O mundo é um lugar imenso e simultaneamente uma pequena vilória provinciana. Sabemos o que certas celebridades do outro lado do mundo comem e bebem, de que gostam, de que falam, com quem fazem amor e a quem odeiam e sabemo-lo como qualquer bom coscuvilheiro da aldeia. Mas, num paradoxo com esta aparente proximidade (de um eu, tu e eles, transformados com facilidade num nós), é possível que alguém se esfume sem deixar rasto, que alguém que ontem era, hoje já não o seja. É possível que um Ele se mantenha um Ele, longe e teimosamente afastado de Nós.
Sigmund Krähe é um compositor alemão. Quando digo é, no presente do indicativo, estou a dar um grande salto de fé assumindo que ainda vive, que respira entre nós.
Até há um ano e tal atrás, seria possível encontrar no youtube centenas de composições suas, num canal em nome próprio, que não cheguei a conhecer. A maioria das composições são para órgão de tubos – dramáticas, obscuras, mas não demasiado rebuscadas. Algumas pecarão mesmo pela simplicidade, assemelhando-se a bandas sonoras de filmes de mistério e fantasia. Demasiado sintetizadas, num registo já ouvido? Talvez. Mas ainda assim com um travo épico que, pessoalmente, me fascina.
Nada de novo no mundo. Um artista a usar uma plataforma global para difundir a sua música. Um nome associado a centenas de registos musicais e nada mais.
Até há um ano. De um dia para o outro, Sigmund e a sua música desapareceram. O canal desapareceu do Youtube, apagado pelo autor ou pela plataforma. A partir daí começa a especulação: o que acontecera a Krähe e à sua música?
Como pode alguém ser e não ser? Ser apenas um nome, ser centenas de peças musicais, ser ouvido por milhares de pessoas, ser comentado, apreciado e também desdenhado e, num segundo, deixar de o ser? Deixar de ser para Nós, deixar de existir enquanto ser global, enquanto artista, desvanecer como um Houdini?
Uma das minhas professoras de mestrado, falando dos escritos dos alunos mantidos na «gaveta», diz-nos provocadoramente que aquilo que fazemos não é arte. E não fala da qualidade do que escrevemos, pois desconhece se a temos ou não ou sequer se tal coisa, a qualidade, é coisa quantificável.
Do que ela fala é da necessidade de haver uma comunidade que usufrui, que está envolvida na experiência, no ritual de fruição de uma peça de arte. Sem o outro não há arte.
Sigmund Krähe tinha o outro, o seu público, fazia arte, mas decidiu (decidiram por ele, morreu, enlouqueceu, aborreceu-se?) subtrair o estatuto de arte àquilo que fazia. Desaparecer com tudo. Sem o seu público, acabou-se a arte.
Acabou-se?
Bem, muitos dos seus seguidores tinham guardado uma substancial parte das suas composições e, chocados com a descoberta do canal apagado, com o passar dos dias e nada acontecer (um regresso noutro canal, noutra plataforma, qualquer coisa), decidiram criar canais para fazer reupload das músicas que tinham guardado para usufruto pessoal.
Um ano passado, são vários os canais com a música de Krähe e ninguém a vir reclamar direitos autorais da mesma. A arte perde o direito à maternidade mal nasce, torna-se pública, anda de mãos em mãos, corpo perdido numa orgia.
Mas, será correto? Se a vontade de um autor é desaparecer, ele e a sua arte, será correto ressuscitá-la para o mundo contra a sua vontade?
Pergunto sem malícia, sem ter uma resposta em mente. Porque se escrevo sobre isto é porque ouvi as músicas lançadas ao mundo por outras mãos que não as do compositor. Mas há em mim o egoísmo de achar que aquilo que faço, que crio, embora precisando dos outros para SER, é maternalmente meu.
Ao revisitar um lugar da nossa vida, talvez anos depois da nossa última visita, fragmentos da nossa presença antiga reverberam pelo tempo. Evocamos sem esfoço sensações, emoções sentidas naquele local há anos, em nós materializam-se odores, sabores, como se o tempo não fosse tempo e ali, à nossa frente, se tivesse aberto uma porta física para o passado. Sentimos o odor de um cozinhado, o cheiro de uma planta, de uma flor, que parece só ali existir e um cheiro faz-nos viajar, ora aos trambolhões, numa estrada esburacada de ansiedade, ora ao som de um hino nostálgico que nos faz sorrir.
Através deste portal mágico, a evocação de uma conversa, das pessoas que nela estavam envolvidas e do cenário onde esta se desenrolou, com todos os detalhes cénicos, tudo isto aterra com estrondo ali à nossa frente.
Os espaços nunca são só espaços e mesmo quando são espaços novos, nunca visitados antes por mim, têm em si a tatuagem de todas as presenças antigas, os ecos da sua história, como um organismo vivo que se alimenta de tempo. Do tempo de cada pessoa, animal, planta e árvore que por ali nasceu, cresceu e morreu.
Mas e o que acontece quando a evocação não é real? Quando aquilo que se materializa ali à nossa frente não existe, nunca existiu em mais lado nenhum a não ser na nossa cabeça e num documento word gravado num disco rígido de um computador?
