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Quimeras e Utopias

Quimeras e Utopias

Fake news? Who cares news!

Nas últimas semanas, as fake news tornaram-se tema de diversos artigos de opinião um pouco por todo o mundo. O potencial de algo que não é alicerçado e regido pela verdade poder controlar a opinião de milhares de pessoas e levar a sequentes ações infundadas das mesmas surgiu como algo surpreendente. Mas terá esta surpresa razão de ser ou a forma como consumimos informação, como a adquirimos já não era suficiente explícita sobre as nossas exigências (ou falta delas) e, como tal, óbvia nos efeitos perversos que daí poderiam advir?

 

Na realidade, se saltarmos da problemática das notícias falsas para a globalidade da comunicação, da difusão de informação, salta à vista o paradoxo em que estamos enleados. Com o acesso quase generalizado à internet, nunca como antes o acesso a quantidades surpreendentes de informação foi tão fácil. Mas, em completa contradição, tal imensidão de informação não nos tornou mais esclarecidos ou informados. Percebemos que a verdade, aquilo que deveria ser o único espartilho informativo, é uma espécie de conceito abstrato e que as palavras, a retórica, servem para modelar verdades aparentes. A retórica substituiu a investigação.

 

Pegando no exemplo da guerra da Síria, temos os meios de comunicação ocidentais a desenhar um retrato de situação em que Hassad aparece como o grande ditador, a origem de todos os males. Agora, no trono dos maléficos, juntou-se-lhe Putin e toda a tragédia de um país fica reduzida a duas personagens e uma única razão: a manutenção do poder de um ditador. Pouco se fala sobre o antes da guerra, as motivações geoestratégicas, económicas que poderão estar por trás do início e, principalmente, do continuar e perpetuar daquela guerra. Quem são os vários agentes envolvidos, quais os seus interesses?

 

Alguém deveria esclarecer, de forma cabal, que a gestão do mundo é feita de jogos de interesses. Nenhum governo ou agente se envolve numa guerra pela piedade pelos povos envolvidos, A piedade não existe, não gere dinheiro, não move interesses. O povo é um mero peão nestes jogos de tabuleiro. Os líderes mundiais não estão divididos em heróis e vilões. O mais provável é todos eles serem torpes, ignóbeis nas suas motivações.

 

Em confronto aos meios de comunicação ocidentais mainstream, é fácil ter acesso a informação que representa o confronto informativo E.U.A./Rússia. Em sites como o Sputnik, um diferente ponto de vista é apresentado para a guerra na Síria. Aqui, Putin desce do trono dos maléficos, a Hassad passa de ditador a presidente que tenta preservar o seu território e o seu povo dos invasores e os E.U.A., assim como o mundo ocidental como um todo, aparecem como a força geradora do mal. Aqui será possível recolher mais algumas informações sobre os «bastidores» da guerra, sobre as forças motivacionais da mesma. Mas, tanto nestes meios como nos meios informativos dominantes, o discurso é modelado por uma ideologia de base. Poder-se-á confiar inteiramente na imparcialidade da informação de algum destes meios? A meu ver, não.

 

Recolhe-se informação aqui e ali e no final fica-se com a sensação que a verdade se escapa entre dedos, que nada de sabe, que se observa a realidade sob uma cortina de fumo espessa.

 

Os meios de informação da atualidade sofrem de diversos constrangimentos que modelam a forma como o consumidor final chega à informação:

 — A urgência. Com milhares de agentes informativos, o que se torna mais relevante na notícia não é o seu conteúdo, a sua fidedignidade, mas a rapidez com que chega ao consumidor. E talvez a distorção, a modelação da notícia a um certo espetáculo informativo, a torne de escolha preferencial para aquele que a consome.

 

— A urgência, para além de levar ao empobrecimento da forma como a notícia é dada, tem ainda uma outra consequência: o fim da investigação. A investigação jornalística, levando tempo, acaba por se revelar inútil e perder interesse. O que é hoje relevante, é amanhã entediante. Não se justifica investigar, levar semanas e vários recursos humanos para pesquisar sobre seja o que for, quando a velocidade com que deglutimos notícias é tão acelerada.

 

— A notícia não é a verdade, é um produto e nós, consumidores. Como em qualquer outro produto, é regida pelas leis de mercado, pelo marketing, pela habilidade empresarial.

 

— Interesses económicos das corporações de comunicação. Grande parte dos meios de comunicação pertencem a grandes corporações. Será difícil esperar imparcialidade desses meios quando as empresas que os regem beneficiam de uma determinada visão da realidade. A informação vê-se reduzida a um espetáculo de emoções e pouco conteúdo informativo e de investigação; os recursos humanos são, por razões económicas, cada vez menos experientes. A informação cada vez se assemelha menos ao que se entende por notícia e mais a uma novela.

 

— Para além destes constrangimentos, a informação é ainda regida por uns certos dogmas geográficos, históricos, culturais. Aquilo que marcou o passado ocidental recente, como por exemplo a guerra fria, continua ainda a moldar a informação tanto no Ocidente como no Leste. Parece impossível desapegarmo-nos de uma certa construção histórica e observarmos para além disso, para além dessa visão maniqueísta construída durante décadas.

 

Os acontecimentos de ontem (homicídio do embaixador russo em Ankara, o provável atentado em Berlim, a guerra na Síria e seus intervenientes, os acontecimentos em Zurique) merecem assim uma aproximação sem preconceitos que inclua fragmentos informativos de vários quadrantes. A verdade é esquiva e só com uma observação menos ingénua, talvez mesmo cínica, se consiga ver para além da cortina de fumo informativa.

 

 

Ankara.jpg

 

Ankara II.jpg

 Imagens de Burhan Ozbilici/AP.

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