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Quimeras e Utopias

Quimeras e Utopias

A Juventude

Olho constantemente para trás, para o que foi, dissecando os caminhos tomados, tentando perceber a interceção perdida, o cruzamento onde tomei a saída errada, a placa de sinalização que não li corretamente, a soma das pequenas coisas que me trouxeram aqui.

Agora, cheguei àquele sítio donde se vislumbra a juventude já lá longe, onde se revisita numa obsessão as músicas do passado e se sente um sofrimento indiscritível. E o indiscritível não é hipérbole, não é adjetivo metido sem contemplação – é coisa literal. Não sei realmente descrever os sentimentos que as memórias me provocam: ao rever a capa de um livro que comprei há vinte anos, ao falar de um episódio de vida que aconteceu há muito, ao falar de um local ao qual não regressei, ao ouvir as músicas que me destabilizavam e faziam vibrar naquela altura. Não é nostalgia, não é saudade, não é tristeza no sentido «duro» da palavra. É…

Há uns bons anos li o livro «Os anjos maus» de Éric Jourdan, um livro escrito pelo autor aos 16 anos. E se alguém quer perceber de que se alimenta esta angústia do envelhecer, bastará ler alguma coisa escrita por alguém muito jovem.

O envelhecer, este constante olhar para trás, não tem nada a ver com a perda da beleza, da firmeza, da decadência da parte física inerente ao passar dos anos (minto, tem algo a ver, mas não tanto assim), mas tem a ver com a perda de algo ainda maior, algo incomensuravelmente mais grandioso.

Não será o livro mais bem escrito que lerão, afinal foi um puto de 16 anos que o escreveu e a juventude é uma ode ao exagero, à impulsividade, aos extremos. A juventude é coisa sem elegância, sem respeito pelas normas, é ainda coisa de uma extrema ingenuidade do que ao viver diz respeito.

Mas é também, acima de tudo, um furor, um fulgor, uma paixão, um arrebatamento, um frenesi interior, uma crença in extremis no que está para vir.

Ler algo escrito por um adolescente ou jovem adulto é perceber que nenhum homem ou mulher de trinta, quarenta, cinquenta anos conseguirá replicar aquilo, conseguirá fazer transpirar para o papel a exaltação que é viver aos 16 anos. E todas as tentativas de trazermos até nós esta juventude perdida serão sempre ridículas, um plágio que nem plágio será de tão mal ataviado que é, uma crise de meia-idade grotesca, uma comédia de enganos para fazer rir à gargalhada o espetador.

E se ao ouvir aquele álbum que comprei há vinte e cinco anos as lágrimas me assomam aos olhos, não é pelos cabelos brancos semeados aleatoriamente, sem elegância, na minha cabeça, ou pelas rugas de expressão que imprimem um ar de cansaço à minha cara assimétrica, é por perceber que nunca, nunca mais irei ter fé no que está para vir, uma crença inabalável no viver, uma expetativa raiada de mistério, a paixão necessária para enfrentar o dia de amanhã.

E de todos os jovens que vejo, sinto-lhes inveja.  

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Os anjos Maus, Éric Jourdan, edição Bico de Pena, 2009.

 

Despojos de guerra - subtrações e adições

Há uns 25 anos, entrava numa sala de cinema numa qualquer tarde de uma dia de semana, no Monumental Saldanha, sozinha, para ver um filme. Estudava cinema na Escola Superior de Teatro e Cinema e, embora o cinema me fascinasse, o que realmente me tinha levado àquela escolha académica peculiar, fora a escrita. Alguma coisa que justificasse a ânsia, a necessidade, mas também a alegria de escrever.

Estava naquele dia, naquela sala de cinema, porque o meu professor de argumento aconselhara aos seus alunos um livro de screenwriting e aquele filme, o que me levara ali, tinha o argumento desse mesmo autor e argumentista.

Lera e relera o livro Story de Robert McKee e agora estava ali uma oportunidade de ver se o genial autor Robert era também um argumentista em condições. Embora, atenção, a capacidade de ensinar não tenha de estar em perfeita ligação cósmica com a capacidade de executar e o contrário também se aplica. Nem todo o executante será um bom professor na sua área.

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Story, Robert McKee (1997)

O filme “Wag the Dog – Manobras na Casa Branca”, era um filme que tinha como premissa inicial, um presidente, uma presidência de uma país, que cria uma guerra fictícia para desviar a atenção dos eleitores de um escândalo sexual, perto das eleições, um momento de extrema importância política. Temos uma guerra em estúdio, um herói de guerra, uma música de guerra, tudo a que um povo tem direito.

Trailer de Wag the Dog - Manobras na Casa Branca (1997)

O filme, com um elenco de luxo, ainda sob o ponto de vista atual, tinha quatro espetadores naquela sessão da tarde e daquele dia fica o insólito destes quatro (eu incluída) terem tentado sair da sala depois do filme ter acabado para logo descobrirmos que a porta da sala estava trancada. Nada de pânico, só gargalhadas, porque depois daquele filme, daquela história, do absurdo que todos os quatro pressentíamos que realmente não o era, mais nada restava senão rir. Seria possível descobrir o cinismo das nações, dos governos, num filme? Seria possível que o riso fosse de nervoso, um certo desconforto instalado, mais do que hilaridade espontânea?