Num passeio de fim de semana, regressei a um local onde já não ia há anos, mas que revisito com frequência, não fisicamente, mas através de palavras escritas, de uma história inventada que se desenrola naquele lugar real.
Centenas de pessoas enchiam o espaço, num evento automobilístico, mas para cada lado que olhava, apenas as via, às minhas personagens. Fantasmas que faziam desaparecer tudo o resto.
Os dois homens sentados nos degraus exteriores do museu a lerem uma carta, de dedos trémulos, pela emoção daquilo que liam e pela presença um do outro. Só os dois, na escadaria larga, diluindo todas as presenças do agora numa névoa.
Museu do Caramulo
E entre conversas cruzadas dos visitantes, roncos exibicionistas de ferraris, a voz do speaker do evento a invadir tudo através dos altifalantes, ainda assim as conseguia ouvir, às minhas personagens.
Salvador a traduzir para inglês um carta para o outro, ali a seu lado, a entender. E entre palavras que não eram as dele, pois aquela carta não era de nenhum dos dois, a sua cadência, a sua entoação vertia para Alexander tudo o que lhe ia na alma, o medo, a ansiedade, o estrondo da paixão, a emoção da novidade de alguém o desejar, de o proteger.
Quando me dirigi para a zona das partidas da corrida automobilística, onde cada carro com arranques espalhafatosos tentava fazer mais barulho do que o anterior, porque barulho era excitação, era exaltação, era uma plateia ao rubro, vi o hotel à minha frente, no outro lado da estrada, na sua graça de edifício antigo.
Pressenti a presença das minhas personagens atrás das cortinas de uma das janelas, presenças eufóricas pela descoberta do amor. E os seus murmúrios lânguidos, os seus beijos sôfregos, os seus suspiros excitados abafavam os grunhidos toscos dos motores, na antecipação do arranque e subida da rampa.
Quando depois apareceu o avião para fazer acrobacias aéreas, voos em parafuso, voos invertidos, voos a baixa altitude, a sua passagem a riscar o céu azul, senti-me colapsar pelo medo da «minha» Alexandra.
Quando ela viu os aviões de combate em aproximação ao edifício devoluto, o antigo sanatório na serra, local onde ela julgava que o irmão estava escondido, o desespero dominou-a. Sentia-se desesperada e impotente: ela, uma adolescente, seria incapaz de travar o que aquelas máquinas de guerra tinham vindo ali fazer: destruir, reduzir a escombros um edifício e os que lá estivessem dentro.
O avião de acrobacias sobrevoava o museu, o hotel, a serra, a baixa altitude e em mim, no meu peito, ribombavam os batimentos cardíacos aflitos da minha personagem. Os medos dela, as suas desilusões, foram, por momentos, os meus também. Em mim, tal como a ela, nada resta. Uma vida em escombros, uma vida onde se empilham corpos e perdas.
E ali estava eu num espaço que me fez evocar momentos, emoções, sentimentos, palavras de pessoas que não existem. E como é que é possível que algo que não é, se faça pressentir de forma tão forte, tão intensa?! Como é que algo que nunca aconteceu pode rasgar espaço e tempo, pode estrebuchar na memória, pode fazer doer?
Passaram anos, um livro guardado numa gaveta, numa cloud, como um génio numa lâmpada, mas as suas personagens vivem, como fantasmas numa casa assombrada, numa repetição contínua de uma história, numa luta para se escaparem de uma dimensão que é a delas, mas que aos seus olhos e aos meus, não lhes chega.
Quanto a mim, aquela que as criou, talvez precise de um exorcismo destas personagens, de lhes fechar o portal, de as deixar morrer na dimensão a que pertencem.
O que me leva a comprar um livro específico nem sempre será a magnificente mestria do seu escritor, o resumo apelativo da história na contracapa, a resenha positiva de um qualquer crítico literário num jornal ou revista de referência ou a futilidade (ou não) de uma capa atrativa. Rejo-me, não raras vezes, por desejos literários obscuros. Desejos obscuros que me levam a procurar «As memórias de Adriano» de Youcenar, sem que o colosso que Marguerite é seja importante nessa escolha, ou ainda, neste caso, procurar «Pode um desejo infinito», sem que tenha presente toda a obra de traduções e ensaios premiados de Frederico Lourenço.
Chamo o meu interesse literário de obscuro, porque não o consigo realmente compreender. O adjetivo nada tem de pejorativo, é só demonstrativo da escuridão das suas razões. Desde a minha adolescência (e tenho agora 43 anos) que sou complente fascinada pela iconografia gay, algo completamente deslocado da minha realidade – uma mulher heterossexual, nascida de uma típica família «tradicional» numa pequena localidade, do mais banal que a vossa imaginação possa desenhar na vossa mente. E se será natural que as pessoas LGBT procurem representatividade naquilo que leem, eu não sei porque procuro, porque comecei a procurar, porque continuo passados trinta anos a fazê-lo. Na minha mente arranjo algumas justificações ensaísticas, fundamentações de grande complexidade psicológica, camadas e camadas de desejos dissecados, de uma pessoa desmontada em peças, mas ainda assim nada de tangível. Talvez chamá-lo, a este desejo por toda e qualquer representação da cultura, iconografia homossexual, de obscuro, seja, afinal, correto e o que baste para o classificar.
