Cantar as janeiras — memórias da infância
Há quase três décadas atrás, a liberdade das crianças para circularem na rua não era tão restrita como atualmente. Íamos sozinhos para a escola, mesmo em tenras idades, demorávamos em brincadeiras no regresso a casa depois das aulas, não havendo o controlo parental a que hoje em dia sujeitamos os nossos filhos. E uma das atividades que fazíamos livremente era precisamente cantar as janeiras. Chegado o dia 6 de janeiro, dia de Reis, (mas estendendo a efeméride um ou dois dias antes) eram várias as crianças que se agrupavam, sendo muito comum os grupos de 3 ou 4, para ir cantar as janeiras de porta em porta. Tínhamos como missão passar umas horas divertidas e também, numa perspetiva capitalista da situação, ganhar uns quantos escudos, pois não havia cá mesadas para ninguém (pelo menos para mim não).
Munidos de instrumentos muito rudimentares, uma pandeireta ou um pífaro ainda se arranjava, por vezes tínhamos de improvisar umas maracas com algum recipiente vazio, por exemplo, duas caixinhas de iogurte coladas com pedrinhas ou areia no interior. Para além da parte instrumental, as canções dos Reis tinham de estar na ponta da língua, porque em algumas casas a espera era prolongada, obrigando-nos a desfiar a totalidade do repertório.
Santos reis, Santos coroados
Vinde ver quem vos coroou
Foi a Virgem mãe sagrada
Quando por aqui passou
Fizesse chuva ou fizesse sol, lá íamos estrada abaixo. Naquele tempo, a concorrência era muita, quase chegando ao ponto de haver filas de grupos de cantores à porta de certas casas. Recordo na casa dos meus pais de haver uma taça cheia de moedas nesta altura do ano. A minha avó tratava, nos dias antes, de arranjar trocos suficientes, mesmo que fosse preciso trocar uma nota. Havia horas que mal se fechava a porta depois de um grupo acabar de cantar, logo outro grupo aparecia. Era uma cantoria quase ininterrupta durante o dia 6 de janeiro.
Para além de ganhar umas moeditas (coisa pouca que faria os miúdos de agora rir à gargalhada), também nos aconteciam situações caricatas que nos faziam regressar a casa a sorrir para contar aos nossos pais. Uma das situações que ainda recordo foi quando, certa vez, ficámos, eu e o meu modesto grupo de cantares, parados a uma porta a cantar as janeiras durante dez minutos. Víamos luz vinda do interior e persistimos na cantoria, apesar de estarmos a ser ignoradas havia vários minutos. A dada altura ouvimos a descarga de um autoclismo e finalmente percebemos a resistência da pessoa no interior em abrir a porta. Tínhamos estado a cantar as janeiras à porta de uma casa de banho.
Numa outra situação, com a noite já a chegar e a visibilidade a diminuir, pisámos uma placa que tinha sido revestida com cimento fresco. Se por lá havia algum sinal a avisar, não demos conta e quando a dona da casa apareceu, avisada pela nossa cantoria, fartou-se de gritar connosco e nós não tivemos outro remédio senão fugir. As nossas botas nesse ano não apanharam chuva, mas uma demão de cimento fresco.
Numa outra situação cantamos as janeiras à porta de uma taberna. Um dos senhores que por lá andava, já meio alegre, deu-nos a nossa melhor oferta do dia, motivado possivelmente pela alteração alcoólica. Não posso gabar os nossos escrúpulos da altura. Uma moeda «grande» era uma alegria que não dava lugar a escrúpulos. Numa ou outra casa não nos abriam a porta, pois algumas pessoas estariam talvez já saturadas de receber tantos grupos de jovens cantores ou então as moedas já não chegavam para tanta procura.
Molhadas, cheias de frio e cansadas da jornada por grande parte da freguesia, eu e as outras meninas chegávamos a casa, ano após ano, animadas pela atividade diferente e contentes com as quantas moedas angariadas, que teriam de ser divididas pelos membros do grupo de cantares.
Com a passagem dos anos, os grupos de meninos e meninas que andavam a cantar as janeiras foram diminuindo progressivamente. Agora restam os grupos de cantares organizados, com instrumentos musicais «a sério» e compostos essencialmente por adultos. Todo aquele bulício, crianças pela rua debaixo dos seus guarda-chuvas cantando de porta em porta, é já uma imagem do passado, do meu passado. E na memória persistem as letras do repertório cantado na altura e as aventuras vividas, fragmentos do que sou hoje em dia.