Ética alimentar
Crescer, envelhecer, é ver a vida assaltada por dúvidas, questionamentos éticos e morais, sobressaltos inerentes à simples questão de se existir, respirar, viver. A vida era muito mais simples aos meus quinze anos, mas, apesar desta constante batalha mental, não sinto nostalgia da ingenuidade daqueles tempos.
Uma das coisas que me tem vindo a atormentar mais é a questão do nosso relacionamento, enquanto seres vivos com todos os outros seres vivos que nos rodeiam. Desde tempos imemoriais que temos um relacionamento de carrasco/vítima com toda a natureza. Tudo o que nos rodeia tem de ser subjugado aos nossos interesses: derrubamos florestas, extinguimos animais, aniquilamos ecossistemas e, quando chegamos ao ponto de perceber que vamos matar a galinha dos ovos de ouro, a nossa intenção nunca é a de parar, mas de matar mais devagarinho, porque a nossa vontade continua a ser de valor supremo.
Focando-me na questão do relacionamento que temos com os animais para o consumo alimentar, vejo a imensa hipocrisia que nos rodeia e da qual eu sou um exemplo vergonhosamente perfeito. Eu seria incapaz de matar um animal para me alimentar. Em mim reside essa certeza absoluta. Mesmo que alguém matasse o animal por mim, eu seria incapaz de o esfolar, de lhe arrancar penas, pele, cortar a cabeça. No entanto, hipocritamente, eu consumo carne. Olhar para um bife embalado dissocia todo o passado daquele bife: a forma como o animal viveu, a forma como foi abatido e transformado naquela coisa inócua e sem culpas — uns bifes dentro de uma embalagem de plástico.
Quando confrontada com a evidência — vídeos que mostram a barbárie diária em matadouros de abate e transformação de animais, eu não consigo aguentar mais de dez segundos a ver aquilo e o que sinto é um misto de tristeza e vergonha. Muita vergonha.
A verdade é que, enquanto sociedade, evoluímos nas leis de proteção animal, seja através da proteção de espécies selvagens ou de animais de companhia, mas estas são apenas uma maquiagem da realidade, da qual suspeitamos, mas preferimos ignorar, olhando par o lado. O consumo massivo de carne e peixe transformou a vida animal num fenómeno sem interesse numa linha de montagem que vê aqueles seres sencientes como uma pequena peça na engrenagem alimentar.
Tal como eu, talvez muitas pessoas vivam nesta vergonha e tentem fazer aquilo que lhes parece correto mas, mergulhadas num vício de décadas, regressem aos velhos hábitos. Será difícil toda a população mundial deixar, num curto espaço de tempo, de consumir carne e peixe. Mas talvez seja possível promover uma discussão que obrigue a claras alterações na forma como os animais que consumimos são criados e abatidos. Talvez uma discussão aberta possa contribuir para que alguns deixem de consumir, outros reduzam drasticamente e para que a produção que se mantenha sofra alterações radicais.
Uma galinha viver numa gaiola com um tamanho equivalente a uma caixa de sapatos não me parece nada digno; os frangos serem trucidados numa linha de montagem não me parece nada digno e talvez haja formas de dignificar aquilo que, na génese, é um ato bárbaro — matar.
Como tema que nos causa vergonha, muitas vezes preferimos evitar do que confrontar a realidade, mesmo quando secretamente fazemos uma admissão de culpa. Mas debater nunca fez mal a ninguém, falar abertamente do assunto sem constrangimentos não tem de ser vergonhoso, doloroso, pode, pelo contrário, trazer a libertação.
Como seres vivos racionais, temos de raciocinar um pouco mais.
Fotografia retirada do site http://www.anda.jor.br/31/10/2010/ativistas-divulgam-video-do-resgate-de-38-galinhas-libertadas-de-uma-granja