Mas não estarei sozinha. Talvez um dia comece por conversar com as adolescentes que hoje devoram as recém-chegadas traduções dos livros de Alice Oseman, «Hearstopper», que deliram com a série da Netflix com o mesmo nome ou que idolatram a série «Young Royals» e que impulsionam a chegada, tanto ao mercado editorial como ao audiovisual, de cada vez mais obras de temática LGBT.
Pode um desejo imenso, Frederico Lourenço, Quetzal, 2022
Mas de volta a Frederico Lourenço, acompanho-o desde há uns tempos nas redes sociais, embora tudo o que lera dele fosse apenas os textos que ali publicava. Voyeurista, como sempre sou daqueles que admiro, nunca comentei nada naqueles espaços, sempre no receio de que a minha ignorância fosse ofensiva. E por vezes, é-o de facto. Quando ele publicitou uma nova reedição da sua obra «Pode um desejo imenso», obra publicada inicialmente em 2002, todos os volumes iniciados pousados na minha mesa-de-cabeceira, por lá teriam de ficar enjeitados por mais um tempo.
O livro, que tem uma capa belíssima (e não há nada de fútil na beleza de uma capa de um livro), conta a história de um professor universitário, Nuno Galvão, camoniano de paixão, que a dada altura desenvolve um fascínio, uma paixão platónica, por um dos seus alunos, Filipe. Esta paixão é como um paralelo, um reflexo da história do próprio Luís de camões e de D. António de Noronha, de quem o poeta era perceptor.
O livro constrói-se com a história de Nuno, a preparação da sua comunicação para as jornadas sobre Camões na universidade, a aproximação a Filipe, sendo que depois ruma até ao passado, até à altura em que Nuno estava na mesma posição de Filipe, como estudante, também ele mergulhado nas dúvidas e amores exaltados próprios da idade, focado, tal como no presente, na lírica de Camões, e onde vemos a gênese de outras personagens, colegas de Nuno, personagens que marcam a parte central do livro e que alicerçam o seu desenvolvimento para o desenlace final.
Na parte final, um regresso à atualidade, com todas as suas perdas trágicas e possíveis recomeços.
Li o livro num ápice e poderia catalogá-lo como um verdadeiro page turner, sem que com isso esteja a dizer que é um livro de fácil leitura. A prosa de frederico Lourenço é fluente, mas com muitas referências intertextuais que, confesso, não terei totalmente captado com toda a certeza. Na parte inicial do livro, onde vemos a comunicação de Nuno para as jornadas camonianas ganhar forma, para quem é um leigo da lírica de Camões, da investigação feita nesse âmbito, a leitura, embora muito interessante, é complexa.
Agora, num olhar mais subjetivo sobre a obra, quando se gosta de um livro, de um filme, de uma peça de arte, seja ela qual for, há sempre uma base de identificação que está implícita, mesmo que essa identificação seja através de um tremendo desconforto, de uma culpa latente ou de um flagrante reflexo no qual nos vemos como não gostamos que nos vejam, nus e crus.
Frederico Lourenço escreveu este livro numa idade próxima da minha. Mais novo, mas ainda assim próximo o suficiente para que me identifique de uma forma absurda com a personagem principal, com os seus dilemas, os seus medos e os seus desejos. Mesmo eu sendo uma mulher, heterossexual, com um trabalho ridículo numa aldeia e não um professor universitário gay.
É estar-se num momento em que aparentemente se tem tudo, mas falta a inflamação, a estridência, o caos, a desordem de um amor, de uma paixão. Mas quando essa paixão aparece, com ela vem também a sensação do risco, do ridículo, da ética, da moral, da potencial perda.
Como isto não é uma crítica literária, posso dizer simplesmente que gostei, que adorei o livro, que ao acabá-lo, fiquei ensimesmada, mergulhada num certo vazio, a pensar na vida, na de Nuno Galvão e na minha.
E com uma vontade de descobrir mais, para além dos fragmentos sobreviventes do ensino secundário, da lírica de Camões.
Pode um desejo imenso arder no peito tanto que à branda e a viva alma o fogo intenso lhe gaste as nódoas do terreno manto, e purifique em tanta alteza o esprito com olhos imortais que faz que leia mais do que vê escrito.
Ode de Luis Vaz de Camões, em «Pode um desejo imenso», de Frederico Lourenço
Enquanto caminhava entre dezenas de pessoas alvoroçadas e faladoras, na direção da saída daquela sala de espetáculos, para fora daquela casa das artes, o que sentia era culpa. Percebi, envergonhada, que o que fizera ali (ou não fizera) era uma exata réplica do meu comportamento em sociedade. Eu, logo eu, tão fanfarrona das minhas crenças, dos meus ideais, dos meus valores…
Comprara os bilhetes para aquele espetáculo havia mais de meio ano. Cancelamentos devido à covid arrastaram «Catarina e a beleza de matar fascistas» para o fim de semana prévio ao 25 de abril. Entrei naquela sala a fervilhar em stress. O meu trabalho prolongara-se penosamente até às 20h15, não jantei, a viagem ainda fora longa até ali chegar, não encontrávamos estacionamento, cada uma das pessoas do meu grupo tinha um bilhete numa fila diferente, tudo combinado para incendiar o meu estado de espírito. E depois aquilo.