Pois claro que era possível. A caminho dos meus vinte anos eu sabia que o mundo era bem mais do que aquilo que eu conseguia ver, mas acho que foram precisos mais de vinte anos em cima para perceber que, apesar de tudo, o que via e pressentia ainda se revestia de imensa importância.

Numa Europa em guerra, não faltam especialistas a observarem cruamente o conflito. Os EUA estão numa senda de cercar a Rússia, arranjando aliados fronteiriços, erigindo nestes novos locais posições privilegiadas, que deixarão ao Rússia numa posição desfavorecida. Uma pressão, que levou Putin a uma estratégia de proteção através do ataque. Ou… Putin é apenas um expansionista, um imperialista que pretende expandir os seus domínios e não se deixar dominar pelos imperialistas ocidentais. E a partir daqui soma-se mais uma dúzia de variações, algumas mirabolantes, outras com alguma coerência.

Linhas, linhas e mais linhas escritas. Horas de televisão, com argumentos de lado a lado. E se tudo, de um ponto de vista estratégico, como se jogássemos à batalha naval, faz todo o sentido, na prática é apenas obsceno. E, lamento, todas estas pessoas que falam de estratégia, peritos, militares, também o são. Obscenos!

E as pessoas? Os civis? Como diabo não entram as pessoas nas equações, nas análises, nos balanços analíticos daqueles que decidem e daqueles que analisam?

As pessoas entram nesta equação como números, em subtrações frias. Hoje, ontem e em todos os conflitos de que há memória. Mortos, feridos, refugiados, deslocados, migrantes, esfomeados, viúvos, órfãos, desempregados, desesperados.

Motivada por esta despersonalização dos conflitos, pela realidade das guerras “lá longe”, mas que pressenti que poderiam ser “cá perto”, por perceber que na realidade o lá longe e o cá perto não fazia qualquer diferença, porque as vítimas da crueldade da guerra eram sempre as mesmas, pessoas, o ser humano banal na sua luta diária banal, comecei a escrever o que demoraria mais de uma década a acabar – um livro sobre uma guerra em território nacional. Pelo meio, Susan Sontag, no seu Olhando o sofrimento dos outros faz-me perceber que, por mais que me esforce, não perceberei, jamais, o que as pessoas, aqueles que estão no meio de um conflito, sofrem, sentem. Perceber a minha ignorância, dá-me humildade. E a humildade anda de mãos dadas com a empatia.

 

“Um número e assim era a vida humana por aqueles dias. Um mero número numa equação que usava mais subtrações do que adições. Pensar que cada uma daquelas pessoas ali sentada a comer, cada uma daquelas pessoas lá fora, desde o recém-nascido aos idosos, homens e mulheres, civis e militares, rebeldes e não rebeldes, todos eles, sem exceção, nada mais eram  do que números. E numa fração de segundo poderiam transfigurar-se de um Um, num Zero, sendo que o transtorno causado por essa mudança não era para ali chamado. As equações não contemplavam sentimentos, os números não tinham nome nem passado e, claro, os Zeros nem futuro tinham.»

Vou para não ficar, Sónia Pereira

HHhH - Laurent Binet

O que aconteceu no passado, por lá ficou, calcinado, fossilizando na cadência do passar dos dias, das estações, dos anos, à espera que algum explorador, com meticulosas escavações arqueológicas, o traga novamente à luz do presente.


Mas nem sempre o passado adormece como uma criança despreocupada. Por vezes, estrebucha, luta na sua queda irremediável, lançando linhas de vida para o futuro. O seu aniquilamento, apesar de ser, em si, um fim, um ponto final, ecoará pelos tempos vindouros.


Lendo HHhH, quando estava a poucas páginas do final do livro, durante dias não consegui retomar a leitura que me levaria ao seu fim. O livro olhava-me da mesa de cabeceira e eu esquivava-me à sua interpelação. Eu sabia o que aquelas páginas retinham, a história que contavam, pois o livro fala de um episódio verídico, de pessoas reais, de momentos marcantes da nossa história recente que tiveram repercussões no nosso Agora.


Eu sabia, mas eu não queria ler, não queria ver a realidade ali escarrapachada. Certo dia, de livro na mão, como que desejei que a nossa história tivesse camadas de universos paralelos e que, ao virar da página, os dois paraquedistas checoslovacos, Cabčik e Kubiš, que em 1942 foram enviados em missão a Praga para matarem Heydrich, a besta loura, carniceiro do III Reich nazi, inventor da «solução final», conseguissem despachar o «carrasco de Praga», saindo incólumes, vivos e de saúde, sobrevivendo para nos contar pessoalmente os detalhes de tão arriscada operação.


Mas não foi isso que aconteceu. E se é certo que a nossa história está repleta de heróis que caíram de pé, alguns acabaram engolidos pelo esquecimento da rotina do tempo. Não esquecemos os vilões, os psicopatas, mas facilmente olvidamos os íntegros, aqueles que nos deram um presente.


O livro de Laurent Binet, HHhH (o cérebro de Himmler chama-se Heidrich), é uma espécie de homenagem aos heróis da operação Antropóide, que tinham como missão assassinar Reinhard Heydrich, figura proeminente nazi, considerado o homem mais perigoso do III Reich.


