A ficção especulativa dos nossos dias
Uma rapariga está sentada, vestindo apenas roupa interior, entre homens trajados à ocidental e mulheres tapadas dos pés à cabeça, envergando hijabs, capas negras esvoaçantes, como aves de mau agoiro.
Nas imagens, vê-se o deambular da rapariga pelo recinto escolar, depois na rua, para, momentos depois, ser abordada por viaturas (da polícia) e ser detida.
Da parte da Amnistia Internacional vem a informação do espancamento e da violência sexual sofridos pela jovem durante a detenção, depois daquilo que se julga ter sido um protesto contra o código de vestuário obrigatório no país, controlado até às últimas consequências pela polícia dos costumes.
Da parte do porta-voz da Universidade Azad, em Teerão, a informação divulgada é que a rapariga em questão sofre de distúrbios mentais.
Este tipo de revoltas individuais, vistas por nós, ocidentais, afiguram-se como pequenos episódios que nos recordam que, em certas partes do mundo, ainda se vive numa espécie de distopia, em universos sociais dignos de romances de ficção científica. Mas estamos bem, temos as nossas liberdades garantidas e consideramos que aquilo nunca poderia por aqui acontecer.
Quando li a notícia sobre os protestos da jovem Ahoo Daryayee no Irão e os problemas mentais foram dados como justificação, lembrei-me de uma outra história, essa passada no nosso bom Portugal. O ano era o de 1918 e uma mulher da alta sociedade, casada e mãe, resolve fugir com o seu motorista, vinte anos mais novo. O marido, homem influente, conseguiu que mulher e amante fossem perseguidos e apanhados pelas autoridades. O destino dela seria o internamento psiquiátrico compulsivo e o dele, o amante, a cadeia. Na época, vários médicos de renome atestaram as perturbações mentais de Maria Adelaide, a mulher infiel. Egas Moniz, Sobral Cid e Júlio de Matos anuíram em certificar uma loucura que não estava lá. Mas Maria Adelaide, mesmo com a vida destruída, o acesso aos seus bens vedado, não se calou. Falou com a imprensa, escreveu um livro. Após várias investigações jornalísticas, percebeu-se que o internamento psiquiátrico era usado na época como ferramenta corretiva feminina, ferramenta de castigo e de formatação. Centenas de outras mulheres tinham caído em instituições psiquiátricas só por não caberem na malha apertada do comportamento adequado, só por tentarem ter voz própria, opinião própria.
Um século passado, a justificação do distúrbio mental por parte das autoridades iranianas ressoa de uma maneira especial: toda a mulher insubmissa é louca, toda a mulher com voz própria é histérica e maluca.
Mas será esta versão alternativa da realidade, onde as mulheres podem ser silenciadas pelas vontades de um estado religioso ou pelas vontades dos seus maridos, com conivência de instituições públicas, uma coisa datada, do século passado ou, exclusiva, na atualidade, das sociedades consideradas subdesenvolvidas, autocráticas, ditatoriais e teocráticas?
Lia uma notícia sobre Trump ter lançado, há uns meses, uma bíblia a que chamou “God Bless America”, onde colocou desde excertos da bíblia original ao hino da sua campanha eleitoral. E, já se sabe, nenhum movimento de qualquer que seja o candidato a umas eleições é livre de ser um simples movimento. Não há aqui convicções religiosas, puro interesse moral. Há, isso sim, a perceção de se estar num país fortemente tomado por crenças evangélicas. Existem, nos E.U.A., 480 000 igrejas evangélicas, fazendo fé no artigo de Pedro Moraes para a CNN Portugal. Sendo que uma grande parte destas instituições se rege por crenças fortemente conservadoras e, no que aos direitos das mulheres diz respeito, altamente reacionárias, o apelo político a esta crescente franja da sociedade é, ainda assim, previsível. É uma quantidade brutal de gente que pode ser orientada a nível de voto, que tem, na sua crença, um ponto de vulnerabilidade que pode ser, e é, explorado por quem de interesse.
Li, já uns bons anos, o livro de Margaret Atwood, A história de uma serva, passado numa distópica sociedade norte-americana tomada por extremistas cristãos de extrema-direita, onde o papel da mulher é encolhido até ao de parideira sem direitos. Mesmo na época em que fiz esta primeira leitura, nunca vi a obra como uma peça literária de ficção científica, de fantasia ou nem mesmo de distopia. The handmaid’s tale era estranhamente real, possível. Uma das coisas que sempre compreendi ainda enquanto aluna do secundário (long time ago) foi que nenhum direito ou conquista se instalava na sociedade com carácter definitivo e irreversível. As sociedades evoluíam, retraíam, ganhavam direitos, deitavam-nos fora, ora olhavam para todos os seus cidadãos com genuíno interesse, ora expurgavam para as margens os indesejáveis.
A história de uma serva, de Margaret Atwood, Bertrand Editora.
Quando vejo, no Irão, aquela mulher despida, uma espécie de aparição entre os seus lúgubres pares, vejo ainda, no mesmo scroll nas redes sociais, vídeos de uma nova trend, a das trad wife’s, mulheres tradicionais que ficam em casa seguindo ordens restritas dos seus maridos, cozinhando, limpando, cuidando dos filhos, vestindo-se de forma modesta, vejo uma dondoca brasileira apregoar o papel submisso da mulher para com o seu marido, papel inato e certificado por deus, vejo discussões sobre direitos que pareciam garantidos, como se ainda fosse necessário voltar a legislar sobre os direitos reprodutivos das mulheres, vejo um crescendo de comentários religiosos, como se a crença fosse pano que se pudesse ser passado por cima de tudo, desde o genocídio, à violação e abuso sexual, à pedofilia. Tudo.
Nos E.U.A., vejo os direitos das mulheres serem revertidos nos estados mais conservadores, numa forma de controlo feminino quase medieval e, lentamente, uma legislação que parecia de carácter definitivo, torna-se de cariz periclitante, mesmo nos estados mais liberais.
E não deixa de ser interessante como, tanto para muçulmanos como cristãos, os direitos das mulheres são o assunto central das suas crenças. As três grandes religiões monoteístas têm a figura da mulher como obsessão central da sua ideologia. Uma obsessão quase a roçar o patológico. As vontades de deus andam sempre em redor do que a mulher pode ou não pode fazer, dizer ou pensar.
Margaret Atwood, numa das suas obras de não-ficção, fala sobre a catalogação do seu tipo de escrita e afirma que não quer que os seus livros sejam chamados de livros de ficção científica, pois tudo aquilo que escreve pode, de facto, vir a acontecer ou até já ter acontecido em algumas sociedades. Daí o termo da ficção especulativa ser o mais indicado. Não há fantasia na República de Gileade. E a autora sabe-o bem.
E, assim, o seu livro A história de uma serva publicado originalmente em 1985, perde, a cada ano que passa, mais o seu carácter de ficção científica e distópica, para se aninhar na forte possibilidade.
Para acabar, como nota humorística, Margaret Atwood publicou nas suas redes sociais um cartoon que apelava ao voto nas eleições norte-americanas, fazendo alusão direta ao seu livro The handmaid’s tale, onde mostrava como o voto era a ferramenta de libertação feminina. A nota humorística chega quando um outro utilizador comenta, explicando erradamente as bases da história àquela que era a própria autora da obra. Um mansplaining na sua forma mais básica e banal.
Por enquanto, a arrogância desmedida da ignorância ainda é engraçada. Mas até quando?