Aquilo a que me refiro é uma peça de teatro com um texto brilhante de Tiago Rodrigues (quando for grande, quero escrever algo assim), brilhante na forma como foi escrito, encenado e interpretado, brilhante na provocação ao espetador, brilhante por desejar que o espetador percebesse que não era suposto ser apenas espetador, agente passivo de uma obra de arte.
Num crescendo, vemos os personagens mergulhados no dilema, que é também um dilema de todos nós enquanto seres sociais – até onde é possível ir para se defender a liberdade, a democracia e silenciar aqueles que a atacam, a minam e destroem? Será a justiça coisa que se possa redefinir e adaptar consoante as necessidades especiais de um momento? O recurso à violência é justificável se os fins forem nobres? Todos os fins justificam os meios? E, se descartarmos as minudências da ética e da moral, não seremos nós, em última instância, como aqueles que tentamos combater, aqueles que se alimentam do medo, que perseguem o poder, implodindo com a liberdade e direitos?
Mas, e se não fizermos nada? Se formos plácidos e conciliadores com todos eles? Se lhes dermos o direito à fala, o direito à retórica associada, o direito à exploração emocional de todos nós? Se nos limitarmos a deixá-los ser, usando como único recurso de batalha as nossas palavras já cansadas?
A dada altura da peça, eu percebia a perspetiva de cada uma das Catarinas e eu própria estava mergulhada em dúvidas, porque nada nunca é verdadeiramente preto ou branco, bom ou mau, belo ou feio. Mas as dúvidas, o diabo das dúvidas, não raras vezes levam ao caos.
No momento final da peça, o fascista de serviço, numa personificação aterradora dos pequenos fascistas que vemos pulular por aí, espécie em crescimento bem adaptada ao ambiente, congratula-nos com um discurso ininterrupto, com todos aqueles chavões que se lhes conhece, numa ladainha papagueada, fervorosa e amiga de deus, da família, da tradição, do progresso sem escrúpulos.
A um ator que nos cria a vontade do insulto, do combate e até mesmo da violência, só temos de lhe reconhecer o talento. Calado durante toda a peça, o personagem fascista, interpretado por Romeu Costa, eleva-se aos píncaros na reta final. E com ele veio o desconforto, a vergonha e, posteriormente, a culpa.
Temos um personagem a debitar, perante o silêncio de todos os outros personagens da peça, tudo aquilo que representa o ideário mais asqueroso que uma sociedade possa almejar. O silêncio dos outros atores e o silêncio de uma plateia composta por centenas de pessoas. E talvez tenha sido necessário passarem uns bons cinco minutos para um espetador (um agente provocador?) da assistência se manifestar contra todas aquelas alarvidades proferidas por um político tão credível, que o teatro, a personagem, o próprio Romeu Costa, desapareceu, ficando ali na nossa frente um fascista, perfeitamente decolado, de uns quantos outros que tão bem conhecemos.
E aquela plateia, depois da primeira intervenção de um espetador exaltado, mandando calar o personagem, transformou-se numa amostra de um país, num microcosmo visto à lupa de um Portugal atual. Da exaltação inicial de um homem, inicialmente vieram os olhares reprovadores de algumas pessoas: «este pessoal vem ao teatro e não se sabe comportar». Mas também estes se começaram a sentir desconfortáveis com o discurso cada vez mais alongado do pequeno fascista. Esperávamos uma intervenção redentora de um dos outros personagens, mas ela não chegava e ele continuava na sua lengalenga (como raio um ator consegue decorar um texto de dez, quinze minutos, sem pausas, num encadeado frenético, está para além da minha compreensão).
Depois da reprovação do comportamento do espetador provocador, do desconforto cada vez mais palpável que se transformava em anuência, surgiram os primeiros protestos da plateia. Uns gritavam «Não passarão» ao som de palmas de incentivo daqueles (como eu) que não se atreviam a gritar em protesto. Cantou-se a «Grândola vila morena», gritaram-se insultos, várias pessoas abandonaram a sala e ele continuava a discursar, num fervor, por vezes quase silenciado pelos cânticos antifascistas da plateia, outras vezes completamente percetível, com o seu discurso a ferir, a mostrar o nosso silêncio, a nossa inoperância, a nossa passividade.
E quando finalmente acabou, senti-me mal. Muito mal. Quis ter tido coragem de ser aquela mulher exaltada duas filas atrás da minha, que por momentos temi que saltasse para o palco e desatasse à bofetada ao ator, quis ter sido aquelas pessoas que cantaram em fúria, que vociferaram «Não passarão», mesmo perante o olhar de reprovação de várias outras pessoas da assistência. Porque, a dado momento, aquilo já não era uma peça de teatro, aquilo era uma análise do nosso comportamento social. E dali, o que se concluiu, é que somos seres essencialmente passivos, que preferimos sentir a vergonha da inoperância, a culpa da passividade, ao invés do arrebate algo insano, à impetuosidade mesmo que ingênua, à impulsividade da ação. E mesmo quando nos rebelamos, fazemo-lo num arrufo do momento, uma ação que logo saneamos sem contemplações, porque não queremos ficar retratados como arruaceiros malucos.