Numa escrita bastante original, o livro de Binet é também um ensaio sobre a literatura, sobre a abordagem literária aos factos históricos. Com a minha leitura terminada, o que sinto é que não foi um romance aquilo que li, mas sim algo híbrido entre a escrita literária, o ensaio sobre literatura, o diário de um autor atormentado e o relato histórico. As dúvidas do autor sobre como deve abordar as personagens, que na realidade não são personagens, mas pessoas reais, são explanadas durante o livro e o que chega ao leitor é esta vontade de não defraudar a memória daqueles que pereceram, contar a sua história sem falsificar a sua existência. Mas como passar ao leitor os medos, anseios, palavras ditas, frustrações sentidas por aqueles que já cá não estão para validar a veracidade de tais informações?!


Entre as batalhas pessoais do autor, as suas dúvidas e o anseio de uma homenagem à altura da importância das pessoas em questão, acho que conseguiu criar uma obra literária de valor, original, porque, acima de tudo, não é apenas um objeto literário, transborda em larga medida esse conceito.


Como apontamento final, ponto de resolução deste texto, deixo apenas umas quantas palavras que são um apanhado não só do livro, mas de cada minuto da nossa história e, assim, também da minha existência:


É surpreendente como o ser humano é capaz das coisas mais horrendas, dos atos mais inqualificáveis, de uma total ausência de empatia pelo próximo e, simultaneamente, dos atos de altruísmo mais inimagináveis, de resistir à tortura guardando em si a honra, a luta pelos valores irrevogáveis que o sustentam. A nossa história é isto, este puxar de corda entre uns e outros, entre seres monstruosos e seres de qualidades superiores, entre o prazer da dor infligida e o suportar estoico da dor sentida. Para os restantes de nós, resta o esquecimento, a rotina das horas que passam e se esgotam.

 

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HHhH, Laurent Binet, Sextante Editora.

O reality show de Karl Ove Knausgård

Prossigo a leitura do segundo volume de «A minha luta» de Karl Ove Knaurgård. Fenómeno editorial quando foi lançado, é fácil perceber o que causa esta atração por esta obra. Temos uma obra literária que se aproxima do leitor como se este, de certa forma, bisbilhotasse inadvertidamente e à socapa os diários de alguém que lhe é próximo. Karl Ove fala da sua vida, desde a infância à idade adulta, a morte do seu pai, a família, o nascimento dos filhos, a luta pela criação literária e a conciliação disso com a rotina de um homem casado com filhos.


Não se poderá chamar a este conjunto de quatro livros uma obra de ficção, mas também a classificação de autobiografia não lhe assenta com graciosidade. A obra é escrita como um desabafo, uma conversa com um Eu imaginário, e segue todos os preceitos de uma divagação sem normas, sem estrutura aparente, sem qualquer rigidez narrativa. Essa forma despojada de contar a sua história, faz com que ocorram todos aqueles tiques (propositados, certamente) de quando falamos com alguém muito próximo e lhe contamos alguma história — começamos a contar um qualquer episódio, mas facilmente nos perdemos em algum detalhe que nos transporta para um episódio totalmente diferente, até nos apercebermos que nos afastamos do nosso intento inicial e regressarmos.


A narrativa de Karl Ove está cheia disto, desta divagação que nos faz saltar da história de uma vizinha russa meia louca que ele encontra nas escadas do prédio para uma história passada há cinco anos. Este estratagema incute ao leitor a forte impressão de não estar a ler um livro, mas a ter uma conversa com o autor, transmite ainda a sensação da genuinidade daquilo que lhe é ali contado, como se ali nos estivesse a ser servido um Karl Ove que conseguimos espreitar, dissecar até ao âmago: conhecer fraquezas, taras, sonhos, frustrações, ambições. Tudo aquilo que nos torna humanos, mas que muitas vezes revestimos com uma grossa camada de verniz para melhor podermos viver em sociedade.

 

Havia apenas, por um lado, o pequeno personagem a que a auto-anulação me reduzia e, do outro lado, a minha extrema distância solitária. Entre estes dois pólos, decorria a minha vida de todos os dias. Talvez fosse por isso que se tornava para mim tão duro vivê-la. O dia-a-dia, com as suas obrigações e rotinas, era qualquer coisa que eu tinha de suportar, qualquer coisa que não me satisfazia, qualquer coisa que não tinha sentido para mim e não em fazia feliz. […] Portanto, a vida que eu vivia não era a minha própria vida. Tentava torná-la minha, era essa a minha luta, porque era sem dúvida isso que queria — mas fracassava, o desejo com que ansiava por outra coisa minava todos os meus esforços.
Página 68, A minha luta:2

 

No entanto, aquilo que é o mais atraente nesta obra, é também aquilo que ela tem de mais irritante. A verdade é que não estamos (falo de mim, enquanto leitora) totalmente preparados para ler, a cru, todo aquele tipo de pensamentos que também temos, mas que nunca, jamais, em tempo algum confessamos a alguém. E quando aquele que nos confessa os inconfessáveis é alguém real, um ser humano e não uma personagem de ficção, há um certo choque nessa leitura, um desconforto.


