Memórias históricas reprimidas — o massacre dos judeus em Lisboa em 1506
511 anos separam o dia de uma matança brutal na capital portuguesa, uma nódoa histórica difícil de enxaguar, do dia de hoje. Uma enormidade de tempo, mas, paradoxalmente, não o tempo suficiente para que as gerações que devieram aprendessem a não alimentar o ódio com os seus medos.
A seca, a fome e, não bastando, a praga da peste, assolavam Portugal em 1506. Alguns anos antes dessa data, entraram no país, expulsos de Espanha, dezenas de milhares de judeus, ao abrigo da tolerância do monarca português para com a comunidade judaica. A pressão exercida pelos nuestros hermanos levou, no entanto, a que os recém-chegados fossem obrigados posteriormente a converter-se ao cristianismo. Seria isso o suficiente para que a comunidade local os olhasse de igual para igual?
No convento de S. Domingos em Lisboa, no dia 19 de abril de 1506, rezava-se pelo fim dos tormentos que assolavam o país, rezava-se pelo fim da peste, pela chegada da abundância que matasse a fome. Um reflexo, uma alucinação momentânea, um qualquer efeito luminoso, levou alguém a exclamar ter visto o rosto de Cristo iluminado no altar. Um sinal divino de misericórdia, um milagre, portanto. No meio de uma atmosfera de devoção alguém ousou, na sua inocência, questionar aquele assombro luminoso. Um cristão novo tentou explicar que aquele suposto milagre nada mais seria do que um reflexo promovido por uma das fontes de luz no local. E naquele momento, naquele local, iniciou-se um dos episódios mais negros da nossa história. Aquele que ousou questionar foi espancado ali mesmo até à morte e, aquela multidão enraivecida, movida pelo ódio, contagiou toda a cidade que, nos dias seguintes, perseguiu, torturou, espancou, matou milhares de judeus, estando o número total de mortos estimado, por alguns historiadores, em 4000.
A ausência do rei, que teria ido a Beja visitar a mãe, a incitação dos dominicanos, que viam nos judeus o bode expiatório perfeito para a causa da fome e da peste, as suas promessas de absolvição dos pecados para aqueles que matassem os hereges, o ódio recalcada da própria população que via nos judeus, aqueles que não pertenciam, que eram exteriores ao grupo, a causa da desgraça que assolava as suas vidas, todos estes grandes pormenores serviram de acendalha à histeria assassina dos três dias de matança. Perseguições, espancamentos, fogueiras improvisadas no Rossio, onde pessoas foram queimadas à moda da inquisição (que ainda estava para vir), todo um cenário dantesco impossível de ser detido pelas autoridades locais, que só acabou quando a fúria chegou ao ponto de saciedade.
Olhando para a atualidade, sente-se este estranho déjà vu histórico. Há uma espécie de atração fatal pela culpabilização dos recém-chegados, daqueles que supostamente não pertencem ao grupo, à tribo e todos os males do mundo lhes podem ser atribuídos, desde aqueles que poderão ter algum tipo de relação causa/efeito, àqueles completamente aleatórios ou de ordem mais mística e abstrata.
Entre 1506 e hoje, nada mudou. Não queimamos pessoas em praças públicas, mas somos hábeis em «queimá-las» em lume brando, numa sopa de ódio, acusações, medo, humilhações e exclusão.
E talvez doa olhar para trás e perceber que somos descendentes de uma horda de assassinos, de facínoras sanguinários, de pessoas cujos medos alimentaram um ódio tal que as levou a ações irracionais de grande violência. Mas é essa a realidade. A única maneira de impedir a repetição dos erros é ter uma plena consciência desses mesmos erros, interiorizar as falhas, olhar abertamente ao espelho o eu social, histórico, cultural destruidor. Enquanto povo, perseguimos, massacrámos, matámos, fomos dominados por um ódio cego infundado. Não esquecer, reavivar a memória, serve como um alerta constante para o que há de vir.
Lisboa, 19 de Abril de 1506 - O massacre dos Judeus, de Susana Bastos Mateus e Paulo Mendes Pinto, Alêtheia Editores