A passividade dos desconhecidos sentados à minha direita e à minha frente, mostraram-me o quanto sou influenciável pela aprovação ou reprovação alheia, o quanto me deixo tolher pela opinião dos meus pares. O meu discurso é um e a minha ação é outra. E como eu, muitos.
E a arte é, numa das suas possíveis definições, esta capacidade de criar desconforto, vergonha e culpa, de transbordar para além das fronteiras físicas de uma sala, de um texto escrito e interpretado por atores, da cenografia, em cada objeto montado e mexido num palco. A capacidade de roer e escarafunchar mesmo quando o objeto artístico já ali não está e apenas vive na memória.
E desta peça de arte, percebo que, no fim - caramba - é mesmo normal, expectável, «que eles passem», mesmo que eu sussurre «Não passarão!!»
Olho constantemente para trás, para o que foi, dissecando os caminhos tomados, tentando perceber a interceção perdida, o cruzamento onde tomei a saída errada, a placa de sinalização que não li corretamente, a soma das pequenas coisas que me trouxeram aqui.
Agora, cheguei àquele sítio donde se vislumbra a juventude já lá longe, onde se revisita numa obsessão as músicas do passado e se sente um sofrimento indiscritível. E o indiscritível não é hipérbole, não é adjetivo metido sem contemplação – é coisa literal. Não sei realmente descrever os sentimentos que as memórias me provocam: ao rever a capa de um livro que comprei há vinte anos, ao falar de um episódio de vida que aconteceu há muito, ao falar de um local ao qual não regressei, ao ouvir as músicas que me destabilizavam e faziam vibrar naquela altura. Não é nostalgia, não é saudade, não é tristeza no sentido «duro» da palavra. É…
Há uns bons anos li o livro «Os anjos maus» de Éric Jourdan, um livro escrito pelo autor aos 16 anos. E se alguém quer perceber de que se alimenta esta angústia do envelhecer, bastará ler alguma coisa escrita por alguém muito jovem.
O envelhecer, este constante olhar para trás, não tem nada a ver com a perda da beleza, da firmeza, da decadência da parte física inerente ao passar dos anos (minto, tem algo a ver, mas não tanto assim), mas tem a ver com a perda de algo ainda maior, algo incomensuravelmente mais grandioso.
Não será o livro mais bem escrito que lerão, afinal foi um puto de 16 anos que o escreveu e a juventude é uma ode ao exagero, à impulsividade, aos extremos. A juventude é coisa sem elegância, sem respeito pelas normas, é ainda coisa de uma extrema ingenuidade do que ao viver diz respeito.
Mas é também, acima de tudo, um furor, um fulgor, uma paixão, um arrebatamento, um frenesi interior, uma crença in extremis no que está para vir.
Ler algo escrito por um adolescente ou jovem adulto é perceber que nenhum homem ou mulher de trinta, quarenta, cinquenta anos conseguirá replicar aquilo, conseguirá fazer transpirar para o papel a exaltação que é viver aos 16 anos. E todas as tentativas de trazermos até nós esta juventude perdida serão sempre ridículas, um plágio que nem plágio será de tão mal ataviado que é, uma crise de meia-idade grotesca, uma comédia de enganos para fazer rir à gargalhada o espetador.
E se ao ouvir aquele álbum que comprei há vinte e cinco anos as lágrimas me assomam aos olhos, não é pelos cabelos brancos semeados aleatoriamente, sem elegância, na minha cabeça, ou pelas rugas de expressão que imprimem um ar de cansaço à minha cara assimétrica, é por perceber que nunca, nunca mais irei ter fé no que está para vir, uma crença inabalável no viver, uma expetativa raiada de mistério, a paixão necessária para enfrentar o dia de amanhã.
E de todos os jovens que vejo, sinto-lhes inveja.
Os anjos Maus, Éric Jourdan, edição Bico de Pena, 2009.
Não conheci o meu avô paterno, mas conheci desde cedo o seu legado, a herança do abandono, do desamor, da tristeza instalada no peito de uma mulher com um filho bastardo nos braços.
D. Sancho I levou erradamente o cognome de O Povoador. Erradamente porque, a bem da verdade, não terá havido maior povoador do que o meu avô paterno. Um D. Juan da aldeia, que fez filhos a torto e a direito, efeitos secundários indesejáveis das suas aventuras sem responsabilidades acrescidas, até se ter «metido» com uma menor e ter acabado casado. Fora desse laço sagrado do casamento, deixou umas quantas mulheres desenganadas, de vidas já de si medíocres reduzidas a um nada, depois daquele presente envenenado com o qual as presenteou. Depois disso, um vazio.
A minha avó era já uma mulher adulta quando engravidou deste homem e, segundo ela, namorou com ele seis anos e eram muitas as juras de amor.