O facto de o autor confessar a atração sexual por várias mulheres quando empurra estrada abaixo o carrinho com a sua filha e tendo em casa a mulher à espera com a sua bebé, é desconcertante. Quando, estando descansado a ler um livro num café e apesar de ter passado muito da hora em que prometera voltar a casa, admite que não lhe apetece regressar para junto da família, é revoltante. E quando, perante um certo olhar recriminatório de uma empregada da caixa do supermercado (por não ter comprado um saco de compras) ele diz que não se importava com o que aquela pessoa pensava dele, porque ela era gorda, tudo em mim, como leitora, sofre um certo choque.


E, de resto, que me importava o que a empregada pudesse pensar de mim? Era tão gorda.
Página 102, A minha luta:2


Todos nós já tivemos pensamentos que surgem impulsionados por estereótipos e preconceitos vários. Antes de os confessarmos, esses pensamentos sofrem uma recriminação interna, porque os nossos códigos de ética e moral os refreiam. Jamais nos vemos a oralizar certas mediocridades que o nosso cérebro criou. Karl Ove fá-lo, como se tivéssemos um acesso privilegiado ao seu pensar antes de qualquer filtro ético atuar. E essa opção narrativa serve para expor as fragilidades, mas também as arrogâncias, os preconceitos. E se isso nos aproxima do autor como raramente nos aproximamos de alguém, sentimos ainda uma certa repulsa associada a essa aproximação. Ninguém é perfeito, sei-o, mas vê-lo escarrapachado assim, nas páginas de um livro, é desconfortável.

 

Se, por um lado, há originalidade na forma como Knaugård expõe a sua luta, por outro, por vezes sinto que seguimos um certo caminho de reality show, como se assistíssemos pacientemente a um personagem (que embora real, também tem muito de virtual) fechado dentro de uma casa, a viver a sua vida, com todas as grandezas e mesquinhices a que as vidas têm direito, tudo em frente aos nossos olhos.


E se essa sensação de exposição básica de reality show não vai aos extremos, é porque Karl Ove é hábil na sua criação literária. Consigo perceber o que ele pretende, consigo perceber o que ele me quer dizer, mas custa-me a aceitá-lo — «És como eu. Olha bem para ti. Não te esquives à observação. Não floreies o quadro com adereços desnecessários. Isto és tu e eu consigo vê-lo.»

 

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A minha luta:2, Um homem apaixonado — Karl Ove Knausgard, editora Relógio d'Água.

Mind the gap

Foi uma longa ausência, eu sei. Uma ausência imposta e, simultaneamente, autoinfligida. Se por um lado os meus deveres maternais me deixaram pouco tempo para a blogosfera, por outro lado a questão da relevância disto, deste espaço, também me pressionou à reflexão, ao afastamento.

 

Durante estes meses de verão nos quais raramente por aqui passei estive um mês com um reduzidíssimo acesso à internet. Férias na praia sem redes sociais, sem notícias online, sem email, sem tudo aquilo que hoje em dia se tornou indispensável para qualquer ser humano «normal». Nos primeiros dias dou por mim a pegar incessantemente no telemóvel, como uma drogadita em abstinência, a deslizar o dedo e a sentir um baque por perceber que aqueles eram movimentos inúteis. A imensidão cibernética estava-me vedada. Mas na mala esperavam os passatempos antiquados, mas que teriam de servir: uma generosa pilha de livros.

 

De entre outros, li dois livros de Svetlana Alexievich — Vozes de Chernobyl e A guerra não tem rosto de mulher (escreverei amanhã um outro texto sobre estas duas obras da autora bielorussa). Se hoje falei deles neste texto de regresso, não foi por pretender dissecar o conteúdo dos mesmos, mas pelo impacto destas leituras a seco. Com o mar a murmurejar em pano de fundo, com a areia entre os dedos dos pés ou deitada na cama à noite, nunca uma leitura me pareceu tão pura, tão clarividente como as leituras destas férias. O afastamento do caos informativo, dos casos diários que geram revolta e logo caiem no esquecimento, das opiniões diversas contraditórias, os dramas políticos nacionais e internacionais, deixou em mim um tremendo espaço vazio que permitiu fluir a leitura com uma profundidade nunca antes conseguida.

 

Lia os testemunhos de mulheres que combateram na segunda guerra mundial, as atrocidades contadas na primeira pessoa, o entusiasmo em poder ajudar a nação, emoção que não raras vezes redundava em morte ou dano permanente, e esta experiencia não foi apenas uma leitura, foi uma conversa com pessoas de um passado coletivo, uma conversa de uma lucidez atroz, mas poderosa, bela. Parava, olhava o mar, e tudo à minha volta confluía para aquelas palavras encerradas no livro, um movimento cósmico, universal, em direção à clarividência daquelas linhas, daqueles testemunhos.

 

Quando regressei à civilização, quando a internet surgiu como o copo de vinho cheio frente ao bêbedo em ressaca, dei por mim a questionar-me, a dissertar sobre a experiência de abstinência informativa: a informação é preciosa. Nunca me ouvirão fazer uma apologia da ignorância (embora haja uma quase inerente felicidade a ela associada). No entanto, será que haverá um ponto em que aquilo que consumimos deixa de ser informativo e passa a ser apenas mais do mesmo, redundância constante, um encher de chouriços que em nada contribuiu para o esclarecimento, mas antes entorpece, anestesia pela repetição, torna-nos trôpegos perante a realidade?

