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Quimeras e Utopias

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O bebé melro, um hóspede inesperado

Há uns dois anos atrás tivemos cá em casa um hóspede inesperado que ainda hoje recordo com grande carinho. Um pequeno bebé melro, sozinho, desprotegido. Talvez filho de uma mãe melro atropelada que descansava morta no passeio junto à minha casa, que o meu marido se sentiu impelido a enterrar na horta.

 

Esta ida à horta, este cortejo fúnebre privado permitiu intercetar os pios desesperados do bebé minúsculo. Aquele piar ainda conseguiu criar um certo desnorteamento no meu marido que, por momentos julgou que aquele animal morto que carregava tinha regressado à vida com aquele piar desconcertante. Mas procurando entre as ervas, guiado pelo som agudo, acabou por encontrar aquele pequeno pássaro. Depois de uma prospeção pelas laranjeiras da horta, não encontrou qualquer ninho de onde pudesse ter caído ou outro irmão que o tivesse acompanhado na fuga. Ficámos com ele.

 

Dei-lhe de comer e beber ao bico. Era um perfeito bebé que me acordava às 6 e pouco da manhã a piar com fome. Quando me via, escancarava o bico a exigir comida, a exigir que a sua mãe humana o atendesse nas suas necessidades.

 

Mas eis o dilema. Esta intervenção humana, esta alimentação comprada na loja, impediria aquele ser de se desenvencilhar sozinho quando, sabendo voar, o soltássemos? Algumas pessoas garantiam que sim, outras que não. Ele foi crescendo e o seu desespero por estar encerrado dentro de uma gaiola era evidente. Já voava, fazendo alguns voos curtos dentro de casa. Também o «obriguei» a começar a comer sozinho. Num mês, passara de um bebé quase sem penas, dependente, a um pássaro castanho e lustroso, que comia sozinho, esvoaçava pela casa ou saltaricava em brincadeiras curiosas.

 

Apetecia-me abrir-lhe a gaiola ou a janela de casa e deixá-lo ir. Mas seria a liberdade sinónima de morte anunciada? Não faltavam histórias de pessoas que fizeram o mesmo, deram liberdade a um pássaro que criaram, para logo o encontrarem morto passados poucos dias (à fome ou às garras de um gato caçador). Era a incerta a capacidade destes bebés criados por humanos conseguirem escapar a predadores e de se alimentarem sem ajuda.

 

Algumas pessoas conhecidas sugeriam que ficássemos com ele, numa gaiola maior, embora fosse proibido manter um pássaro daquela espécie em casa. Mas o seu cativeiro dava-me uma tristeza insuportável. Privar um ser daquilo que era a sua mais marcante característica, voar, começava a ser demais para mim.

 

Depois de alguns contactos (ICNF), consegui perceber que ele poderia ser reabilitado num centro próprio e devolvido à natureza de forma mais segura (Parque biológico de Gaia). Passaria um mês com animais da mesma espécie, num aviário de maiores dimensões, desenvolvendo as suas capacidades de voo e de alimentação. Quando voltei a contactar o parque com o número de registo, informaram-me que já o tinham soltado no parque biológico.

 

Despedir-me do meu melrinho foi uma mistura de sensações. Aquele pequeno pássaro tinha sido criado por mim nos seus primeiros dias de vida e senti-me triste por o deixar ir, mas, paradoxalmente, experimentei uma enorme felicidade por lhe poder dar a oportunidade de ser livre, independente. A oportunidade de pode ser pássaro.

 

 

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