Depois do abandono, da humilhação familiar de ter no ventre um filho «sem pai», ainda assim ela persistiu no seu amor por aquele ser humano. Persistiu no amor e nas desculpas. Não terá existido homem nenhum no mundo tão intrinsecamente machista como a minha avó. Segundo ela, o meu avô era um pobre desgraçado tentado pela perfídia sedutora das mulheres. Todas as outras «se meteram debaixo dele» e ele, um pobre coitado incapaz de resistir a tão maliciosas tentações. Toda uma classe de homens reduzida a um estereótipo pouco abonatório - um ser incapaz de controlar os apetites caprichosos do corpo, vítima da luxúria feminina, um ser pré-histórico no que diz respeito à empatia, capacidade afetiva e intelecto.
A minha avó não teve mais nenhuma presença masculina na sua longa vida (para além da do filho). Nos seus pertences guardava religiosamente a fotografia daquele homem que lhe dera um filho, mas que nunca lhe dispensara um tostão ou o que fosse para o ajudar a criar. Os anos passaram, ele morreu (relativamente jovem) e o culto dela por ele não esmoreceu. Talvez a morte dele tenha mesmo ampliado essa idolatria. E o afeto dela chocava de frente com o desprezo em semelhante proporção que o meu pai sentia por aquele mesmo homem.
Anos passados, também ela morreu. Ela e o seu amor injustificado pelo meu avô.
Depois de anos sem perceber este amor unilateral da minha avó, sem perceber aquele amor incondicional que - qualquer cego poderia ver - não tinha razão de ser, décadas depois de conhecer a sua história, anos depois da sua morte, finalmente percebi.
Olhando-me ao espelho, vendo o filme de terceira categoria da minha própria vida, compreendo-a perfeitamente.
A verdade é que passamos a nossa vida num exercício de fé. Fé em nós próprios, nas nossas capacidades, na nossa resiliência, na nossa ambição e persistência. E fé nos outros, em não nos deixarem cair, em nos amarem, em não desistirem de nós.
É esta fé que nos leva ao dia seguinte e não propriamente a concretização do objeto primário da nossa fé, aquilo a que chamam de forma singela de sonho.
Talvez nada mais restasse no horizonte da minha avó que não fosse amar a imagem idealizada daquele homem. Era isso ou enfrentar a realidade: ele era um canalha que se aproveitara dela, de outras e seguira caminho sem remorsos, ignorando um filho, muitos filhos, ignorando os sentimentos de uma mulher, várias mulheres, em situações de vida precárias, difíceis, empobrecidas e, depois da sua passagem ciclónica, ostracizadas pela sociedade, família, por terem acabado naquela situação - grávidas, mães solteiras, abandonadas, os seus filhos perfeitos, também eles, abandonados.
Do desprezo que cheguei a sentir por aquele amor que ela nutria por um ser humano de tantas e tamanhas atitudes desprezíveis, da abominação, da afronta, de todas as justificações dela dos comportamentos dele, agora entendo.
A nossa felicidade, a bruma mágica que envolve a nossa existência, não precisa de ser real, de ter os contornos do mundo físico, do espaço/tempo, do aqui e agora. Basta apenas que se revista de uma envolvente verosimilhança aos nossos olhos, já meios míopes de tanto fitar continuamente tamanha dolorosa realidade.
Se for preciso acreditar em capacidades inexistentes, em projetos utópicos, em vidas paralelas, em deuses benevolentes, em ficções hollywoodescas, em amar pelos dois... que assim seja!
O real está no mundo pessoal imaginado de cada um de nós.
Há uns 25 anos, entrava numa sala de cinema numa qualquer tarde de uma dia de semana, no Monumental Saldanha, sozinha, para ver um filme. Estudava cinema na Escola Superior de Teatro e Cinema e, embora o cinema me fascinasse, o que realmente me tinha levado àquela escolha académica peculiar, fora a escrita. Alguma coisa que justificasse a ânsia, a necessidade, mas também a alegria de escrever.
Estava naquele dia, naquela sala de cinema, porque o meu professor de argumento aconselhara aos seus alunos um livro de screenwriting e aquele filme, o que me levara ali, tinha o argumento desse mesmo autor e argumentista.
Lera e relera o livro Story de Robert McKee e agora estava ali uma oportunidade de ver se o genial autor Robert era também um argumentista em condições. Embora, atenção, a capacidade de ensinar não tenha de estar em perfeita ligação cósmica com a capacidade de executar e o contrário também se aplica. Nem todo o executante será um bom professor na sua área.
Story, Robert McKee (1997)
O filme “Wag the Dog – Manobras na Casa Branca”, era um filme que tinha como premissa inicial, um presidente, uma presidência de uma país, que cria uma guerra fictícia para desviar a atenção dos eleitores de um escândalo sexual, perto das eleições, um momento de extrema importância política. Temos uma guerra em estúdio, um herói de guerra, uma música de guerra, tudo a que um povo tem direito.
