Costumo dizer que não tenho livros preferidos, filmes preferidos, coisas preferidas no geral. No entanto, no que toca aos livros, embora nunca o nomeie como o meu livro preferido, o certo é que As Benevolentes de Jonathan Littell está-me sempre a aparecer à porta da memória, apesar de o ter lido uma única vez há 17 anos. Ainda não há muito tempo escrevi sobre ele para uma disciplina, onde o mote do texto era «O corpo que lê» e escolhi esta obra para falar sobre os efeitos físicos da sua leitura, pois, mesmo passados tantos anos, a perturbação persiste latente no meu corpo que envelhece.
Hoje, ao percorrer as notícias digitais de alguns meios de comunicação, lá apareceu ele novamente, a berrar-me dos fundilhos da memória. E o que diabo terá um livro escrito em francês por um americano há uma catrefada de anos a ver com as notícias do dia?
Precisamente… tudo.
Quando há quase duas décadas alguém me perguntava de que tratava aquela “bíblia” enorme que andava a ler e que eu transportava para todo o lado, a frase mais curta que encontrava e que parecia resumir tudo era que aquele livro era um manual de como transformar um ser humano num monstro.
Com a ação a passar-se durante a II guerra mundial, a história narrada na primeira pessoa pelo protagonista, um oficial das SS, vai-nos mostrando como os acontecimentos extremos de um conflito conseguem transformar um ser aparentemente banal, num ser sem escrúpulos, capaz de tudo.
No meu agora, sei que a minha sinopse da obra era infeliz. Não há monstros neste mundo. Quando, do alto da nossa facilidade, julgamos o outro que age de forma extrema, com a qual não nos conseguimos identificar, rotulamo-lo de monstro. Mas na realidade, aquelas pessoas, a matar, torturar, violar, são pessoas como eu. Ou quase.
E o quase reside na força devoradora dos conflitos. Os conflitos perpetuados, arrastados, a exposição prolongada de qualquer ser humano à violência, à subjugação e à indignidade leva a uma excisão da empatia que ainda se aloje dentro dessa pessoa. As guerras são como máquinas de amputar empatia, de criar bunkers de isolamento emocional.
No livro de Littell, o protagonista Maximillien Aue desfila da inocência de ser um jovem adulto, alegre, que se choca com a violência inusitada dos outros, que se enoja com os extremos a que alguns soldados se erguem, até chegar, também ele, ao topo do miradouro da vilania, da psicopatia. E ali, ao longo de quase 900 páginas, está o raio da explicação de tudo o que se passa e sempre se passou nas nossas sociedades modernas.
E quando fechei o livro, de mãos trémulas e mente agitada, a pergunta que se empunha era e continuará sempre a ser – estando eu ou qualquer uma das pessoas que conheço, expostos a tais níveis de violência, amputados pela raiz de qualquer empatia, identificação com o próximo, serei, também eu, capaz de chegar àqueles extremos? Matar, raptar, torturar, violar? Será a violência como uma doença contagiosa, um cancro que se metastiza por todos os elementos de um grupo social, apodrecendo tudo por onde passa?
E, claro, abandonando o espaço da ficção e lendo ou vendo as notícias, há sempre a tentação de defender um dos lados envolvidos num qualquer conflito. Normalmente a escolha é facilitada por questões muito simplistas. A identificação está sempre no topo da lista das nossas justificações clubísticas. Defendemos aqueles com quem nos identificamos mais, seja por razões de proximidade geográfica ou razões sociais e culturais (um dos lados do conflito tem um estilo de vida semelhante ao nosso, as suas atividades diárias são mais facilmente comparáveis com as nossas). E mesmo que nenhum dos grupos envolvidos no conflito leve a cabo ações defensáveis, a verdade é que acabamos por cair na armadilha de menorizar as ações dos nossos semelhantes e antagonizar e repreender severamente as ações do grupo oposto, mesmo que essas ações sejam uma réplica perfeita, um reflexo no espelho, das ações do seu oponente.
Nós, os espetadores, vemos o mundo de uma forma maniqueísta. Os bons e os maus, quando a dura verdade é que será muito difícil encontrar os bons onde já não há empatia e não podemos catalogar de forma simplista os outros de maus, porque talvez a maldade seja característica humana, um atributo como qualquer outro, uma espécie de gesto reflexo dos emocionalmente amputados.
Em suma, em mim há apenas desespero ao ver o que se passa à minha volta, porque neste filme não há super-heróis. Há apenas conflitos congeminados e alavancados por meia dúzia de pessoas, de parte a parte, que não sofrem diretamente o peso esmagador desses mesmos conflitos. A gula de poder, o narcisismo dos escolhidos a corroer cérebros e a criar zombies.
Mas há, também e acima de tudo, dúvidas.
Há mais de um ano, vi uma peça de teatro de Tiago Rodrigues, «Catarina e a beleza de matar fascistas». Tal como o livro de Littell, não a catalogarei como a minha peça de teatro favorita, mas ela volta, assalta-me a memória quase todos os meses. Escrevi sobre a peça na altura que a vi e, como num jogo de espelhos da realidade, também ela tem muito a ver com a atualidade. A de hoje e a das últimas décadas, porque a realidade é uma reciclagem histórica contínua. A porra da realidade não daria ficção, porque a repetição torna-a inverosímil e previsível.
Tiago Rodrigues, num texto com uma escrita brilhante, deixa o espetador a matutar nas questões da vida: até onde se pode ir para parar o mal, deter aqueles que pretendem restringir a liberdade de uma sociedade? Será legítimo, ético, usar violência para travar aqueles que, de alguma forma, também são violentos? Quais são os limites de ação de alguém que se defende de um ataque? E não haverá culpa pela propagação do mal, pela profusão da retórica fascista, da subjugação de um povo, da indignidade, da violência, se todo o ser humano se mantiver dentro do legal/ético/moral? Não será a inação uma forma de repressão e coadjuvação com o opressor?
E é neste difícil jogo de xadrez, entre empatia ou falta dela, territórios consagrados e territórios expurgados, liberdade e opressão, manipulação e subjugação, que se joga a vida humana e a paz no mundo.
E no fundo, o que será realmente isso da Paz no mundo?
