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Quimeras e Utopias

Quimeras e Utopias

Guilty pleasures literários

Sempre me meteu um bocado de confusão esta expressão – guilty pleasure – como se houvesse sempre uma carga de culpa implícita naquilo que nos dá prazer. Como se o prazer, em si, fosse sempre do domínio do pecaminoso e do proibido.

Trazendo este prazer obscuro para o campo da literatura, associamos sempre o prazer culpado com a literatura considerada menor. Da boca dos grandes autores, vemos sair uma ladainha de escritores de culto como referência estruturante dos seus eus literários, imaginamos infâncias rodeadas de pesadas estantes pejadas de clássicos, do chão até ao teto; São-nos referidos Proust, Tolstói, Dostoiévski, Eça de Queiroz como os timoneiros dessas carreiras literárias, como se nunca nenhum prazer impuro lhes tivesse entrado retina e cérebro adentro. O prazer culpado terá assim de sobrar para os restantes leitores menos afortunados pela centelha do talento.

Mas por que é que essa dita literatura menor é considera menor? Será a qualidade da escrita, a qualidade literária ou tão só o género literário como zona limítrofe do que pode ou não pode ser considerado erudito e, como tal, de categoria superior?

Embora os géneros literários não sejam estanques e seja possível uma infiltração genérica em tudo o que se escreve, há, ainda assim, uma categorização genérica implícita na valorização literária: géneros como o policial, o romance romântico, o romance erótico e até mesmo géneros como a fantasia e a ficção científica são considerados literatura menor, independentemente da qualidade literária específica do autor/livro em questão.

Acho que, até entrar na idade adulta, nunca tinha pensado naquilo que escolhia para ler como passível de ser classificado como menor e, mesmo me proporcionando desmesurado prazer, não poderia haver qualquer culpa associada a nenhum dos livros que escolhia ler. Até chegar aos meus 18 ou 19 anos. Até essa idade era leitora de livros comprados, mas também de livros emprestados pela biblioteca. E na inocência das primeiras escolhas li de tudo um pouco, em descobertas muitas vezes aleatórias que me levaram à descoberta de autores como Patricia Highsmith, no seu Talentoso Mr. Ripley, a Edgar Allan Poe e os seus contos fantásticos, passando pelo Saramago – o meu grande crush adolescente, Agatha Christie, e Patrick Süskind no seu perturbador O perfume, Milan Kundera, Isabel Allende e Marion Zimmer Bradley. Por essa altura, a possibilidade daquilo que lia ser considerado menor ou maior não me passava pela cabeça. Ler e gostar de ler parecia-me o suficiente.

Frequentando já o ensino superior, na última metade da década de 90, e rodeada de uma espécie de elite de erudição, fui confrontada pela primeira vez pela possível menoridade das minhas escolhas. “Brumas de Avalon? Isso é literatura a metro”, disse-me uma das minhas colegas de curso. Os quatro volumes de fantasia histórica que compunham a obra de Marion Zimmer Bradley não chegaram a vir parar todos à minha estante, porque aquela interjeição que menorizava a qualidade das minhas escolhas já não me permitiu, em boa consciência, comprar o último volume em falta.

A partir desse dia, fui tentando manter-me dentro das linhas traçadas do Monte Olimpo literário, com algumas recaídas espalhafatosas. Uma tara por policiais nórdicos foi talvez a mais duradoura fuga às linhas estanques da superioridade literária. Entre os meus 30 e 40 anos, lia um policial do Nesbø intercalado com um Dostoiévski, só para não me sentir tão culpada, lia um da Camila Läckberg, seguido de A morte de Ivan Ilitch, para estancar a deterioração da minha sapiência. Cada palavra menor que lia carcomia-me, certamente, o corpo todo, circulando-me pelas veias, invadindo cada pedaço de mim, afundando-me no lodo do prazer proibido.

Até me colocar a questão: O prazer da leitura vinha, em exclusivo, destas recaídas literárias para terrenos obscuros ou eu sentia essa fruição com as leituras consideradas de qualidade superior?

A leitura é coisa tão única que pode levar-me a essa sensação de fruição, de prazer por uma diversidade de caminhos: por vezes sinto prazer com uma leitura que me deixa inquieta, que me confronta com o medo, com o desconhecido, com as minhas fragilidades e hipocrisias; há leituras que me deixam desarrumada, desnorteada, em conflito comigo e com o mundo, outras que me deixam furiosa, histérica, alegre, melancólica, a flutuar num êxtase despreocupado, que me fazem rir para logo me deixar estarrecida perante o confronto com essa minha gargalhada parva, mas não havendo desistência ou arrependimento, por muito diversas que sejam as emoções que chegam com a leitura, todas elas estão dentro do campo do prazer, mesmo quando é um prazer sádico, masoquista ou até mesmo entediante.

Não havendo frete, há prazer, mesmo que haja desnorte à mistura.

Com isto, percebi que havia prazer em cada página lida, não apenas naquelas onde colocava o selo da culpa associada. Almejava regressar a um livro com a mesma ansiedade quer se tratasse de Crime e Castigo ou o galopante O Pintassilgo. O deixar-me levar pelos livros não estava ligado a um género/relíquia conservado dentro de um quarto hermeticamente fechado.

Ainda assim, quando, há uns tempos, peguei numa comédia romântica, fi-lo com alguma culpa, porque uma coisa era gostar de policiais, outra era descer até às profundezas da ligeireza das adolescentes comédias românticas (alerta de ironia). Sentia o meu coração bater furioso a cada virar de página… Porra, o prazer a verter-se das páginas para o meu corpo físico, mas era segredo, não podia ler aquilo, ou até podia, mas não deveria gostar, deveria ser uma leitura como um safari de exploração de selvas alheias, uma leitura como um trabalho académico sobre escrita ligeira e literatura light.

Sónia Pereira, andas a ler Saramagos quase desde que aprendeste a ler, andas a ler os russos quase desde que abriste os olhos, leste os clássicos nacionais com um insólito deleite que causou repugnância aos teus colegas do secundário e agora acabas afundada dentro destas páginas. Que miséria, que desilusão, nunca pensei desceres tão baixo e nunca pensei que o fizesses com um sorriso parvo estampado no rosto.

Red, white and royal blue levou-me de volta a um sentimento primário na leitura, como se trinta anos se tivessem dissolvido e eu fosse aquela adolescente ainda intocada por preconceitos literários, frente às estantes de uma biblioteca municipal quase só minha, a vaguear por entre corredores de livrarias com os seus escaparates que me seduziam, onde uma mão nunca se tolhia no seu movimento exploratório de pegar e folhear um livro só porque o livro era um Isto ou um Aquilo.

Com estes derradeiros parágrafos não quero dizer que todos os livros em que possa pegar sejam, apenas porque chegaram ao prelo e às livrarias físicas ou virtuais, de qualidade indubitável, dignos da minha leitura (presunção e água benta… ), mas tenho de me cobrir da certeza de que décadas de leituras diversas me levam a fazer escolhas que devo valorizar, independentemente do género literário em que são escritas.   

E assim, deixo três sugestões de leitura, três géneros literários muito diferentes, uma vida de culpa velada em três escolhas:

Fantasia Histórica:

Brumas de avalon.jpg

As brumas de Avalon, de Marion Zimmer Bradley  (lido na adolescência).

 

Comédia romântica:

Vermelho.jpg

Vemelho, branco e sangue azul, de Casey McQuiston (lido há um ano).

 

Policial:

A boneca.jpeg

A boneca, de Yrsa Sigurdardóttir. (Uma das minhas leituras atuais.)

 

Mas agora sem culpa.

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