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Quimeras e Utopias

Quimeras e Utopias

Catarina - beleza, dúvidas e inquietação

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Catarina e a beleza de matar fascistas, texto e encenação de Tiago Rodrigues (forografia retirada de https://www.23milhas.pt/evento/catarina-e-a-beleza-de-matar-fascistas/)

Enquanto caminhava entre dezenas de pessoas alvoroçadas e faladoras, na direção da saída daquela sala de espetáculos, para fora daquela casa das artes, o que sentia era culpa. Percebi, envergonhada, que o que fizera ali (ou não fizera) era uma exata réplica do meu comportamento em sociedade. Eu, logo eu, tão fanfarrona das minhas crenças, dos meus ideais, dos meus valores…

Comprara os bilhetes para aquele espetáculo havia mais de meio ano. Cancelamentos devido à covid arrastaram «Catarina e a beleza de matar fascistas» para o fim de semana prévio ao 25 de abril. Entrei naquela sala a fervilhar em stress. O meu trabalho prolongara-se penosamente até às 20h15, não jantei, a viagem ainda fora longa até ali chegar, não encontrávamos estacionamento, cada uma das pessoas do meu grupo tinha um bilhete numa fila diferente, tudo combinado para incendiar o meu estado de espírito. E depois aquilo.

Aquilo a que me refiro é uma peça de teatro com um texto brilhante de Tiago Rodrigues (quando for grande, quero escrever algo assim), brilhante na forma como foi escrito, encenado e interpretado, brilhante na provocação ao espetador, brilhante por desejar que o espetador percebesse que não era suposto ser apenas espetador, agente passivo de uma obra de arte.

Num crescendo, vemos os personagens mergulhados no dilema, que é também um dilema de todos nós enquanto seres sociais – até onde é possível ir para se defender a liberdade, a democracia e silenciar aqueles que a atacam, a minam e destroem? Será a justiça coisa que se possa redefinir e adaptar consoante as necessidades especiais de um momento? O recurso à violência é justificável se os fins forem nobres? Todos os fins justificam os meios? E, se descartarmos as minudências da ética e da moral, não seremos nós, em última instância, como aqueles que tentamos combater, aqueles que se alimentam do medo, que perseguem o poder, implodindo com a liberdade e direitos?

Mas, e se não fizermos nada? Se formos plácidos e conciliadores com todos eles? Se lhes dermos o direito à fala, o direito à retórica associada, o direito à exploração emocional de todos nós? Se nos limitarmos a deixá-los ser, usando como único recurso de batalha as nossas palavras já cansadas?

A dada altura da peça, eu percebia a perspetiva de cada uma das Catarinas e eu própria estava mergulhada em dúvidas, porque nada nunca é verdadeiramente preto ou branco, bom ou mau, belo ou feio. Mas as dúvidas, o diabo das dúvidas, não raras vezes levam ao caos.

No momento final da peça, o fascista de serviço, numa personificação aterradora dos pequenos fascistas que vemos pulular por aí, espécie em crescimento bem adaptada ao ambiente, congratula-nos com um discurso ininterrupto, com todos aqueles chavões que se lhes conhece, numa ladainha papagueada, fervorosa e amiga de deus, da família, da tradição, do progresso sem escrúpulos.

A um ator que nos cria a vontade do insulto, do combate e até mesmo da violência, só temos de lhe reconhecer o talento. Calado durante toda a peça, o personagem fascista, interpretado por Romeu Costa, eleva-se aos píncaros na reta final. E com ele veio o desconforto, a vergonha e, posteriormente, a culpa.

Temos um personagem a debitar, perante o silêncio de todos os outros personagens da peça, tudo aquilo que representa o ideário mais asqueroso que uma sociedade possa almejar. O silêncio dos outros atores e o silêncio de uma plateia composta por centenas de pessoas. E talvez tenha sido necessário passarem uns bons cinco minutos para um espetador (um agente provocador?) da assistência se manifestar contra todas aquelas alarvidades proferidas por um político tão credível, que o teatro, a personagem, o próprio Romeu Costa, desapareceu, ficando ali na nossa frente um fascista, perfeitamente decolado, de uns quantos outros que tão bem conhecemos.

E aquela plateia, depois da primeira intervenção de um espetador exaltado, mandando calar o personagem, transformou-se numa amostra de um país, num microcosmo visto à lupa de um Portugal atual. Da exaltação inicial de um homem, inicialmente vieram os olhares reprovadores de algumas pessoas: «este pessoal vem ao teatro e não se sabe comportar». Mas também estes se começaram a sentir desconfortáveis com o discurso cada vez mais alongado do pequeno fascista. Esperávamos uma intervenção redentora de um dos outros personagens, mas ela não chegava e ele continuava na sua lengalenga (como raio um ator consegue decorar um texto de dez, quinze minutos, sem pausas, num encadeado frenético, está para além da minha compreensão).

Depois da reprovação do comportamento do espetador provocador, do desconforto cada vez mais palpável que se transformava em anuência, surgiram os primeiros protestos da plateia. Uns gritavam «Não passarão» ao som de palmas de incentivo daqueles (como eu) que não se atreviam a gritar em protesto. Cantou-se a «Grândola vila morena», gritaram-se insultos, várias pessoas abandonaram a sala e ele continuava a discursar, num fervor, por vezes quase silenciado pelos cânticos antifascistas da plateia, outras vezes completamente percetível, com o seu discurso a ferir, a mostrar o nosso silêncio, a nossa inoperância, a nossa passividade.

E quando finalmente acabou, senti-me mal. Muito mal. Quis ter tido coragem de ser aquela mulher exaltada duas filas atrás da minha, que por momentos temi que saltasse para o palco e desatasse à bofetada ao ator, quis ter sido aquelas pessoas que cantaram em fúria, que vociferaram «Não passarão», mesmo perante o olhar de reprovação de várias outras pessoas da assistência. Porque, a dado momento, aquilo já não era uma peça de teatro, aquilo era uma análise do nosso comportamento social. E dali, o que se concluiu, é que somos seres essencialmente passivos, que preferimos sentir a vergonha da inoperância, a culpa da passividade, ao invés do arrebate algo insano, à impetuosidade mesmo que ingênua, à impulsividade da ação. E mesmo quando nos rebelamos, fazemo-lo num arrufo do momento, uma ação que logo saneamos sem contemplações, porque não queremos ficar retratados como arruaceiros malucos.

A passividade dos desconhecidos sentados à minha direita e à minha frente, mostraram-me o quanto sou influenciável pela aprovação ou reprovação alheia, o quanto me deixo tolher pela opinião dos meus pares. O meu discurso é um e a minha ação é outra. E como eu, muitos.

E a arte é, numa das suas possíveis definições, esta capacidade de criar desconforto, vergonha e culpa, de transbordar para além das fronteiras físicas de uma sala, de um texto escrito e interpretado por atores, da cenografia, em cada objeto montado e mexido num palco. A capacidade de roer e escarafunchar mesmo quando o objeto artístico já ali não está e apenas vive na memória.

E desta peça de arte, percebo que, no fim - caramba -  é mesmo normal, expectável, «que eles passem», mesmo que eu sussurre «Não passarão!!»

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