Harmonia entre partes ou silêncio de uma das partes subjugadas?
Catarina ou a beleza de matar fascistas, de Tiago Rodrigues
As Benevolentes de Jonathan Littell, Dom Quixote, 2007.
«Quem são estas pessoas? Serão pessoas ou serão monstros?»
Navegando pela internet, pelas redes sociais, caindo em queda livre nos comentários de uma qualquer postagem, não será difícil a frase sair-me da boca. Uma pergunta para a qual sei a resposta, mas que ainda assim se escapa pela estupefação, embora os comportamentos, as palavras cruéis nada tenham de novo.
Ontem via no Instagram um desabafo de uma tradutora/promotora literária, que sigo nas redes. A pessoa em questão foi ao lançamento do livro «No meu Bairro», de Lúcia Vicente/Tiago M. e foi “apanhada” no turbilhão de ódio de uns quantos grunhos que por lá apareceram a manifestar-se.
Ora, desta frase anterior, corrijo a palavra “grunhos”, porque embora a tendência seja classificar o comportamento inadequado de alguém de uma forma mais reles, com adjetivos depreciativos, essa classificação como que isenta o outro de responsabilidade dos seus atos. Nunca se trata de monstros a fazer coisas monstruosas, tratam-se de seres humanos como eu a fazer coisas humanas, embora ações que são nutridas pelo ódio e pela falta de empatia. Corrijo ainda a palavra “manifestar-se”, porque toda a gente sabe que aqueles homens que invadiram um lançamento de um livro com um megafone não se estavam a manifestar, não reivindicavam nada. A natureza daqueles atos era outra.
Bem, o post da H., a tradutora/divulgadora literária, mostrava uns quantos screenshots de comentários sobre ela, debaixo de uma fotografia que lhe foi tirada por um dos manifestantes durante esse lançamento literário, onde o seu aspeto físico, a sua cor da pele eram usados como forma de enxovalhamento na forma mais cruel que se possa imaginar. Quando não há argumentos, há insultos e ali havia de tudo: racismo, xenofobia, misoginia, masculinidade tóxica (que de tão tóxica que era, envenenava qualquer resquício de empatia que aquelas pessoas poderiam ter dentro de si). Por momentos, aquilo que supostamente tinha movido aquelas pessoas a se manifestarem desaparecia. Sobravam apenas as palavras cruas e duras: gorda, mestiça, brasileira, fenótipo assim, fenótipo assado.
E ao ler aquilo, ao pensar como H. se deveria estar a sentir ao ler aquelas palavras, ao me sair da boca a frase «Que pessoas são estas que dizem estas coisas de uma forma tão cruel e com tanta ligeireza?», caiu-me no colo a contagem das vezes que tinha pronunciado a mesma frase num mero par de dias: comentários maldosos num grupo de partilha de leitura de livros, onde o que me pareceu um problema técnico da página foi classificado por algumas pessoas nos comentário como má vontade da administradora do grupo, logo ali prontamente classificada de desocupada, desempregada, divorciada, mal resolvida (com a carga sexual que tem sempre de ser trazida ao barulho e com todas as piadas foleiras associadas). Umas horas antes, falava com uns amigos americanos que descreviam como tinham sido enxovalhados por um fulano anti-vacinas quando, num grupo de expatriados, tinham apenas divulgado o calendário de vacinação da Covid 19 para maiores de 60 anos. Insultos e ameaças que os deixou perplexos pela desproporção da resposta a uma mera divulgação do SNS. Comentários à notícia do julgamento de Mamadou Ba, comentários à notícia de abertura de uma livraria feminista em Lisboa. Pequenos exemplos, numa longa lista, onde eram fáceis de perceber os tópicos que mais alarves chamava para os comentários. Palavras escritas para fazer doer, palavras como pedras, palavras que pretendiam humilhar pela brutalidade.
E ao ler centenas de frases pronunciadas no mundo virtual, escoltadas pela segurança de não terem sido ditas «cara a cara», mas sob a proteção da distância, de dedos que dedilham teclas num aparelho, ainda assim vem a pergunta: «Quem são estas pessoas? E porque é que dizem estas coisas?»
E a resposta não é bonita, porque é óbvia. Não há qualquer grandeza na descoberta da Verdade, não há um Nós vs Os outros, Humanos vs Monstros. Aquelas pessoas que ali falam apenas procuram uma coisa, que quase todas as pessoas no mundo procuram também. Mas ao invés da procura ser interior ou junto daqueles que os rodeiam, há como que um estrebuchamento perante aquilo que não conseguem entender, perante aquilo que é acessível, mas quase nenhum ser humano consegue apreender:
A nossa relevância no mundo não tem de ser espalhafatosa, não tem de ser notada pelos outros milhões de habitantes do planeta. O motor da nossa existência, aquilo que nos faz levantar de manhã e ter coragem de sair da cama, aquilo que leva milhares de pessoas a correrem riscos, a não desistirem, a procurarem segurança, alimento, amor, não tem de ser um evento global aplaudido e notado a uma escala nacional/internacional. E não se entender isto – a insignificância de todos nós – , que apenas ganhamos importância junto daqueles que nos amam, através dos nossas ações, que, com sorte, nos podem fazer perdurar na memória daqueles que ainda hão de vir, não entender esta dado básico da engrenagem do mundo só nos traz solidão.
Aquela pessoa que destila ódio nos comentários está só. Aquela pessoa sabe que aquelas suas palavras amargas gerarão respostas e sabe ainda que se lá escrever um comentário «do bem», cheio de otimismo, positividade, alegria, a interação que irá granjear será nula. O ódio revolta, espicaça, gera contacto. O Bem, aquilo que se espera do bom ser humano, é como um dado adquirido, não é notado, questionado, aplaudido ou motivado. E, de uma forma retorcida, aquelas pessoas são vistas, são notadas, ficam momentaneamente menos sós. E no meio de muitas respostas amargas àquele que inicialmente insulta, vêm também aqueles que, como ele, procuram o seu lugar no mundo, ser relevantes, justificar a sua existência.
Os que odeiam conhecem-se, formam um grupo de ódio, odeiam juntos. E a solidão parece menor, encolhe um pouco e odiar será combustível existencial como outro qualquer.