Trailer de Wag the Dog - Manobras na Casa Branca (1997)
O filme, com um elenco de luxo, ainda sob o ponto de vista atual, tinha quatro espetadores naquela sessão da tarde e daquele dia fica o insólito destes quatro (eu incluída) terem tentado sair da sala depois do filme ter acabado para logo descobrirmos que a porta da sala estava trancada. Nada de pânico, só gargalhadas, porque depois daquele filme, daquela história, do absurdo que todos os quatro pressentíamos que realmente não o era, mais nada restava senão rir. Seria possível descobrir o cinismo das nações, dos governos, num filme? Seria possível que o riso fosse de nervoso, um certo desconforto instalado, mais do que hilaridade espontânea?
Pois claro que era possível. A caminho dos meus vinte anos eu sabia que o mundo era bem mais do que aquilo que eu conseguia ver, mas acho que foram precisos mais de vinte anos em cima para perceber que, apesar de tudo, o que via e pressentia ainda se revestia de imensa importância.
Numa Europa em guerra, não faltam especialistas a observarem cruamente o conflito. Os EUA estão numa senda de cercar a Rússia, arranjando aliados fronteiriços, erigindo nestes novos locais posições privilegiadas, que deixarão ao Rússia numa posição desfavorecida. Uma pressão, que levou Putin a uma estratégia de proteção através do ataque. Ou… Putin é apenas um expansionista, um imperialista que pretende expandir os seus domínios e não se deixar dominar pelos imperialistas ocidentais. E a partir daqui soma-se mais uma dúzia de variações, algumas mirabolantes, outras com alguma coerência.
Linhas, linhas e mais linhas escritas. Horas de televisão, com argumentos de lado a lado. E se tudo, de um ponto de vista estratégico, como se jogássemos à batalha naval, faz todo o sentido, na prática é apenas obsceno. E, lamento, todas estas pessoas que falam de estratégia, peritos, militares, também o são. Obscenos!
E as pessoas? Os civis? Como diabo não entram as pessoas nas equações, nas análises, nos balanços analíticos daqueles que decidem e daqueles que analisam?
As pessoas entram nesta equação como números, em subtrações frias. Hoje, ontem e em todos os conflitos de que há memória. Mortos, feridos, refugiados, deslocados, migrantes, esfomeados, viúvos, órfãos, desempregados, desesperados.
Motivada por esta despersonalização dos conflitos, pela realidade das guerras “lá longe”, mas que pressenti que poderiam ser “cá perto”, por perceber que na realidade o lá longe e o cá perto não fazia qualquer diferença, porque as vítimas da crueldade da guerra eram sempre as mesmas, pessoas, o ser humano banal na sua luta diária banal, comecei a escrever o que demoraria mais de uma década a acabar – um livro sobre uma guerra em território nacional. Pelo meio, Susan Sontag, no seu Olhando o sofrimento dos outros faz-me perceber que, por mais que me esforce, não perceberei, jamais, o que as pessoas, aqueles que estão no meio de um conflito, sofrem, sentem. Perceber a minha ignorância, dá-me humildade. E a humildade anda de mãos dadas com a empatia.
“Um número e assim era a vida humana por aqueles dias. Um mero número numa equação que usava mais subtrações do que adições. Pensar que cada uma daquelas pessoas ali sentada a comer, cada uma daquelas pessoas lá fora, desde o recém-nascido aos idosos, homens e mulheres, civis e militares, rebeldes e não rebeldes, todos eles, sem exceção, nada mais eram do que números. E numa fração de segundo poderiam transfigurar-se de um Um, num Zero, sendo que o transtorno causado por essa mudança não era para ali chamado. As equações não contemplavam sentimentos, os números não tinham nome nem passado e, claro, os Zeros nem futuro tinham.»
"Era darem-lhe uma malha, chicoteá-lo, depois estrafegá-lo, regá-lo com gasolina e pegar-lhe fogo."
As palavras foram da D. Maria, mulher de 91 anos. Frágil, pouco mais de um metro e meio de um corpo delgado e em curva descendente, apoiada nas suas canadianas de estimação, mas sempre de língua afiada e respostas aguçadas que lhe fogem da boca como balas numa rajada de metralhadora.
As palavras raivosas, desta vez, tinham sido motivada pelas imagens da guerra na televisão da sala de espera. Crianças mortas, casas destruídas, caos semeado, o medo a ampliá-lo e os meios de comunicação a sorver caos e medo numa ânsia vampírica, esfomeada, sem escrúpulos.
No centro da fúria homicida da Dona Maria estava Putin, o arqui-inimigo, o anti-cristo.
Ao ouvir as suas palavras - mata-se o vilão e acaba-se a guerra - pensei em como a violência vive dentro de cada um de nós.
Durante o dia, este e os últimos quinze, não passou um par de horas que alguém não tenha sugerido limpar o sebo ao Putin. Mas também não passou nenhum a mais para além desse referido tempo, em que essa sugestão de homicídio não tenha vindo acompanhada de detalhes requintados de malvadez.
Matar não chega. Acabar com a suposta fonte do mal não basta. Queremos sangue, queremos dor, queremos lágrimas de arrependimento, queremos ver a morte estampada no rosto antes da mesma se instalar, queremos a redução do outro a um nada. Menos do que isso...
