A ponte do passado
Quando se faz parte de um sítio, a paisagem envolvente torna-se ar que se respira. Não deslumbra, não espanta, está lá, é familiar, intrínseca ao espaço e aos seus habitantes.
Sentia isso com a minha terra, mas com o passar dos anos, o que era familiar passou a deslumbrar, o que era tido como adquirido, passou a causar espanto. Quanto mais conhecia do mundo, mais os pequenos detalhes do meu recanto ganhavam importância.
Vivo numa pequena localidade, Sever do Vouga, numa pequena freguesia, Pessegueiro do Vouga, que têm como cartão de visita principal uma ponte ferroviária. A minha terra não será a minha terra sem aquela ponte. É o que a caracteriza, a imagem simbólica deste local. Construída em 1913 (início da construção), por lá passaram comboios a vapor, depois automotoras, até à extinção completa da linha em 1990. Da minha infância, recordo uma única viagem que fiz na automotora. Fui com a minha tia a uma cidade próxima. De toda a viagem, da totalidade do percurso, na minha mente permaneceu apenas a passagem da composição em cima da ponte de pedra. O meu fascínio revestido de medo, a vista do rio ao fundo sob o meu olhar de 6 ou 7 anos.
Primeira imagem é do arquivo de João Pereira, segunda imagem retirada de https://www.flickr.com/photos/ccdrc/5869628278/in/photostream/.
Na década seguinte, o troço ferroviário mergulhou na decadência. A estação, o percurso da linha e a fábrica que ficava em frente à estação, uma das maiores unidades fabris da zona há 50 anos (uma fábrica de massas alimentares que chegou a ter centenas de funcionários) e que posteriormente entrou em declínio, faliu, tornaram-se em espaços decadentes, um esgar retorcido do que tinham sido no passado. De entre os escombros da passagem do tempo, apenas a ponte brilhava entre as margens do rio Vouga, ainda bela e imponente.
Mais recentemente, a forma como a gestão destes espaços decadentes era feita mudou radicalmente. A linha do comboio foi transformada numa ecopista para caminhadas e percursos de bicicleta. Primeiro, da estação de Paradela até ao fim do concelho, na zona da Foz e, posteriormente, no sentido inverso, de Paradela até ao apeadeiro seguinte, na freguesia de Cedrim. Depois, a estação de Paradela foi recuperada das ruinas e transformada no que é hoje o Paradela Eco café, um espaço com valência de cafetaria, aluguer de bicicletas, uma pequena biblioteca e zonas para exposições e workshops.
Primeira imagem retirada de http://os-caminhos-de-ferro.blogspot.pt/2012/03/linha-do-vouga-ramal-de-viseu-um-pouco.html, segunda imagem, fonte própria.
Também a antiga fábrica, cujo o edifício acabou por ser comprado pela autarquia, foi recuperado e transformado num grande edifício com várias valências: escola profissional (com cerca de 500 alunos), incubadora de empresas (com mais de uma dezena de empresas lá sediadas) e uma clínica médica.
Todo um espaço, que décadas atrás era uma zona movimentada, de grande frenesim, renasceu dos escombros e trouxe um sopro de vida a uma localidade entristecida pela decadência que a rodeava.
Imagens prórpias.
Agora, quando caminho pelo percurso onde antes passava o comboio, quando passo pelos tuneis enegrecidos pelo carvão das composições a vapor, vejo o passado a espreitar de cara lavada por entre a paisagem verdejante envolvente e quando me sento na esplanada do café da estação, consigo sentir a animação das vozes do passado transfiguradas nas conversas púberes dos estudantes da escola.
No fundo, quero apenas acreditar que Lavoisier tinha razão: nada se perde, tudo se transforma. E que essa transformação não seja feita de esquecimento, mas de renascimento e renovação.
Imagens invernosas da ecopista. Imagens próprias.