Quando leio comentários assim, imagino de imediato aquela pessoa que destilou ódio, a que está do outro lado, numa ânsia a olhar para o telemóvel, aguardando o apito sonoro que o alerte da chegada de uma reação às suas palavras. E, estranhamente, sinto pena.
Com as redes sociais, é fácil sermos apanhados pela aparente grandeza da vida dos outros. O que fazem, onde vão, quem os rodeia, como são bonitos, o que conquistam, como são aplaudidos. Acontece-me a mim. Ao seguir aqueles que me são referência nas áreas que me são mais queridas, não há como não sentir o toque da insignificância, não há como a minha vida não ser vista sob o projetor da mediocridade. Mas ainda assim, há que respirar fundo e perceber que aquilo que me poderia fazer sentir relevante não virá através da diminuição dos outros, dos feitos dos outros, das palavras e ações dos outros. E talvez a relevância esteja aqui mesmo ao lado, no amor que poderei dar e receber daqueles que me são próximos, em existir com dignidade, criar memórias bonitas no meu filho, porque não é preciso um auditório cheio a aplaudir para a minha vida ou a de qualquer outra pessoa fazer sentido.
No fundo, ainda não sabemos lidar com aquilo que a evolução das espécies nos trouxe, enquanto espécie humana. Esta consciência de nós próprios, esta auto perceção da nossa pequenez, de sermos um entre milhões, num pequeno planeta num universo sem fim à vista, a aleatoriedade da vida, todas estas coisas fez-nos criar deuses, levou-nos à arte, transformou-nos em seres sociais, parte integrante de uma rede de ligações familiares e de amizade, fez-nos buscar a beleza, procurar o desconhecido, mas nenhuma destas coisas conseguiu ainda eliminar por completo a necessidade das perguntas:
«Qual o sentido da minha vida?»
«O que faço aqui?»
«Qual a minha relevância?
»Porquê continuar?»
E, sem qualquer espanto, compreendo que aqueles que odeiam, também eles, procurem todos os dias, incansavelmente, resposta para estas mesmas perguntas.
Ultimamente, tendo a começar os meus textos ou conversas com a afirmação: «Eu tenho 45 anos» como se isso, por si só, respondesse a todas as perguntas ou explicasse todo o disparate ou estranheza que fossem pronunciados por mim dali para a frente.
Neste caso, em que me preparo para escrever sobre uma comédia romântica, o «eu tenho 45 anos» explica tudo e mais alguma coisa. Ter 45 anos explica o número de estrelas que darei a um filme, explica que posso ter, sem vergonha, chorado a vê-lo, explica que já nem sinta vergonha de o admitir.
Quando era adolescente e no início da minha idade adulta entreguei-me aos prazeres das crises existenciais, do sofrimento e da expiação e embora o amor estivesse lá como uma possibilidade, o fatalismo era a minha religião. Entreguei-me aos mestres da literatura, procurava as obscuridades cinematográficas, as músicas depressivas com laivos suicidas. Em mim não havia lugar para o amor meloso, isto porque eu acreditava que ele existia, mas que não era para mim ou era imperativo rejeitá-lo.
Acho que na minha juventude nunca terei visto uma comédia romântica: escolher um filme desse género, convidar os amigos e ir ao cinema vê-lo. E embora tenha assistido a muito cinema dito comercial, a comédia romântica era o que de mais baixo se poderia ir ver a uma sala de cinema. Era preferível assumir perante os amigos a autoria de um qualquer crime de sangue a admitir-se que se tinha gastado dinheiro com uma mediocridade cinematográfica como uma comédia romântica.
Agora, chegada a meio da década de quarenta, aqui estou eu a ver e rever uma comédia romântica que pode ser classificada com todos os objetivos pejorativos que eu tinha antes guardados para este tipo de cinema.
Red, White and Royal Blue é uma comédia romântica da Amazon Prime, baseada no livro homónimo de Casey McQuiston. Já tinha ouvido falar do livro, mas não o li. Na altura em que saiu, fiquei com a impressão de ser um tipo de leitura muito orientada para um público jovem adulto.
E embora não haja motivo para vergonhas em admitir que já casei Dostoiévski com Jo Nesbo ou Yrsa Sigurdardóttir com Toni Morrison, a pilha de livros comprados e ainda não lidos era (e é) gigante e não caí na tentação de comprar o livro em questão.
Mas quando o filme saiu e depois de alguns dos meus amigos, que sabem exatamente o que quero dizer com o «eu tenho 45 anos», mo terem aconselhado, lá fui vê-lo.
E realmente é:
Adolescente, foleiro, meloso, irrealista, piroso, lamechas, manipulador de emoções, fofinho e previsível.
E eu adorei.
Eu sei que o mundo não é assim, eu sei que os obstáculos derrubam as pessoas, eu sei que o diabo do amor é coisa tão complicada, complexa, que já nem sinto vontade de falar dele, eu sei que o que há de mau para acontecer normalmente acontece, eu sei que a mediania e a mediocridade imperam, eu sei que não há espaço nem vontade para os grandes gestos, para as grandes ações, eu sei que aquele frenesim adolescente, aquela sensação de se ter uma vida inteira pela frente, pronta para ser heroicamente desbravada, eu sei que essa impetuosidade, impulsividade está moribunda, como morta, emitindo os seus últimos estertores. Eu sei, como diz o outro, que vou falhar e… falho. Tenho plena consciência de tudo isso.
Já tenho idade para conhecer todas as engrenagens disto de se viver e, como tal, nunca como agora fez sentido rir de coisas básicas, parvinhas, algo pirosas, nunca fez sentido como agora verter lágrimas pela fortuna de alguém amar alguém, mesmo que esse amor tenha sido desenhado propositadamente para pessoas como eu, nunca antes fez sentido vibrar com uma cena íntima entre dois homens e captar em tudo aquilo, em dedos que se tocam, em palavras bravas que se pronunciam sem medo, uma centelha do que foi ser-se jovem e de se sentir o mundo entre os dedos.
