Fui procurar na internet informação sobre um modelo de arma para um texto que estou a escrever. Introduzi no motor de busca: “Que armas usa a PJ?” Depois de explorar os resultados apresentados, de um site pulo para outro, procurando dissecar os componentes de uma pistola Glock 26.
Entretanto, pesquiso também as partes que compõem o cérebro humano. Quero saber que partes do cérebro serão afetadas por um tiro na têmpora direita.
Balanço entre dois separadores de pesquisa: um com um cronograma, como as instruções de montagem de um móvel do Ikea, que mostra todas as partes de uma pistola Glock, com respetiva legenda das peças em inglês, e outro separador onde o cérebro humano é apresentado por zonas e cores, para melhor se diferenciarem os lobos que o compõem. Neste vai e vem, dou-me conta de que o histórico do meu motor de busca da internet é esquisito. Esquisito e suspeito.
Não muito tempo antes, para uma outra história, investiguei sobre a morte por afogamento, sobre um naufrágio catastrófico no século XIX que levou à morte mais de cem pescadores; num outro texto, a investigação incidiu sobre plantas venenosas mortíferas. De uma que me cativou, por se encaixar no enredo que pretendia para a história, pesquisei a fundo sobre os seus componentes e respetivos efeitos se ingerida pelo ser humano. “Quais os efeitos do consumo de acónito?”
Mas as minhas pesquisas recentes já passaram por ainda mais suspeitas questões ao Dr. Google: "esfaqueamento do pescoço com perfuração da veia jugular; decomposição de cadáveres, estágios de decomposição; exames toxicológicos após autópsias para perícia legal; mesas de autópsia, frigoríficos funerários, disciplinas universitárias na especialização de medicina legal, ataxia, lesões medulares após acidentes de viação", entre outras pérolas de curiosidade.
Com um histórico destes, dei por mim a perguntar-me, num tom de brincadeira, como seria se alguma coisa acontecesse, alguma coisa má que fizesse a polícia ter de vasculhar o meu histórico do computador? Como poderia eu explicar estas pesquisas? Poderia sempre alegar que nenhum criminoso seria assim tão descuidado com a sua curiosidade, mas o certo é que temos tido conhecimento de histórias de alguns que já o foram – comicamente descuidados.
Será a minha curiosidade, enquanto pessoa que escreve, mais mórbida do que a de um criminoso? Será a minha curiosidade semelhante à de todos eles, criminosos?
Numa volta completa ao ciclo da curiosidade, decido um dia escrever um conto sobre isto: sobre um escritor caído nas malhas policiais devido à sua curiosidade sem limites.
A vida real está mais próxima de ser um filme do Manoel de Oliveira do que de um qualquer K-drama.
E talvez por vivermos num loop, mesmo que acelerado, de rotina e mediania, se instale uma necessidade (incontrolável, patológica) de escape.
Quando era adolescente, esse escape dava-se com a novela da noite, onde havia drama, romance, conflito, confusões e muita agitação. Os livros também serviam para isso, mas com a novela era tudo levado aos extremos da suspensão da realidade, era tudo muito, uma apoteose de excessos. Uma mesma história que se fazia render por meses e nos apanhava frente à televisão, obedientes, todas as noites.
Mas as décadas de 80 e 90 já lá vão e, como dizia o poeta, mudam-se os tempos, mudam-se as vontades. Hoje em dia, há menos paciência para se esperar religiosamente por um episódio diário de uma novela, à hora marcada, e muito menos vontade de ser agarrado por uma mesma história, partida e retorcida de todas as maneiras e feitios, durante meses a fio.
Nos tempos modernos da rotina, da réplica apurada, da repetição das mesmíssimas coisas, o escape perfeito, na forma de entretenimento, chegou com os K-dramas, séries televisivas sul coreanas, com uma estrutura em tudo semelhante à das telenovelas, com direito a todos os elementos hiperbólicos próprios das ficções televisivas: sofre-se muito, ama-se muito, sobrevive-se espantosamente a ferimentos supostamente fatais (saraivadas de tiros, facadas várias), tem-se direito a todos os comic relief da praxe, a todas as tensões familiares com reviravoltas inauditas (o Sa-Eon afinal é filho do avô, irmão do suposto pai e tio do irmão), a vilões que navegam entre serem desprezíveis e terem, ainda assim, traços de humanidade, com passados traumáticos que trazem uma maior complexidade à sua vilania.
