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Quimeras e Utopias

Quimeras e Utopias

Idas para a escola — memórias de infância

Regresso aos meus sete ou oito anos, às viagens feitas para a escola por entre carreiros estreitos, serpenteando por terras de cultivo e combros que no verão criavam a suspeição da existência de répteis, fazendo-me caminhar quase na oblíqua, tal não era o restolhar entre a vegetação. Atalhos que hoje são estradas, mas que mesmo assim guardam a memória das minhas caminhadas da infância. Relembro um dia específico em que, liderando a expedição de mais uns quantos meninos, seguia à frente no carreiro e, ao grito de horror da menina que seguia mesmo atrás de mim, mantive a perna direita em suspensão, evitando assim pisar uma cobra que cirandava por ali. Claro que, nos nossos tenros sete ou oito anos, não eramos exploradores lá muito valentes. Corremos para trás, evitando o atalho dos carreiros, fazendo o percurso para a escola pela estrada, ainda com o coração aos saltos devido ao encontro imediato com a cobra. Aquela mudança de percurso fez com que chegássemos atrasados às aulas e nos fossem pedidas explicações pela situação inusual.

 

O nosso professor achou divertida a nossa justificação debitada em tom ofegante e resolveu dar-lhe uma sequência que volta e não volta recordo com um certo carinho: «Ah, foram vocês então. É que quando vinha para a escola encontrei uma cobra assustada que me disse que tinha ficado naquele estado devido à gritaria de umas quantas meninas. Vocês ficaram assustados com ela e ela com vocês. Por isso já sabem, não precisam de ter medo. Elas têm tanto medo de vocês, como vocês delas.»

 

Não vou vangloriar-me de, depois desta lição do professor, ser completamente destemida relativamente às cobras. Um certo receio primitivo mantém-se dentro de mim, mas gosto de as observar, de lhes ver os padrões bonitos da pele, de lhes acompanhar o serpentear fugitivo.

 

Ao meu Professor Fernando, diferente do Professor Fernando do meu pai (o mesmo homem em épocas muito diferentes e, consequentemente, com comportamentos díspares) podemos apontar muitas coisas, algumas boas, algumas más. E mesmo que as boas possam ter justificações pouco altruístas, mesmo assim tiveram um forte impacto positivo em mim. Com ele aprendi o respeito pela natureza, a observação do que nos rodeia, as árvores, os pássaros, as plantas, as pessoas. Aprendi ainda o gosto pela escrita, coisa fulcral na minha vida na atualidade. Ele não era professor de nos mandar fazer cópias, antes instigava-nos a escrever textos livres onde tínhamos a liberdade de discorrer sobre o que nos apetecesse, incitando-nos assim, desde tenra idade, à exploração da nossa criatividade. Entre a escrita destes textos, as idas aos pinhais para observar árvores, plantas e pequenos insetos (recordo os pequenos bichos da conta a enrolarem-se em bola mal sentiam as nossas presenças perscrutadoras), o mapa de Portugal estendido no chão, por cima da caruma, virado para norte com a ajuda de uma bússola, os mercadinhos improvisados no pinhal, a forma como nos ensinou os metros, levando-nos a medir um quilómetro pela localidade adiante, por tudo isto sou uma pessoa diferente de uma qualquer rapariga de Lisboa, Porto ou Coimbra.

 

Por tudo isto e muito mais, sou uma rapariga da aldeia, uma rapariga que adora observar a natureza, ouvir o canto dos pássaros, observar os voos exibicionistas das garças, os passeios despreocupados dos patos, sentir a cadência das estações na mudanças cromáticas da vegetação, ouvir o sino a dar as horas na igreja mais próxima, ouvir o senhor da fruta e do pão a buzinar, anunciando a sua chegada ou ouvir o ronco de uma velha mota, que passa em frente à minha casa todos os dias sempre à mesma hora.

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