Red, White and Royal Blue não é Bergman, não é Manoel de Oliveira, não é nenhum Tarantino (embora por lá ande a Uma Thurman), mas é ridiculamente querido, pateticamente meloso, dolorosamente adolescente, entre o riso e o choro, exatamente por onde cada adolescente (e adolescente wannabe) deve navegar.
Para um adulto que decida ver o filme, o mais certo é todo o início dar uma certa vontade de se querer odiar aquilo. É uma comédia adolescente que ali se começa a desenrolar, com laivos (a todos os níveis) de Disney Channel, uma estrutura narrativa óbvia de inimigos que viram amigos que viram amantes. Mas é absolutamente impossível manter essa vontade de odiar após uma dezena de minutos, porque, mesmo que não se queira, mesmo que seja absurdo admitir-se, nós precisamos daquilo.
Para além desta observação mais pessoal, deixo ainda aqui uma outra nota. Estamos a falar de uma comédia romântica queer, em que as personagens principais são dois homens e, acho que se todo o mundo heterossexual teve direito a boas doses de pirosice, porque não dar também essa oportunidade, essa representatividade do amor meloso, piroso, fofo e algo foleiro à comunidade LGBTIQA+? Não haverá maior normalização da diversidade do que quando esta chega a coisas tão básicas como as comédias românticas.
Para além da parte romântica, refiro ainda outra nota. Falando de política e dos vários sistemas políticos (seja a monarquia no Reino Unido e um sistema democrático republicano federalista nos E.U.A.), o filme acaba por trazer à fala questões como a representação política de comunidades menos visíveis e da importância desse representatividade (a comunidade hispânica nos Estados Unidos) e também a questão da relevância ou utilidade da monarquia no século XXI.
Assim, este filme é todos os adjetivos que reservamos para as comédias românticas, mas não há qualquer mal nisso. O cinema, tal como outras expressões artísticas, guarda em si a possibilidade do entretenimento, do ligeiro, do imediato, do infantil e da submissão ao objeto artístico.
Amanhã, o mundo trará sangue, suor e lágrimas, queda, desconforto e solidão, misoginia normalizada e homofobia enraizada. Por hoje, fico-me por uma história romântica que acaba bem.
Red, white and royal Blue
Realizador: Matthew Lopez
Atores principais: Nicholas Galitzine, Taylor Perez, Uma Thurman, Sarah Shahi, Rachel Hilson e Stephen Fry.
O corpo como elemento dissociado do Eu, como um desdobramento material do Eu, mas um desdobramento caótico, aleatório – um reflexo distorcido da verdade.
Pensei no corpo nestes trâmites durante muito tempo. O meu corpo estava francamente aquém do que eu achava que ele deveria ser, o meu corpo não era uma materialidade em condições da minha personalidade.
Claro está que toda esta minha crença era uma perfeita parvoíce, porque percebo agora, passados os anos, que sou um produto em constante construção pela vivência social, pela navegação deste meu corpo entre este mar de outros corpos. O meu Eu fundou-se na vivência social de um esqueleto coberto de músculos, veias e carne.
Eu sou aquilo que o meu corpo é.
Eu sou da forma como me veem.
As minhas inseguranças, a escolha das minhas lutas, as mais ínfimas decisões do dia a dia – olhar alguém nos olhos, decidir iniciar uma conversa, ter coragem para me levantar depois de uma queda aparatosa – todas estas banalidades provêm da vivência social deste meu corpo durante estas primeiras quatro décadas.
E se depois de uma adolescência de profunda aversão por mim própria, aversão pelos cantos, becos e linhas oblíquas desnecessárias deste corpo, consegui chegar ao patamar da escadaria da tolerância…
Enfatizo que tolerar não é aceitar.
Percebo que o meu entendimento do que será um corpo perfeito está enraizado em preconceitos, traços culturais, publicidade e marketing, parâmetros quer inconcebíveis como impraticáveis – um corpo perfeito deveria ser somente um corpo funcional e saudável –, mas apesar dessa perceção, não há aceitação possível do que me calhou na rifa. E todas as campanhas de body positivity me soam a falsidade, a um prémio de consolação para o atleta que ficou em último lugar na corrida.
Perceber que se fundou um edifício em alicerces defeituosos não faz nem o edifício nem os alicerces desaparecerem. Eu sou fruto da maneira de se pensar desta sociedade, para o bem e para o mal e quanto a isso não há nada a fazer. Posso ter consciência dos bastidores, mas a peça continuará a ser a mesma a que toda a gente assistirá.
E, quando o meu corpo entra em rota de colisão com a minha vontade, quando se alarga excessivamente, quando descai, quando me esfrega na cara os sinais óbvios de envelhecimento, de entortamento, quando me grita que não mando nele, que quer ser livre, decorado de adiposidade, de cabelos brancos, olhos vesgos, dentes tortos, pele borbulhenta, enraiveço-me e castigo-o, mostro-lhe a sua insiginificância.
E se com o tempo consigo encontrar nos outros beleza naquilo que não é óbvio, naquilo que foge ao padrão, encontrar beleza no que antes me parecia abjeto, não me permito tais lisonjas comigo própria, porque edifiquei-me na impossibilidade de alcançar o belo.
Eu sou a falha, a fenda, o Frankenstein da materialização física, o Mr. Hyde do Dr. Jekyll e não há perdão possível, nem campanha de sensibilização positiva que me faça olhá-lo de diferente forma.
Este meu corpo torto sou Eu. Este meu corpo oblíquo não é um duplo caótico e desprezível do meu verdadeiro Eu.
O meu Eu gerou-se no mesmo ventre, gêmeo univitelino deste corpo torcido.
Passaram quase três horas. Escrevi meia dúzia de linhas. Rabisquei as duas cenas seguintes num caderno, para justificar tanto tempo perdido, mas não consigo abrir o diabo daquela porta, fazer a personagem entrar naquele quarto, confrontar-se com as perdas, com a memória do que foi e que não poderá voltar a ser.
Não consigo rodar a maçaneta e escrever as duas cenas finais.
Por esta altura, parece impossível fazê-la perceber que não vale a pena tanta resistência. Nada disto é real, nada disto é materializável fora da minha cabeça, nada disto existe para além dela, a personagem, e de mim, a sua criadora.
