Do reflexo no espelho
No início da semana, escrevi sobre a tragédia que ocorrera numa lixeira na Etiópia: um desabamento de lixo que soterrara dezenas de pessoas, tirando a vida a cerca de cinquenta. O número de mortos foi posteriormente atualizado e chegam agora a mais de cem as pessoas que sucumbiram à avalanche de lixo. A notícia passou relativamente desapercebida e o choque ao nos apercebermos de que algo assim aconteceu é seguido de um ataque à imprensa por não informarem, não noticiarem factos de relevância, mas sempre mais do mesmo. Ora, ontem estava a ver uma página no Facebook onde me apareceu uma imagem de um desabafo do editor online do Público e que dizia respeito a essa mesma notícia que referi.
Imagem retirada da página do facebook dos Truques da Imprensa Portuguesa.
O jornal Público noticiou, pôs a notícia em destaque e… quase ninguém a leu, comentou, partilhou. Numa era em que o jornalismo tem grande parte do seu financiamento proveniente da publicidade online que está ancorada no número de cliques/visualizações de uma notícia, é óbvio que o destaque de uma notícia sem visualizações não tem interesse e logo essa mesma notícia é jogada para segundo plano. A mais terrível das notícias cai facilmente no esquecimento devido à indiferença dos leitores.
No fundo, somos todos uns narcisistas patológicos. Procuramos o nosso reflexo no espelho em toda a superfície refletora. Ignoramos os reflexos que não nos favoreçam, onde não nos encontramos. Temos pavor quando o reflexo que nos chega é de uma cara desconhecida e o pavor roça o nojo quando esse outro que nos olha do outro lado vive numa realidade para nós obscura.
Reconhecemos numa vítima que estava num restaurante aquando de um atentado terrorista. Também vamos a restaurantes, também gostamos de nos refastelar numa esplanada. Podíamos ser nós. Reconhecemos numa vítima de um atentado num aeroporto. Também andamos de avião e adoramos viajar. Podíamos ser nós. Reconhecemo-nos numa vítima de uma avalanche nos Alpes. Também gostamos de fazer férias na neve. Podíamos ser nós.
Se uma avalanche de lixo tira a vida a uma centena de pessoas, não nos encontramos no reflexo desse espelho. Não andamos a vasculhar no lixo. A ideia de o podermos fazer é inconcebível, surreal. Achamos, com convicção, que aquilo só acontece aos outros, «àqueles» que vivem para aquelas bandas. Não podíamos ser nós.
Sem identificação, sem o nosso belo reflexo no espelho, não há interesse, não há leitura da notícia, não há vontade jornalística que nos valha.
E por mais que nos esforcemos, não há volta a dar. O mundo está dividido em dois tipos de pessoas: nós e os outros. E os outros… são apenas os outros.