Luigi
A celebração da morte de alguém parece coisa ligada à falta de escrúpulos, de empatia. Ninguém “normal” se deveria sentir eufórico com a morte violenta e inesperada de uma pessoa que nem conhece.
Há, no entanto, um entendimento tácito nas nossas sociedades ocidentais que criam exceções a essa regra. Aquele que parece um desejável comportamento social humanitário, de amor ao próximo, não é à prova de bala e está cheio de buracos. Podemos festejar a morte violenta de ditadores, lançar foguetes quando limparam o sarampo ao Bin Laden e a outros de semelhante candura. Em países que têm o castigo da morte como medida corretiva no seu código pena, podemos celebrar a execução de criminosos sem que nos caia em cima a acusação de sermos uns psicopatas.
Estes parágrafos iniciais não pretendem ser acusatórios, uns parágrafos de distanciamento entre mim e os foliões da morte. Não o é, de todo, porque também eu a festejo. Não há acusação, mas tentativa de compreensão. Porque é que os nossos escrúpulos e empatia pelo próximo estão tão cheios de compartimentos de exceção?
Quando um CEO de uma companhia de seguros de saúde é assassinado em plena rua, numa cidade movimentada, o circo mediático instala-se. A imagem do alegado assassino que aparecia nas imagens, inicialmente ainda não identificado, não era a imagem de um criminoso. O público aceitou-a como a imagem de um justiceiro. E não interessava nada que meia dúzia de pessoas, nos comentários das notícias sobre o brutal homicídio, ressalvassem a ideia de que aquele homem assassinado era também um filho, um pai e um irmão de alguém, porque as suas escolhas de vida, a sua profissão sem escrúpulos, que coisificava o ser humano e o transformava numa fonte de lucro, justificavam tudo. E se formos a ver bem, todos os outros criminosos também não teriam uma família que os amava? Não seria Bin Laden amado e chorado pelos seus filhos?
Quando o nome e os detalhes da vida do alegado assassino nos saltam para a frente dos olhos, Luigi Mangione, não só devido ao seu ato aparentemente justiceiro, mas também devido à sua juventude, aspeto e background familiar – um bonito rapaz de boas famílias, estudioso, bom aluno – transforma-se num herói das redes sociais e também uma espécie de herói norte-americano. Um jovem herói que decidiu fazer justiça pelas próprias mãos, quando o sistema está danificado e só um salvador o pode fazer abanar.
É difícil andar pelas redes sociais e não dar de caras com memes, vídeos de teorias de conspiração, vídeos de humor, vídeos informativos dando conta de cada passo de Luigi, o novo herói, e onde a vítima, o raio do CEO que já ninguém se lembra o nome, parece peça de somenos importância na equação. De todos os vídeos e memes, sobra apenas um novo ídolo instantâneo.
Fico a matutar nesta necessidade contemporânea de criar heróis, porque o sistema onde nos inserimos, enquanto cidadãos, não é transponível e não parece ser permeável à força pela quantidade, apesar de sermos milhares de milhões em todo mundo. Mas nem a quantidade nos salva. Precisamos de heróis, porque a probabilidade de vencermos, ao contrário do que é costume, é maior se lutarmos sozinhos, do que enquanto sociedade, enquanto grupo totalizante. E esta ideia de o jogo estar viciado, a ideia de que a nossa quantidade de nada vale contra quem está no comando de isto tudo, é terreno fértil para os heróis.
Nos EUA, 335 milhões de pessoas não conseguem mudar um sistema de saúde que não é público, de acesso generalizado, que deixa morrer, caso o cidadão doente não tenha um seguro ou uma cobertura à medida da necessidade que surge, um sistema que deixa os seus cidadãos endividados, que os leva a fazer escolhas impossíveis e onde chamar uma ambulância parece uma estravagância a ser cuidadosamente ponderada. Mas um único cidadão consegue, pelo menos, chamar atenção para a aberração do sistema.
No entanto, não deveríamos precisar de heróis. A sociedade perfeita seria uma sociedade sem salvadores, uma sociedade coesa apesar da sua diversidade e pluralidade. A utopia das utopias é uma sociedade sem necessidade de heróis. Se precisamos de salvadores instantâneos é porque as coisas não funcionam com justiça, igualdade, equidade e empatia, tal como deveriam funcionar.
Se vibramos, na ficção, quando o psicopata Dexter estraçalha brutalmente as suas vítimas, se torcemos para ele não ser apanhado porque canaliza a sua psicopatia para tirar das ruas os maus da fita, é porque os conceitos em que nos apoiamos para erguer as nossas sociedades estão todos subvertidos.
Ou talvez, toda esta ideia que tentamos vender de nós próprios, enquanto seres humanos – de sermos seres empáticos, racionais e com forte sentido de preservação da espécie, seres primitivamente bons, incapazes da crueldade –, seja uma autêntica aldrabice.
Segundo aquilo que apregoamos de nós próprios:
Nenhum ser humano deveria festejar efusivamente o assassinato de outro;
Mas nenhum ser humano deveria negar assistência médica a outro, preterindo a vida humana em relação ao lucro;
Nenhum ser humano deveria promover um sistema que decide sobre a vida e a morte de outros seres humanos, reduzindo-os a um número numa tabela contabilística.
Quando temos o nosso sistema de suporte, enquanto sociedade, roído por dentro até às fundações, urge a necessidade de heróis. No entanto, o potenciamento de heróis fertiliza o terreno para o surgimento de todo o tipo de salvadores, profetas, santos e seres humanos elevados a um patamar de culto sem escrutínio. Não devíamos precisar, enquanto sociedade, de quem nos salve. Não quero ser uma vítima à espera de um milagroso salvador.
Mas havendo heróis, ao menos que sejam heróis coletivos.