 

O meu filho via um qualquer programa infantil na televisão e veio contar-me que os dodôs, já extintos, engoliam pedras (na goela) para ajudar à digestão. Daí nasceu este paralelismo básico, uma metáfora elementar, mas ainda assim válida: teremos nós de engolir tamanha quantidade de pedras para conseguirmos «comer», pelo meio, alguma informação de jeito? E não estará tal quantidade de pedregulhos a pesar-nos em demasia, a atrofiar a forma como passamos a fruir a informação, novas leituras, o mundo que nos rodeia num geral?

 

Talvez uns passos atrás, um ligeiro afastamento nos permita ver esta nossa realidade de agora com maior nitidez, inserida num todo e não excluída e vendida como única, pertinente, exclusiva.

 

Amanhã regressarei com Svetlana. Estes dois livros merecem mais do que uma pequena referência fugaz num post de regresso à blogosfera.

Feminazi

Tinha pensado em escrever sobre Marina Abramović e sobre uma das suas performances mais emblemáticas, mas uma mensagem no blog mudou o rumo da escrita de hoje. Marina ficará para amanhã.

 

Escrevi no sábado um texto sobre o jornalismo numa associação a um artigo do Observador sobre a esposa de Macron, Brigitte Trogneux. O texto era uma denúncia da forma enviesada, sexista, como Brigitte era referida, funcionando como demonstração da maneira como as mulheres ainda são vistas na sociedade, como, apesar de mudanças várias, a mulher ainda é referida como certo acessório masculino. Não acho que tenha sido o meu mais brilhante texto, longe disso. Estava irritada com o artigo (a irritação nunca é grande conselheira), o meu filho questionava-me sobre coisas várias enquanto eu tentava escrever, em suma, pouca concentração, alguma irritação, e nasceu um texto. Penso que tenha sido esse mesmo texto o causador da mensagem que recebi de um qualquer anónimo, que me apelidou de feminazi — tenho de dar créditos humorísticos à designação. É genial, embora tenha perdido certa graça devido à repetição exaustiva:

 

porque será que se fala na primeira profissão do mundo com a mulher como fornecedora de servico? a culpa é sempre do homem.....faltam espelhos em casa? ou já não suporta olhar para eles? talvez haja uma coincidencia e alguma identificacao na menopausa...mais uma feminazi.....

 

Toda a mudança de uma hierarquia instituída vem sempre acompanhada de medo, de uma certa inquietação relativa à disrupção iminente. Quando o esclavagismo chegou ao fim, a integração dos antigos escravos trouxe inquietação à raça que dominava, quando uma religião começa a ganhar crentes numa determinada região, isso traz uma inquietação que pode levar à revolta, à violência, dos crentes que antes viam a sua religião como dominante naquele local, quando as mulheres entraram em força no mercado de trabalho, isso trouxe uma insegurança aos homens, que antes dominavam sem questionamento esse mesmo mercado. E a história está cheia de disrupções e consequentes medos.

 

Dito isto, não sinto choque por ter homens à minha volta que se dirijam a mim da forma como este anónimo fez. As mudanças recentes em alguns países no que aos direitos da mulher diz respeito trazem, inevitavelmente, mudanças numa hierarquia, numa organização social que dura há séculos e, como qualquer mudança, esta também é geradora de inquietações. Ver o domínio ameaçado, uma ordem instituída que parecia garantida ser abanada pelas bases, fragiliza sempre e, quanto menor a capacidade de refletir, tentar ver o mundo pelos olhos do outro, tentar perscrutar o futuro sob a lupa da mudança, menor a tolerância para essa mudança e maior a revolta.

 

Há um século atrás, quando as mulheres se começaram a afirmar, entraram na universidade, se juntaram em grupos de reflexão, escreveram livros sobre a sua condição de mulheres, saíram ao prelo milhares de livros de ataque à mulher escritos por homens, livros que a tentavam reduzir à esfera doméstica, a uma submissão ao homem, a uma condição de muleta do homem ditada por deus. Na altura, um dos argumentos esgrimido por alguns era a inferior intelectualidade, a menor inteligência da mulher. Um século passado, esse argumento já não resulta, foi descartado e, faltando algo de mais sólido, retrocede-se. Como se vê pelo comentário deste anónimo, volta-se ao básico: uma sugestão da minha pouca beleza, da minha insatisfação pelo o que o espelho reflete, da minha frustração por estar na menopausa (lá chegarei, se, entretanto, não bater a caçoleta).