Não chega.
A guerra, em última análise, é talvez a mais verdadeira expressão do que é ser-se humano. A ideia de que a violência, a capacidade de matar, é anti natural, uma espécie de degeneração da verdadeira essência humana, não podia estar mais longe da verdade.
Tentamos pacificar-nos, fazer crescer a empatia, semear e fazer germinar a benevolência, olhar o outro como nos olhamos a nós... Mas é um esforço. Séculos de esforço. Num primeiro impulso, quando a revolta irrompe e cresce luxuriante, o que nos vem à cabeça num primeiro instante, o impulso sem filtro, o instinto primário, é a violência. Somos isto.
A minha menina estava a caminho dos dezanove anos. Nos cães velhos, tal como nos bebés, o avançar dos dias é celebrado em meses. Com orgulho, dizia a quem perguntava que a minha menina tinha dezoito anos e meio.
Não raras vezes a minha resposta orgulhosa era precedida de franzires de testa, de bocas que desenhavam esgares preocupados e da célebre frase: vá-se preparando.
Mas nada, nenhum aviso, nem a evidência da idade avançada, das maleitas próprias dos anos vividos me preparou. Não há preparação possível, atenuante existente, para a perda da minha menina.
E num ápice sem explicação, fiquei sem a minha menina. Fiquei sem ela, mas dolorosamente ela está em todo lado, nas ausências evidentes, nas memórias dos espaços antes animados pela sua presença, a lembrança dos cheiros, dos ruídos.
O vislumbre do parque onde a levava a passear, do casaquinho impermeável que usava quando chovia, do espaço onde estava a sua cama e os seus pratos de comida e água, tudo dói de uma forma irracional.
No maior dos absurdos, esvazio o recipiente do aspirador e vejo os seus pelos entre os meus cabelos e outro lixo aspirado e penso que da próxima vez outro pelo já lá não estará e que estou a descartar, a meter fora uma parte da minha menina.
E tudo aquilo que por vezes irritava, cria agora um vazio, um buraco cheio de nada. Acordar às seis da manhã para lhe dar a saborosa ração húmida, porque o entusiasmo era tanto que a minha menina acordava "com as galinhas" só para comer - agora, mesmo sem ela, acordo na mesma e sinto a falta do ruído das suas patinhas pela casa, como um despertador para nos fazer saltar da cama.
Os ladrares constantes durante o jantar a suplicar um pedacinho das delícias que estavamos a comer e que ela também queria compartilhar - o silêncio antes ansiado é agora um ferro de ferir, um vazio que recorda a perda.
Uma data de possível início (ninguém a sabe, a minha menina foi recolhida da rua, era um bebé vadio antes de ser acolhida por uma associação) e a data do fim nada dizem, nada transmitem sobre a alegria de ter sido a mãe da minha menina, nem nada dizem da saudade que a sua ausência tatuou em mim. Uma tatuagem que, mesmo depois de feita, a cada dia descobre maneiras de fazer doer, encena novas formas de fazer chorar.
Uma coisa é no entanto certa: enquanto por cá andar, a minha menina andará comigo.
Grandes desgraças históricas teriam sido evitadas se o mundo da arte não fosse tão elitista e seletivo.
Hitler sonhava ser pintor, considerava-se, acima de tudo um artista. A pintura era o seu refúgio, o seu sonho de vida. Se o menino não tivesse sido recusado duas vezes na academia de belas artes de Viena, talvez agora a história do século XX fosse radicalmente diferente. Veríamos uns quadros medíocres do menino nuns quantos museus, talvez o menino com o tempo até se aprimorasse (já vi pinturas piores) e o holocausto, a guerra, seriam coisas remetidas à ficção, porque um artista feliz reprime ou transforma o facínora que por lá também habita. Todo o lado sombrio seria transportado para pinceladas melancólicas numa tela, o descontentamento diluído em tinta.
Adolf Hitler, 1912
E, verdade seja dita, aquele estilo, aquele cabelinho lambido para o lado e o bigode (não posso categorizar porque só me surgem comparações de estilismo pubiano), estão melhor para um artista do que para um ditador.
Maldito júri da academia, malditos elitistas armados em bons...
Depois, temos o nosso pequeno exemplo nacional. O sonho do Dr. Sapo de Loiça era ser romancista. Uns quantos livros editados, sem nunca conseguir chegar à pujança de vendas do Dan Brown lusitano (nem pouco mais ou menos).
Não fossemos nós leitores tão esquisitos (até nem somos, papamos quase tudo), não fossem as editoras tão elitista, remetendo o Dr. Sapo de Loiça para edições de segunda categoria, e também nós escreveríamos uma história diferente nos anais da história do ano 2021 português.
Caros eruditos que têm o poder de decisão nas mãos, lembrem-se: mais vale um artista de meia tigela (com tantos que os há, mais um menos um), do que um aspirante a ditador.
Deixai os meninos serem escritores, pintores, escultores, pianistas, compositores, bailarinos, realizadores. A mediocridade artística será de somenos importância quando comparada com o estilhaçar de uma sociedade, a morte da empatia, a frustração transformada em fúria.