da Universidade de Lisboa, que fornecem mais detalhes sobre a surpreendente descoberta da gruta da Aroeira.