Blasfémias
Outubro de 2013. Um barco com 400 pessoas provenientes da Síria naufragou a poucos quilómetros de Lampedusa, na Itália. 268 pessoas perderam a vida, entre elas 60 crianças. Números trágicos, mas que pela repetição diária se tornaram corriqueiros. Números…
No entanto, apesar de quase cinco anos passados, novas informações surgiram sobre este incidente específico. Na altura do acidente, surgiram algumas suspeitas relativas à extrema demora no auxílio aos náufragos que fugiam de uma guerra sangrenta. Neste momento, as suspeitas confirmaram-se. Um médico sírio, a bordo do barco, entrou em contacto com a guarda costeira italiana informando da situação crítica do barco (estava a entrar água na embarcação), avisando que «estamos a morrer!». As coordenadas que permitiam a localização da embarcação foram fornecidas, a informação sobre a situação limite em que se encontravam aquelas centenas de pessoas foi relatada. Mas o que a guarda costeira italiana fez foi empurrar a responsabilidade do auxilio para Malta. Mandou o médico ligar para Malta. Este assim o fez. De lá, de Malta, recebeu instrução idêntica: «ligue a Itália. Eles estão mais próximos». Durante cinco horas, Itália e Malta empurraram a responsabilidade com troca de telefonemas e faxes, enquanto centenas de pessoas se afogavam no Mediterrâneo. Só quando Malta enviou um avião que verificou, sobrevoando o local, que já estavam centenas de pessoas na água, é que Itália resolveu mandar auxílio. A frase desesperada do médico sírio «Estamos a morrer!» não surtiu qualquer efeito empático nos funcionários italianos ou malteses, as chamadas insistentes, a aflição na voz de alguém que percebia a morte eminente não conseguiu arrancar o funcionalismo burocrático aos seres humanos que atenderam aquelas chamadas.
Agora, a revista italiana L’espresso conseguiu ter acesso às gravações de cinco chamadas telefónicas que provam a indiferença e a ineficácia de auxílio das autoridades italianas que permitiram, dessa forma, a morte de 268 pessoas. Jammo, o médico sírio que deu o alerta, sobreviveu ao naufrágio, mas dois dos seus filhos não resistiram às cinco horas de espera impostas pela indiferença burocrática italiana.
Numa blasfémia de diferente natureza, a República da Irlanda resolveu investigar Stephen Fry por blasfémia. O humorista britânico foi investigado após uma denúncia feita por um telespetador após a emissão de um programa de 2015, onde Fry, questionado sobre o que diria a deus depois de morrer, respondeu o seguinte:
Como se atreve a criar um mundo onde existe tanta miséria? A culpa não é nossa. Não é correto. É absolutamente, absolutamente maligno. Porque haveria de respeitar um Deus caprichoso, malicioso, estúpido que cria um mundo que está tão cheio de injustiça e dor?
O Deus que criou este Universo, se é que foi criado por um Deus, é claramente um maníaco, um completo louco, totalmente egoísta.
Citações de Fry retiradas deste artigo do jornal Público.
A lei irlandesa prevê a punição de quem insulte qualquer religião ou os seus fiéis. No entanto, para a investigação chegar a julgamento, terão de existir vários ofendidos. E esse foi o facto que acabou por deixar cair a acusação. A polícia, segundo notícia de ontem do Daily mail, não encontrou mais ofendidos pelas palavras de Fry e assim caiu a acusação de blasfémia contra o ator.
No fim, resta saber quem mais blasfemou: Fry, com a sua ira contra um deus omnipresente, mas caprichoso, malicioso (palavras, nada mais do que palavras), ou os funcionários burocratas indiferentes à aflição alheia, entretidos a trocar faxes e telefonemas entre si (ações ou falta delas).