Os K-dramas, em apenas 12 a 16 episódios, levam-nos por uma montanha russa de conforto esquisito. E é esquisito porque por lá, para além de todos os elementos identificáveis dos enredos televisivos clássicos, temos ainda outros elementos completamente fora da caixa, culturalmente falando. E alguns deles são adoravelmente esquisitos.
Dissecando este Adoravelmente esquisitos, temos um rol de elementos gráficos e sonoros que se apropriam das séries: apontamentos sonoros, típicos da comédia televisiva mais empastelada, como se estivéssemos a ver os Malucos do Riso; entradas gráficas no meio da imagem, animação misturada com imagem real, grafismos de BD, etc., imagem em câmara lenta nos momentos chave, cabelos sacudidos por ventanias que não deviam lá estar. Do que já vi, posso assegurar que todos os K-dramas têm ainda as quase quedas (em escadas, escadarias e sítios perigosamente altos) que são evitadas por uma mão, um braço amigo, que deixa as personagens em posições equilibristas absurdas.
Business Proposal - Netflix
Há ainda a clássica sessão de bebedeira, em que a personagem, em situação vulnerável, chiba-se adoravelmente de todas as suas inseguranças e aspirações. E o que aquele pessoal bebe. É muito álcool ingerido, deixando-nos a nós, portugueses, campões do mundo de consumo de vinho, como uns meninos a olhar para aquelas sessões diárias de consumo alcoólico de fazer tombar mesmo as personagens fofinhas e bem comportadas.
Outro elemento de contraste é a forma como a tensão romântica é tratada. Não haverá ninguém no mundo que demore tanto a meter uma personagem a beijar outra. Parece existir um elemento de quase pudor na forma como as relações românticas são tratadas. E este elemento de não concretização romântica esticado até ao absurdo é, no entanto, aquilo que torna estas séries coreanas tão diferenciadas de tudo o resto que é feito nos mesmos moldes. Temos a interação das personagens, a aproximação física, o instalar do romance, mas o beijo é como o raio de um orgasmo, transportando a ficção coreana para uma espécie de idade da inocência, onde um encostar de lábios causa uma explosão apoteótica nos espetadores (o que não é de admirar. Por norma, numa série de 12 episódios, o cândido beijo chega por volta do oitavo episódio).
Interessante ainda é, no meio de uma estrutura narrativa muito hétero normativa, onde o homem desempenha o papel de cavalheiro que auxilia a personagem feminina, abrindo-lhe portas, evitando que seja atropelada e afins, termos elementos que desafiam os mais rígidos estereótipos de género: mulheres duronas, que chefiam empresas e são brutas e implacáveis, e homens que choram. E o que se chora nos K-dramas. O que há de falta em beijos e cenas de teor mais sensual/sexual, há-o de sobra em choro. As lágrimas rolam faces abaixo de homens e mulheres, as expressões de desorientação e desamparo não têm género e na dor é tudo igual.
O ator Kim Soo- hyun em It's Ok not to be Ok, Netflix.
No que aos homens diz respeito, há ainda o apuramento de uma imagem que, por cá, não está diretamente ligada à imagem clássica do estereótipo masculino: os homens raramente têm barba (talvez algum vilão a tenha), os rostos de porcelana fazem inveja a qualquer mulher que tenha os seus cremezitos comprados em dia, feições esteticamente apuradas a puxar para uma quase androgenia, narizes e bocas perfeitos, altos, esguios, mas musculados. Homens irritantemente bonitos, com uma beleza que desafia os conceitos estéticos ocidentais. As mulheres também são esbeltas, claro está, mas isso, nós, ocidentais, já estamos habituados.
O ator Ahn Hyo-seop
E dentro destas fantasias romântico dramáticas que são os K-dramas ─ homens bonitos a chorarem baba e ranho, beijos adiados até o espetador sentir uma tensão que é já de cariz sexual (mesmo que a concretização seja beijos muito técnicos e puros) ─ , o amor vive na sua única faceta possível, nesta atualidade que nos resta:
Irreal, hiperbólico, como o escape perfeito para a repetição dos dias.