 

Quando lia o livro de Yuval Noah Harari chamado Sapiens, onde o autor escreve sobre a evolução do ser humano ao longo dos tempos, a dada altura a questão da sociedade patriarcal é discutida. A pergunta que continua a persistir no ramo da antropologia é: porque é que, talvez desde os primórdios da evolução do homo sapiens, sempre se viveu numa hierarquia, numa sociedade patriarcal e uma organização matriarcal num foi opção? A opinião dos antropólogos segue em diversas vertentes: alguns julgam que a força muscular, geralmente maior nos homens, ditou esta organização; outros acham que não foi tanto a força, mas a agressividade. O homem sempre teve, de forma geral, um temperamento mais agressivo, o que poderá ter condicionado de forma primitiva a organização social; outros antropólogos referem ainda um possível gene patriarcal, algo intrínseco ao ser humano, que nos leva irremediavelmente a uma organização patriarcal.

 

Na realidade, não há um consenso, não há uma resposta clara que justifique o nosso caminho de milénios que nos trouxe, enquanto seres humanos, até ao dia de hoje, nesta organização social tal como a conhecemos. No entanto, tudo o que conseguirmos fazer, mudar, revolucionar, será parte integrante do que somos, natural, parte da nossa evolução. Dito isto, esta luta das mulheres pela equidade de direitos, por um olhar de igual para igual, pode trazer ansiedade àqueles que, numa organização hierárquica, não estavam habituados a um olhar olhos nos olhos, mas antes a uma olhar submisso, mas apesar desse medo e inquietação, é um movimento natural evolutivo.

Memórias históricas reprimidas — o massacre dos judeus em Lisboa em 1506

511 anos separam o dia de uma matança brutal na capital portuguesa, uma nódoa histórica difícil de enxaguar, do dia de hoje. Uma enormidade de tempo, mas, paradoxalmente, não o tempo suficiente para que as gerações que devieram aprendessem a não alimentar o ódio com os seus medos.

 

A seca, a fome e, não bastando, a praga da peste, assolavam Portugal em 1506. Alguns anos antes dessa data, entraram no país, expulsos de Espanha, dezenas de milhares de judeus, ao abrigo da tolerância do monarca português para com a comunidade judaica. A pressão exercida pelos nuestros hermanos levou, no entanto, a que os recém-chegados fossem obrigados posteriormente a converter-se ao cristianismo. Seria isso o suficiente para que a comunidade local os olhasse de igual para igual?

 

No convento de S. Domingos em Lisboa, no dia 19 de abril de 1506, rezava-se pelo fim dos tormentos que assolavam o país, rezava-se pelo fim da peste, pela chegada da abundância que matasse a fome. Um reflexo, uma alucinação momentânea, um qualquer efeito luminoso, levou alguém a exclamar ter visto o rosto de Cristo iluminado no altar. Um sinal divino de misericórdia, um milagre, portanto. No meio de uma atmosfera de devoção alguém ousou, na sua inocência, questionar aquele assombro luminoso. Um cristão novo tentou explicar que aquele suposto milagre nada mais seria do que um reflexo promovido por uma das fontes de luz no local. E naquele momento, naquele local, iniciou-se um dos episódios mais negros da nossa história. Aquele que ousou questionar foi espancado ali mesmo até à morte e, aquela multidão enraivecida, movida pelo ódio, contagiou toda a cidade que, nos dias seguintes, perseguiu, torturou, espancou, matou milhares de judeus, estando o número total de mortos estimado, por alguns historiadores, em 4000.

 

A ausência do rei, que teria ido a Beja visitar a mãe, a incitação dos dominicanos, que viam nos judeus o bode expiatório perfeito para a causa da fome e da peste, as suas promessas de absolvição dos pecados para aqueles que matassem os hereges, o ódio recalcada da própria população que via nos judeus, aqueles que não pertenciam, que eram exteriores ao grupo, a causa da desgraça que assolava as suas vidas, todos estes grandes pormenores serviram de acendalha à histeria assassina dos três dias de matança. Perseguições, espancamentos, fogueiras improvisadas no Rossio, onde pessoas foram queimadas à moda da inquisição (que ainda estava para vir), todo um cenário dantesco impossível de ser detido pelas autoridades locais, que só acabou quando a fúria chegou ao ponto de saciedade.

 

Olhando para a atualidade, sente-se este estranho déjà vu histórico. Há uma espécie de atração fatal pela culpabilização dos recém-chegados, daqueles que supostamente não pertencem ao grupo, à tribo e todos os males do mundo lhes podem ser atribuídos, desde aqueles que poderão ter algum tipo de relação causa/efeito, àqueles completamente aleatórios ou de ordem mais mística e abstrata.

 

Entre 1506 e hoje, nada mudou. Não queimamos pessoas em praças públicas, mas somos hábeis em «queimá-las» em lume brando, numa sopa de ódio, acusações, medo, humilhações e exclusão.

 

E talvez doa olhar para trás e perceber que somos descendentes de uma horda de assassinos, de facínoras sanguinários, de pessoas cujos medos alimentaram um ódio tal que as levou a ações irracionais de grande violência. Mas é essa a realidade. A única maneira de impedir a repetição dos erros é ter uma plena consciência desses mesmos erros, interiorizar as falhas, olhar abertamente ao espelho o eu social, histórico, cultural destruidor. Enquanto povo, perseguimos, massacrámos, matámos, fomos dominados por um ódio cego infundado. Não esquecer, reavivar a memória, serve como um alerta constante para o que há de vir.