Sinto-me alvoroçada, como se aquilo que estivesse ali para acontecer, aquilo que eu estou prestes a fazer suceder, não fosse apenas um amontoado de palavras que se organizam numa estrutura pensada, num documento guardado no meu computador. A minha pulsação está alterada, a minha respiração - inspirações e expirações breves, atabalhoadas - comporta-se como se antecipasse um grande acontecimento, a chegada de uma notícia decisiva. Um beijo de uma boca que se aproxima, a notícia de uma morte inesperada, o anúncio de uma saída digna disto tudo.
Mas sou só eu a viver mais um dia da minha vida. Banal, trivial e previsível. Eu sentada numa cadeira, no escritório, frente ao computador. E aquilo que faço aparecer sem qualquer magia na tela do computador são apenas palavras. Só palavras.
Palavras que fazem andar, abrir portas, chorar baixinho, quase sem som. Palavras que percebem as camadas complicadas de um olhar medroso, palavras que confrontam com o silêncio, a ausência, palavras como facas, que retalham, esventram, fazem sangrar, palavras como caricias num rosto que não as esperava. Palavras que sobressaltam com um punhado de letras. Palavras num orgasmo que faz estremecer, descontrolar, perder o pé por segundos, para logo flutuar em águas tépidas e calmas.
Palavras que submergem um filho em águas profundas, palavras que o resgatam com um abraço líquido, beijos no rosto, mãos cravadas na carne.
Escrever é remoer durante dias nos contornos daquele universo que nos habita, um universo paralelo ao da nossa vida real, para logo depois se ficar consternado frente a uma linha de texto incompleta, pendente da sua vontade, com o nosso coração a bombear sangue pelo corpo todo a uma velocidade furiosa, com a nossa respiração percussiva a ribombar nos ouvidos como banda sonora.
Escrever é os dedos pousados com afeto numas quantas teclas do computador, refreados pela trela que lhe colocamos de correr arrebatadamente até à palavra FIM.
Quanto tempo é muito tempo? Quanto tempo é tempo demais? E poderá o tempo ter um tal efeito corruptor que a sua passagem nos deixe danificados para sempre?
Ainda adolescente acho que já tinha a noção, embora de forma inconsciente, como uma presença que se movia sub-repticiamente ao meu redor, de que me deveria proteger daquilo que queria, porque aquilo que eu queria não era para mim, não era coisa que eu devesse querer.
Na tentativa de iludir esse meu querer, escolhi caminhos, estradas e becos de vida que, como se costuma dizer, não lembram ao menino Jesus. Se é possível alguém fazer tudo errado num percurso de vida, é bem capaz de o ser. Eu pelo menos tentei.
Escrevi o meu primeiro romance a meio da minha década de vinte. Um calhamaço histórico, escrito numa fúria desenfreada, sem filtro e cada dia em que me sentava para escrever no computador, era como entrar em transe, mergulhar num universo que me absorvia, me puxava pelos pés, não me deixava escapar. Não o fazia em segredo, mas não era algo que gostasse de me gabar. Fazia-o porque precisava, porque me sentia impelida a fazê-lo. Uma espécie de urgência aliada à necessidade de escapismo.
E no precisar parece que não há arte.
Mas há algo de perverso na escrita, na criação de mundos, de universos paralelos. Quando se tem de regressar ao mundo do Aqui e do Agora, instala-se uma solidão medonha e dessa solidão nasce uma vontade mesquinha de encontrar alguém que seja como nós, que veja o mundo como nós, que use os mesmos óculos de ver a realidade, uns óculos iguais aos nossos. E quanto mais escrevemos mais nos afastamos do real, mais as personagens encerradas dentro do disco rígido do nosso computador deixam de ser letras numa página branca, ganham formas e reclamam do nosso abandono quando pomos fim à vida que lhes criámos.
Tentei de todas as formas que conhecia na altura (e também agora) dar-lhes uma oportunidade de vida e, certamente, também curar o meu ego ferido por um querer que não me era devido. Dos muitos envios a editoras ao longo de duas décadas, os dedos de uma mão chegarão para contar as respostas obtidas. Entre os Nãos simpáticos e o silêncio, eu sabia o que deveria fazer.
Parar.
Meses passados de um doloroso luto ─ que não é apenas luto, mas crime também, pois não tive eu de matar personagens, incendiar e terraplanar mundos, votá-los todos ao esquecimento, ao abandono ─ tento ser uma pessoa normal, brincar às pessoas normais. Ter um trabalho normal, gostar de coisas normais, conversar sobre assuntos normais. Mas há algo na minha natureza profundamente anormal.
Volto ao mesmo. Caio, esmurro-me toda, levanto-me, sacudo-me e, raios me partam, volto a cair meia dúzia de metros depois. É um estado de dissonância cognitiva permanente, em que de estado transitório, habito o Estado Nação da Dissonância.
Mesmo quando não escrevo, seja sentada a um computador ou num caderno de rascunho, aquilo germina, ganha formas, voz e corpo, arquitetura e cheiro, sons distintos. Estou a conduzir, estou nas aulas, estou no trabalho, estou no supermercado, estou a ver uma parvoíce qualquer no telemóvel, e uma frase sai de uma boca, um medo obscuro revela-se num deles, um prédio monta-se, como um lego, numa paisagem urbana, uma comida feita com amor é levada à boca por alguém sem fome no seu desalento. Estas histórias crescem ao meu redor como ervas daninhas num inverno chuvoso, agarram-se-me às pernas, como uma hera e em menos de nada cobrem-me o corpo, a mente, não deixando qualquer nesga de mim a salvo.
Ao fim de três romances escritos, de duas décadas passadas, percebo que o impacto que a escrita e a solidão que lhe vem associada, o distanciamento criado pelos universos em que me levo a habitar, as dores de cada uma daquelas pessoas que, não sendo pessoas reais, vivem estranhamente comigo, me estão a causar um dano tal que, por esta altura, me parece um dano irreversível.
