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Quimeras e Utopias

Quimeras e Utopias

Escrever é só palavras

Passaram quase três horas. Escrevi meia dúzia de linhas. Rabisquei as duas cenas seguintes num caderno, para justificar tanto tempo perdido, mas não consigo abrir o diabo daquela porta, fazer a personagem entrar naquele quarto, confrontar-se com as perdas, com a memória do que foi e que não poderá voltar a ser.

Não consigo rodar a maçaneta e escrever as duas cenas finais.

Por esta altura, parece impossível fazê-la perceber que não vale a pena tanta resistência. Nada disto é real, nada disto é materializável fora da minha cabeça, nada disto existe para além dela, a personagem, e de mim, a sua criadora.

Sinto-me alvoroçada, como se aquilo que estivesse ali para acontecer, aquilo que eu estou prestes a fazer suceder, não fosse apenas um amontoado de palavras que se organizam numa estrutura pensada, num documento guardado no meu computador. A minha pulsação está alterada, a minha respiração - inspirações e expirações breves, atabalhoadas - comporta-se como se antecipasse um grande acontecimento, a chegada de uma notícia decisiva. Um beijo de uma boca que se aproxima, a notícia de uma morte inesperada, o anúncio de uma saída digna disto tudo.

Mas sou só eu a viver mais um dia da minha vida. Banal, trivial e previsível. Eu sentada numa cadeira, no escritório, frente ao computador. E aquilo que faço aparecer sem qualquer magia na tela do computador são apenas palavras. Só palavras.

Palavras que fazem andar, abrir portas, chorar baixinho, quase sem som. Palavras que percebem as camadas complicadas de um olhar medroso, palavras que confrontam com o silêncio, a ausência, palavras como facas, que retalham, esventram, fazem sangrar, palavras como caricias num rosto que não as esperava. Palavras que sobressaltam com um punhado de letras. Palavras num orgasmo que faz estremecer, descontrolar, perder o pé por segundos, para logo flutuar em águas tépidas e calmas.

Palavras que submergem um filho em águas profundas, palavras que o resgatam com um abraço líquido, beijos no rosto, mãos cravadas na carne.

Escrever é remoer durante dias nos contornos daquele universo que nos habita, um universo paralelo ao da nossa vida real, para logo depois se ficar consternado frente a uma linha de texto incompleta, pendente da sua vontade, com o nosso coração a bombear sangue pelo corpo todo a uma velocidade furiosa, com a nossa respiração percussiva a ribombar nos ouvidos como banda sonora.

Escrever é os dedos pousados com afeto numas quantas teclas do computador, refreados pela trela que lhe colocamos de correr arrebatadamente até à palavra FIM.  

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