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Quimeras e Utopias

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Apologia da imbecilidade

Na era pré internet a imbecilidade não era tão evidente. Ela estava lá, escondida dentro de cada um, mas a maioria das pessoas não sentia ganas de a escarrapachar na cara dos outros constantemente. Nessa era pré internet vivi numa espécie de paraíso, um Shangri la onde só existiam pessoas decentes ou em vias de se tornarem assim.

 

Claro que agora sei que todas aquelas emoções corrosivas, odiosas para com o próximo estavam lá, simplesmente não tinham o ambiente propício para serem demonstradas com sobranceria, para se expandirem e replicarem como um vírus.

 

Não seremos agora mais racistas, mas xenófobos, mais homofóbicos, mais machistas e misóginos do que éramos na década de oitenta ou noventa, mas quando agora alguém é uma destas coisas (ou todas) é-o de forma mais evidente do que no passado.

 

E embora não faça uma apologia da mentira, da ignorância, neste assunto específico acho que preferia viver em plena negação. Os comportamentos de ódio, de violência baseada em preconceitos injustificados são como veneno para mim. Abatem-me, causam-me uma descrença na humanidade que me faz ter vontade de desistir. Sinto vergonha por sermos assim. Sinto vergonha por alguns de nós odiarem alguém devido à quantidade de melanina presente na sua pele. Sinto vergonha por alguns de nós odiarem alguém por esse alguém amar uma pessoa do mesmo sexo. Sinto vergonha por alguns de nós odiarem alguém só porque essa pessoa vem de um determinado país ou pratica uma determinada religião. Sinto vergonha por alguns de nós rebaixarem alguém, humilharem, agredirem alguém só porque esse alguém é uma mulher.

 

Antigamente, muitos destes comentários agressivos desenrolavam-se certamente na esfera privada, alguns deles eram considerados tabu e pouco debatidos nos meios de comunicação social. Estava tudo lá, mas entre paredes, sussurrado ou então circunscrito a grupos identificados. Se hoje podemos ter conhecimento de quem pensa, faz ou agride, o conhecimento de onde provém a imbecilidade não tem nada de positivo, isto porque, a dada altura, ela parece vir de todo o lado, de todos os quadrantes e é impossível sobreviver neste fogo cruzado de verborreia mental.

 

Tudo isto a propósito de uma notícia infeliz que li em vários jornais. Apelidar Michelle Obama de «ape in heels» é mau, de uma baixeza que abarca várias dimensões que vai desde o racismo gritante ao machismo encapotado. Chamar um ser humano de macaco sempre foi o tipo de insulto básico usado para ofender alguém de raça negra. No entanto, era o tipo de insulto de caserna, de conversa de café. Nunca foi o tipo de coisa que alguém tivesse a lata de escarrapachar num jornal assinando por baixo. Porque, embora usado, era um insulto ignóbil mesmo nos lábios de um racista. Todavia, estamos numa época em que as pessoas se sentem à vontade para escrever este tipo de coisas nas suas redes sociais e assinar por baixo. Mesmo aquelas pessoas que, tendo algum cargo profissional de relevância, seria de supor que tivessem algum tento nas imbecilidades que proferem.

 

Para além da questão racista, há aqui ainda outra questão. Temos uma mulher negra, forte, inteligente, formada numa das melhores universidades do país, uma mulher que não vive à sombra do marido, mas sabe falar por si, expressar-se de forma independente. Uma mulher que, embora primeira-dama, subsiste para além dessa imagem de acessório presidencial. Depois temos uma outra mulher (o termo de comparação usado no post do insulto). Uma mulher bonita, que viveu e vive à conta dessa mesma beleza física, que se comporta como um acessório de humanização e embelezamento do marido.

 

Esta apologia da mulher bibelot, da dona de casa bonita e subserviente ao marido, mesmo que o mesmo seja um bronco de primeira, é como uma reminiscência infeliz do início do século XX. Perceber que milhares de pessoas, entre elas muitas mulheres, pretendem diminuir a mulher na sociedade a um papel secundário, a uma figuração ao invés de um desempenho de um papel principal, é tremendamente perturbador.

 

Seria de imaginar que as mentalidades estão num contínuo processo de evolução que, existindo um avanço, não há lugar ao retrocesso. Mas a cada passo para a frente, algumas pessoas cismam em andar às arrecuas para trás.

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