Em mim vivem pessoas, morrem pessoas, edificam-se edifício, bombardeiam-se outros, experienciam-se amores colossais, vivem-se amores ingénuos e banais, têm-se dúvidas atrozes, medos mesquinhos e medos dilacerantes, cantam-se músicas, dança-se e chora-se, desenterram-se memórias, criam-se novas e…
Num direto televisivo de um canal argentino neste início do mundial no Qatar, um grupo de adeptos argentinos, que rodeava o jornalista de serviço, começou a entoar um cântico que rapidamente se demonstrou ser um cântico racista e transfóbico dirigido à seleção francesa de futebol masculino.
Um cântico ensaiado, estudado, com direito a rimas e tudo. Uma pequena obra de arte poética racista.
O repórter, percebendo o conteúdo lírico da arte em questão, tirou-lhes a antena, o microfone. Mas tarde demais.
Apanhando a notícia do sucedido em órgãos de comunicação portugueses, surpresa das surpresas, a maioria dos comentários, embora recriminassem o sucedido (antagonismos com a seleção francesa justificam esta benevolência), justificavam os cânticos com um simples: «É mau, mas é verdade.»
No geral da ofensa, o facto dos jogadores franceses serem maioritariamente negros, era sinónimo de virem todos de Angola (não serem franceses). No entanto, embora os cânticos visassem a seleção francesa, tinham como alvo particular o jogador Kylian Mbappé. Dele, referiam o facto de os pais serem de origem nigeriana e camaronesa e dele ainda assim ser considerado francês. Faziam ainda referência ao rumor do jogador namorar com uma mulher transsexual (em termos que nem uma criança do primeiro ciclo acha adequados).
Uma aberração ofensiva que ainda assim ecoava positivamente por estas bandas. Lia aqueles comentários e pensava como a distribuição de melanina tinha um tal poder de limitar fronteiras, excluir cidadãos, ostracizar uns e, paradoxalmente, incluir outros sem reservas. A melanina tinha o poder de incluir ou excluir alguém destas comunidades imaginadas que são os nossos países (países ocidentais), como se países, comunidades fossem clubes privados com regras dúbias, bares de jogo clandestino numa cave bafienta.
Mbappé nasceu em França, é cidadão francês. Os pais nasceram fora de França e isso parece ser fator de preocupação para os racistas de serviço. No entanto, o que é isso de ser daqui ou dali? Até onde tem a árvore genealógica de recuar para alguém ser considerado de determinado sítio?
Se o teu primo branco nasce em França dos teus tios portugueses, foi registado em França, tu dizes que ele é francês, mas se Mbappé nasce em França, filho de pais nigeriano e camaronês, tu tratas de o excluir automaticamente do país França (um cidadão de lado nenhum ou um cidadão de uma geral África).
Claro que não há preocupação com os familiares diretos de Griezmann (também jogador da seleção francesa). Griezmann (graças a deus) foi presenteado com uma menor distribuição de melanina. Interessa lá saber de onde diabo vieram os pais. O caso não se coloca, mesmo que os ascendentes do jogador não sejam franceses.
Há uma exclusão automática de uma comunidade baseada unicamente no tom de pele. E se te perguntam: és de onde? E respondes França, Portugal, Espanha ou Itália, dependendo da tua melanina, pode surgir a pergunta sequente à tua óbvia resposta: Mas de onde és MESMO?
E o tempo passa e isto é tudo tão (e cada vez mais) estapafúrdio. Não se coloca a questão para estes adeptos dos jogadores terem ou não qualidades como jogadores, na elaboração dos seus cânticos de apoio (?) à sua seleção. No meio de uma falta de noção e empatia (numa quase psicopatia), seguem a opção (que não deveria sequer existir) da ofensa racial, da ofensa sexual, reduzindo o adepto de futebol a um ser grunho estereotipado.
Mbappé, devido a ofensas racistas no passado, tinha já colocado a possibilidade de abandonar a seleção francesa. E assim são os bullies, sabem onde apertar para fazer doer mais. Perpetuam um ciclo de ofensas, solidificam (mesmo que inadvertidamente) movimentos nacionalistas racistas e xenófobos, deixando para trás um mundo onde nenhum cidadão empático gostaria de viver. Um rasto de destruição.
E mesmo dentro de portas dessa comunidade, quantos seres humanos não passaram de incluídos a excluídos dependendo dos resultados das suas atividades?! De português de gema a africano de lado nenhum se o golo entra ou não entra, se foi decisivo para a vitória ou se, pelo contrário, foi decisivo para a derrota.
E baseamos as fronteiras de um país, a pertença a uma comunidade nestas migalhas de coisa nenhuma, fazendo cidadãos viverem uma vida de ostracismo, sentimento de não pertença, tudo porque a melanina não se enquadra na nossa paleta de cores pré estabelecidas.
Num evento desportivo já inqualificável por falta de adjetivos adequados, isto é apenas mais um parágrafo no Mau Demais.
Fazia um scroll desinteressado no telemóvel numa rede social, quando me apareceu a notícia da divulgação do prémio Saramago 2022, entre polícia na universidade, Ronaldo, Qatar e a guerra na Ucrânia.
Abro a notícia do prémio literário e a primeira coisa que me saiu, alto e a bom som, sem filtro prévio, foi:
─ Mais um gajo!
Mas apontar o óbvio, mesmo usando dados que suportem esse óbvio, só traz dissabores. Não faltarão os guardiões da meritocracia, da justiça da qualidade, do valor do vencedor. Se ganhou, é porque era o melhor, dirão alguns.
Mas hoje acordei teimosa, por isso, aqui vai. Peguemos nos principais prémios literários portugueses e de língua portuguesa. Refiro-os como principais pois são os que terão um maior prémio monetário e são também os que trarão aos vencedores uma maior notoriedade.
Temos o Prémio Leya, com um valor de 50 mil euros, instituído desde 2008. Durante o período de 2008 a 2022 (sendo que em alguns anos o prémio, por decisão do júri, não foi entregue), ganharam o galardão 7 homens e 2 mulheres - 2 mulheres num total de 9 vencedores.
De notar que a própria composição do júri é também, a nível de género, bastante díspar. Começaram em 2008 com 6 homens e 1 mulher (7 membros) e hoje em dia estão com 5 homens e 2 mulheres.