 

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 Lisboa, 19 de Abril de 1506 - O massacre dos Judeus, de Susana Bastos Mateus e Paulo Mendes Pinto, Alêtheia Editores

 

Tão natural como a água

O meu filho perguntou-me há uns tempos, mal entrou no carro quando o fui buscar à escola, se um homem podia casar com um homem. Alguma conversa na escola lhe tinha exacerbado a curiosidade. Respondi que sim. Um homem podia namorar e casar com um homem e uma mulher podia namorar e casar com uma mulher. A resposta não lhe causou surpresa e bastou-lhe. Não fez mais perguntas.

 

Na semana passada fomos à biblioteca buscar uns quantos livros para lermos em casa. Quando líamos à noite um desses livros que trouxéramos da biblioteca, a meio da história e levado pelos acontecimentos da narrativa, o meu filho sugere: esta princesa vai-se casar com a menina que a salvou. Eu, já com dezenas de livros infantis lidos ao longo da vida, supus que a dada altura aparecesse por ali um príncipe, um cavaleiro e acabasse a casar, como de costume, com a princesa. Disse ao meu filho: acho que não. A história ainda não acabou.

 

O certo é que as duas, princesa e menina salvadora, tal como supôs o meu filho, acabaram mesmo por se casar. O meu filho exultou de contentamento por ter acertado nas suas previsões e eu exultei, silenciosamente, por um livro infantil me ter conseguido surpreender. Embora na minha exultação houvesse uma pequena recriminação. Porque é que não considerei aquela opção, a do casamento entre as duas meninas?

 

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Titiritesa, de Xerardo Quintiá e Maurizio A.C. Quarello, OQO Editora

 

Em suma, todos os nossos constrangimentos no que diz respeito à orientação sexual dos outros seres humanos, à forma como as crianças lidam com isso, são fruto da nossa cabeça preconceituosa. Para uma criança, uma pequena explicação basta, não há dilemas dominados por dogmas religiosos, preconceitos enraizados, há apenas um campo fértil à espera de ser semeado da melhor maneira.

Para as crianças, o amor, seja ele como for, é tão natural como a água.

O crânio da gruta da Aroeira — murmúrios ancestrais

Decorria o ano de 2014 quando uma equipa do Centro de Arqueologia da Universidade de Lisboa descobriu um crânio numa gruta da Aroeira onde estavam a trabalhar. Uma ferramenta que escavava a rocha perfurou o que, surpreendentemente, se descobriria ser o mais antigo fóssil humano encontrado na Península Ibérica e um dos mais antigos encontrados no continente europeu. Fossilizado num bloco de pedra, foram precisos dois anos até ser possível completar a extração do crânio. Com a datação feita, com a análise dos vários utensílios e restos fossilizados de animais que ali se encontravam, estima-se assim que o achado tenha entre 395.000 a 430.000 anos. Esta descoberta arqueológica vem, assim, acrescentar mais uma peça ao puzzle que é a evolução humana e a evolução dos vários hominídeos ao longo da história. Mas este puzzle evolutivo, com cada nova descoberta, não ganha clareza, antes expande-se, ganha complexidade e traz novas questões.

 

A forma simplista como se classificava os achados arqueológicos, associando determinadas características morfológicas a restos humanos com determinada datação, atribuindo-lhes uma espécie, tem vindo a cair por terra a cada nova descoberta. No crânio humano da gruta da Aroeira é possível encontrar características morfológicas que estão ligadas aos neandertais arcaicos, mas também a outros achados fósseis classificados de diferente maneira e ainda características completamente novas, exclusivas deste fóssil humano.

Crânio aroeira.jpg

Crânio humano encontrado na gruta da Aroeira.

 

É de referir que esta descoberta surpreendente não foi a primeira descoberta impactante liderada pelo arqueólogo João Zilhão. Em 1998, foi descoberto no vale do Lapedo, perto de Leiria, o esqueleto de uma criança com cerca de quatro anos que viveu naquele local há 25.000 anos. Também esta descoberta deixou o mundo da arqueologia em polvorosa devido às características morfológicas únicas daquele achado. Havia traços morfológicos homo sapiens, mas também traços característicos neandertais, levantando a questão de uma possível miscigenação entre as duas espécies. Esta questão, descartada até à época, é atualmente aceite e comprovável. Embora, na altura, tenha levado a acesos debates académicos e tenha feito correr muita tinta em publicações científicas. Sobre este tema, aconselho o livro «Lapedo — uma criança no vale» do falecido escritor João Aguiar. É um olhar exterior ao mundo académico da arqueologia (João Aguiar era escritor e jornalista), acessível a curiosos sem formação na área.

 

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Lapedo, uma criança no vale, de João Aguiar, Edições ASA, uma obra de bastante interesse sobre as descobertas no vale do Lapedo em 1998.

 

Para mim, uma completa leiga na matéria, mas alguém movida pela curiosidade, estes achados arqueológicos revestem-se de grande interesse. Não me interessa particularmente saber se nós, homo sapiens, temos herança genética deste ou daquele hominídeo, mas é um pouco como se procurasse no passado remoto a génese do nosso comportamento atual. O que terá feito de nós, homo sapiens modernos, a espécie triunfante sobre outras espécies humanas, quais as razões que alavancaram o nosso sucesso e o porquê do aniquilamento, em vários locais distintos do globo, das outras espécies humanas (como por exemplos os neandertais na Europa)? A resposta a todas estas questões são o início da nossa caracterização enquanto humanos, porque inevitavelmente seremos hoje um eco nítido dos nossos ancestrais, um produto da nossa evolução.