Avancemos para o Prémio Saramago, que é um prémio bienal, atribuído desde 1999, com o valor de 40 mil euros. Dos 12 vencedores até à data, apenas 2 mulheres ganharam o prémio desde 1999. Ver o nome do vencedor de 2022, o escritor brasileiro Rafael Gallo, nem espanto causa. Surpreendente é ler os comentários à notícia do vencedor. A celeuma pelo anúncio não estava ligada ao facto de ser mais um homem a vencer o galardão, mas sim ser um escritor brasileiro.
Deste prémio, saliento ainda a composição dos membros do júri nesta última edição - 8 membros, sendo 5 deles homens. Esses 5 homens eram todos eles antigos vencedores do prémio em questão.
Para completar aqui este apanhado de prémios, refiro o prémio Oceanos, prémio que começou por se chamar Prémio Portugal Telecom e que é um prémio para autores de Língua Portuguesa, atribuído neste momento no Brasil, com o valor total de 250 mil reais (a distribuir entre os 3 primeiros lugares). Entre 2003 e 2021, dos 19 vencedores (primeiro lugar), apenas 3 mulheres conseguiram ganhar este prémio.
Remato com o Prémio Camões, prémio atribuído desde 1989, pelos governos de Portugal e Brasil, com o valor atual de 100 mil euros, pelo conjunto e importância da obra dos autores vencedores. Em 34 vencedores, temos 7 mulheres.
Extravasando as fronteiras da língua portuguesa e dos prémios para autores em língua portuguesa, deixo apenas os dados dos vencedores do Prémio Nobel da Literatura: 119 vencedores, 17 mulheres.
Ora, com esta pequena e singela análise não pretendo aferir que os vencedores de todos estes prémios durante todos estes anos não serão escritores capazes. Longe de mim sugerir tal coisa. Muitos deles são habitués das minhas estantes, muitos deles são presença constante nas notícias que leio, nos feeds das minhas redes sociais. Mas, tê-los a todos como presenças habituais nos meus mundos ficcionais, deixa-me um travo amargo na boca. Eu, mulher, consumo muita literatura escrita por homens. Eu, mulher, levo o meu tempo a ver o mundo pelos olhos de um homem, de muitos homens. Eu, mulher, consumo histórias sobre mulheres, escritas por homens.
─ Ah, mas são eles os melhores. Se ganharam, devem ser os melhores de todos os candidatos.
─ Serão?
Temos prémios literários decididos quase exclusivamente por homens e ganhos por homens. Temos publicações nas maiores editoras movidas por esses prémios, carreiras que se agigantam à conta desses prémios e o que sobra é uma visão unilateral do mundo, uma visão masculina do mundo. E o mais engraçado disto tudo, o mais estúpido disto tudo é que a maioria dos leitores, a maior percentagem daqueles que lê de um a mais livros por ano, é feminina.
No meu mestrado de Escrita Criativa na Faculdade de Letras em Coimbra, 80% dos alunos do meu curso são mulheres. Daqueles que querem escrever, daqueles que querem melhorar capacidades, procurar uma identidade literária e poli-la, 80% são mulheres. Mas mulheres também elas já afogadas em muita literatura masculina, possivelmente já moldadas por muitos anos a ver o mundo através de óculos masculinos.
E não deixo sugestões para uma mudança neste paradigma. Vislumbro apenas fragmentos da engrenagem por detrás desta gigante máquina que é o mundo editorial e mesmo assim consigo concluir que sou demasiado velha para acreditar em mudanças.
As aparências iludem. Os rótulos enganam. Chegando-se ao momento da confrontação, há que se ter hombridade e se admitir que o que nos levou a um lugar especial não foi uma motivação pertinente, mas a busca de um entretenimento fácil.
Mas ainda assim chegamos lá, mesmo que por atalhos esconsos.
Há um ano atrás, num sábado, estava entediada. Chovia, não tinha nenhum programa especial marcado, estava em casa sem nada para fazer (podia ter lido um livro, mas o tempo lá fora chorava por algo mais básico e reconfortante) e meti-me a coscuvilhar opções na Netflix. Apareceu-me, entre outras coisas, uma série sueca chamada Young Royals. Pela descrição, parecia-me uma daquelas séries teens, tipo Elite, mas deixei-me convencer por duas razões: era uma série sueca e sinto-me cativada (de uma forma entre o inexplicável e o absurdo) pela Suécia e era uma série com uma temática gay e sinto-me cativada (de uma forma entre o inexplicável e o absurdo) por toda a iconografia gay desde que era adolescente (coisa que foi há muitos, muitos, muitos anos atrás).
Eram seis episódios e… vi-os todos nesse mesmo sábado. E, nesse dia, nesse malfadado dia, deu-se um fenómeno sobrenatural que ainda perdura. Nunca na vida tinha revisto uma série (já tinha revisto filmes, mas escassas vezes e é raro reler livros – há muitos filmes e séries para ver e muitos livros para ler, para se perder tempo com revisitas). Mas, desde esse nubloso dia, já revi a série Young Royals umas quantas vezes.
Porquê?
A escrita para mim é coisa de grande importância. Já estudei cinema, com o intuito de aprofundar a disciplina de escrita de argumento, estudo escrita criativa neste momento, tentando manter um arnês e uma trela, em jeito de subjugação, numa área querida mas que não consigo ainda dominar ou levar descontraidamente a passear.
Por vezes, quando «consumimos» produtos audiovisuais, deixamo-los pelo meio, não prosseguimos, achamos entediante ou repetitivo e não conseguimos perceber a razão. Normalmente uma das razões disso acontecer passa pela escrita deficiente desses produtos. Quando nos deixamos apanhar por algo, quando rejubilamos, nem percebemos a mestria daqueles que, com muita habilidade e talento (e através da escrita), montaram aquilo que nos levou ao céu.
Esta série está, acima de tudo (mas não só), muito bem escrita. O argumento é de Lisa Ambjörn e das irmãs Forsman e espanta-me a capacidade de, no que parece um curto espaço disponível (6 episódios) tanto acontecer, sem nunca cair no previsível, no cliché, no forçado e, acima de tudo, no inverosímil. É uma montanha russa, mas, ao contrário das montanhas russas, em que tudo nos passa pelos olhos a correr, sem permitir tempo para ver, pensar, absorver, esta montanha russa tem muita atenção aos detalhes. E são esses detalhes que, numa fabulosa soma, transformam este produto audiovisual numa obra de arte.
Assim, a escrita é espantosa. E o resto?
O diabo do resto também. Uma realização excecional, com uma cinematografia em que os movimentos de câmara, os jogos de cores, escolha de certos planos aproximados parecem componentes de uma orquestra em absurda sintonia em busca da exaltação. A sonografia também me pareceu excelente, com uma gestão de silêncios e som e uma escolha da banda sonora sempre pertinentes (não é irritante quando encharcam filmes e séries com uma banda sonora clássica básica, a puxar a lágrima, mas que, ao invés de fazer chorar, dá vontade de espancar alguém?).
E depois, o elenco. Os atores. Aqui entra um dos fatores que, inicialmente, mais me cativou, por uma razão inesperada. Temos um grupo de jovens diferentes uns dos outros, com aparências diversas, como em qualquer escola e… inesperadamente (pelos padrões da indústria audiovisual) borbulhentos.
Se imagino Edvin Ryding, o ator principal, numa série americana? Imagino, dado que ele é um talentoso ator. Mas, carregadinho de base na cara. Aquele rosto, tal como aparece na série, seria rejeitado fora da industria audiovisual europeia. Demasiado acne, demasiada imperfeição.
A opção de ter os atores tal como são, com acne, com cicatrizes, cultiva uma maior identificação com os espetadores, pois no público estarão adolescentes e estarão outros, tal como eu, que já não o são, mas já o fomos. É mostrar o ser humano nas suas facetas diversas, mas ainda assim, mostrando a beleza dessas mesmas facetas.
Tirando a questão do aspeto natural dos atores, todos eles são excelentes e digo-o sem exagero. Edvin, apesar de ter uns 19 anos, é já ator desde pequeno. Omar, embora estreante, não se percebe ponta de inexperiência. Depois temos Mälte. Se temos vontade de agredir o ator que é o vilão (?) da série, parte dessa vontade nasce da capacidade irrepreensível de um ator desempenhar esse papel.
Assim, no dia em que saiu o trailer da segunda temporada da série, que estreia a 1 de Novembro, digo-vos apenas que:
Parece uma série para jovens adultos, mas…
Não é só uma série para jovens adultos!
Uma soma de bem fazer em várias áreas, que culminou num «produto» de qualidade.
É um dos produtos televisivos mais bem conseguidos que tive a oportunidade de ver nos últimos tempos.
O mundo é um lugar imenso e simultaneamente uma pequena vilória provinciana. Sabemos o que certas celebridades do outro lado do mundo comem e bebem, de que gostam, de que falam, com quem fazem amor e a quem odeiam e sabemo-lo como qualquer bom coscuvilheiro da aldeia. Mas, num paradoxo com esta aparente proximidade (de um eu, tu e eles, transformados com facilidade num nós), é possível que alguém se esfume sem deixar rasto, que alguém que ontem era, hoje já não o seja. É possível que um Ele se mantenha um Ele, longe e teimosamente afastado de Nós.
Sigmund Krähe é um compositor alemão. Quando digo é, no presente do indicativo, estou a dar um grande salto de fé assumindo que ainda vive, que respira entre nós.
Até há um ano e tal atrás, seria possível encontrar no youtube centenas de composições suas, num canal em nome próprio, que não cheguei a conhecer. A maioria das composições são para órgão de tubos – dramáticas, obscuras, mas não demasiado rebuscadas. Algumas pecarão mesmo pela simplicidade, assemelhando-se a bandas sonoras de filmes de mistério e fantasia. Demasiado sintetizadas, num registo já ouvido? Talvez. Mas ainda assim com um travo épico que, pessoalmente, me fascina.
Nada de novo no mundo. Um artista a usar uma plataforma global para difundir a sua música. Um nome associado a centenas de registos musicais e nada mais.
Até há um ano. De um dia para o outro, Sigmund e a sua música desapareceram. O canal desapareceu do Youtube, apagado pelo autor ou pela plataforma. A partir daí começa a especulação: o que acontecera a Krähe e à sua música?
Como pode alguém ser e não ser? Ser apenas um nome, ser centenas de peças musicais, ser ouvido por milhares de pessoas, ser comentado, apreciado e também desdenhado e, num segundo, deixar de o ser? Deixar de ser para Nós, deixar de existir enquanto ser global, enquanto artista, desvanecer como um Houdini?
Uma das minhas professoras de mestrado, falando dos escritos dos alunos mantidos na «gaveta», diz-nos provocadoramente que aquilo que fazemos não é arte. E não fala da qualidade do que escrevemos, pois desconhece se a temos ou não ou sequer se tal coisa, a qualidade, é coisa quantificável.
Do que ela fala é da necessidade de haver uma comunidade que usufrui, que está envolvida na experiência, no ritual de fruição de uma peça de arte. Sem o outro não há arte.
Sigmund Krähe tinha o outro, o seu público, fazia arte, mas decidiu (decidiram por ele, morreu, enlouqueceu, aborreceu-se?) subtrair o estatuto de arte àquilo que fazia. Desaparecer com tudo. Sem o seu público, acabou-se a arte.
Acabou-se?
Bem, muitos dos seus seguidores tinham guardado uma substancial parte das suas composições e, chocados com a descoberta do canal apagado, com o passar dos dias e nada acontecer (um regresso noutro canal, noutra plataforma, qualquer coisa), decidiram criar canais para fazer reupload das músicas que tinham guardado para usufruto pessoal.
Um ano passado, são vários os canais com a música de Krähe e ninguém a vir reclamar direitos autorais da mesma. A arte perde o direito à maternidade mal nasce, torna-se pública, anda de mãos em mãos, corpo perdido numa orgia.
Mas, será correto? Se a vontade de um autor é desaparecer, ele e a sua arte, será correto ressuscitá-la para o mundo contra a sua vontade?
Pergunto sem malícia, sem ter uma resposta em mente. Porque se escrevo sobre isto é porque ouvi as músicas lançadas ao mundo por outras mãos que não as do compositor. Mas há em mim o egoísmo de achar que aquilo que faço, que crio, embora precisando dos outros para SER, é maternalmente meu.