 

Em outubro deste ano teremos em exposição no Museu Nacional de Arqueologia esta descoberta da gruta da Aroeira, assim como também a criança do Lapedo. Será uma exposição a não perder. Deixo ainda aqui o link dos artigos do jornal Público e do site da Universidade de Lisboa, que fornecem mais detalhes sobre a surpreendente descoberta da gruta da Aroeira.

Jo Nesbø — a arte dos excessos

Spoiler alert

 

Quanto pode aguentar um homem, um personagem, para que as ocorrências da sua vida possam ser consideradas excessivas, inverosímeis?

 

Enquanto leitores, nomeadamente de livros policiais, somos, página após página, manipulados a ultrapassar a barreira da verosimilhança através da mestria do escritor que elaborou aquela trama.

 

Não me causa transtorno ler um policial de Yrsa Sigurdardóttir e Arnaldur Indridason, ambos escritores islandeses, apesar de conhecer a estatística de assassinatos na Islândia e perceber que qualquer história sobre um atarefado detetive de homicídios em Reykjavík será pura fantasia (0 a 2 homicídios no país por ano não será motivo para tanta canseira). Não custa engolir que um pacato país como a Noruega tenha o azar de levar com dois ou três assassinos em série num curto período de tempo. A forma como a mentira se torna verosímil é, em si, prova da capacidade do autor que me guia pelas páginas daquele policial.

 

Mas será que haverá um ponto de rutura, um momento em que o excesso, as provações de um personagem alcançam o ponto da inverosimilhança?

 

Acabei de ler o livro Polícia, de Jo Nesbø, o último livro traduzido em Portugal da saga do detetive Harry Hole, que já conta com 10 livros. Confesso que ansiava com alguma expetativa esta leitura. O último livro deixara a forte impressão, se não mesmo evidência, que o casmurro Hole tinha morrido às mãos do seu enteado, sendo aquelas as últimas páginas do personagem.

 

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Polícia, de Jo Nesbø, Editora D. Quixote

 

Ao décimo primeiro livro de Nesbø já não me posso escudar em desculpas do não conhecimento sobre a quase obscena manipulação que o escritor faz dos leitores. Eu sei como ele funciona e, embora mergulhada numa certa vergonha, eu gosto. Todo o livro é montado como um gigantesco puzzle onde cada peça tem de encaixar na perfeição, mas onde certas peças foram desenhadas para iludir, criar falsas impressões, causar suspeições infundadas. Com isto, o leitor passa a quase totalidade do livro «com o coração nas mãos», num estado de pura exaltação, emoções que ajudam a esconder os detalhes importantes por trás da pirotecnia da manipulação e, mais fundamental ainda, prendem o leitor ao livro, tornando-se impossível deixar aquele calhamaço abandonado a meio. A leitura já não é propriamente prazerosa, é quase doentia, compulsiva, mas talvez estes atributos sejam, de alguma forma, intrínsecos à leitura de romances policiais.

 

No entanto, quando ontem acabei o livro, depois de uma semana de leitura frenética e depois de uma década de leitura de Nesbø e dos livros de Harry Hole, fiquei mergulhada numa espécie de irritação. Como se falasse com Nesbø, murmurava-lhe: «raios, permito-te a manipulação, permito-te que me enganes consecutivamente, mas não achas que enough is enough

 

Harry Hole, ao longo da dezena de livros, já foi diversas vezes baleado, esfaqueado, sovado, sobreviveu a uma bomba, a uma dilaceração gravíssima do rosto e no meio de tanta catástrofe física, Harry continua vivo, embora bastante escaqueirado. Além das provações físicas, vários colegas próximos de Harry foram assassinados, personagens que, na altura, julgávamos impossível o autor ter coragem de «matar», dado a proximidade ao personagem principal. Também a sua família mais próxima (namorada e enteado) já sofreram às mãos de assassinos, ficando a um piscar de olhos de uma morte horrível.

 

E se durante a leitura, devido ao ritmo narrativo acelerado e à habilidade do autor, todos estes terrores excessivos passam no crivo da verosimilhança, ontem, quando acabei a leitura, senti que Nesbø tinha ultrapassado a linha do excesso. Suporto que, naquelas páginas, alguém cometa os mais atrozes crimes, mas já me custa a engolir que um detetive esteja à beira da morte certa de cem em cem páginas, que aquela vida esteja tão cheia de provações, algumas delas aparentemente impossíveis de ultrapassar, mas que, ainda assim, aquele personagem sobreviva (apesar de baleado, esfaqueado, sovado, explodido) e, mesmo que bêbedo ou drogado, prossiga com a sua vida.

 

E, embrulhada num sentimento algo ambíguo, desejei que Hole tivesse morrido, que Nesbø tivesse tido a coragem de o matar. Mas Hole sobreviveu a mais um livro e apanhou os maus da fita.

 

Já eu, leitora, não tenho bem a certeza se desta vez sobrevivi a Nesbø.

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