Eclipse de fogo
Nestes dias, as memórias colam-se à realidade, desdobram-se noutras tardes, réplicas umas das outras, reflexos repetidos infinitamente, como num jogo de espelhos, e aquilo que é o verão, enquanto memória intrínseca de uma pessoa, cimenta-se naquilo que não deveria ser, afasta-se de conceitos como praia, mar, viagens, gelados, diversão infantil, férias, assentando arraiais em terra queimada, cheiro a fumo, uma sensação de claustrofobia florestal, onde a árvore é parede intransponível e ameaçadora.
Vem à memória um olhar para um sol peneirado pelo fumo, vem à memória sons de aflição de quem vê a destruição a chegar-lhe à porta, vem à memória um eclipse parcial na década de oitenta que, vai-se lá saber porquê, se cola às memórias de fogo, talvez pela sua irmandade de cores e solenidade associadas. Mas, pensando bem, ver este sol de terra queimada é como olhar para o céu num dia de eclipse, através de um vidrinho fumado ou de uns óculos especiais comprados na farmácia. O fogo permite olhar-se o astro bestial de frente, filtrado pela bruma de fumo ─ inocente, inofensivo.
A ambiência é laranja, as sombras matutinas escorrem, como se o crepúsculo se apressasse e não desejasse o dia, como se a tarde caísse ao amanhecer. Mas quando a noite chega, apesar dos seus céus rubros, não traz presente digno, apenas um vendaval, um vento ciclónico que confere surrealidade àquilo que de mais banal e corriqueiro existe: a vida lenta e repetitiva da aldeia.
E este medo, que se fez memória de verão dentro de mim, não quer saber se a culpa é dos eucaliptos, se esta monocultura, que nos impingem como floresta, é o réu deste hediondo crime; se a floresta é negócio para as empresas de celulose e para aqueles que combatem os incêndios; se o lobby do eucalipto é força capaz de calar vozes que questionam, de atirar culpas em todas as direções, menos para os lados onde elas deveriam recair; este medo não quer saber se somos um país de piromaníacos, se somos maus ou simplesmente desequilibrados, se a nossa frustração ou solidão é força capaz de incendiar para chamar a atenção, se somos bêbedos, desgraçados e malucos; este medo não procura justificações naqueles que deveriam criar melhores políticas de gestão florestal, deveriam precaver a preservação da vida humana, da fauna e flora, dos milhares de vidas de animais (selvagens ou de companhia) e que, ano após ano, apontam culpados sem nunca procurar ações válidas de prevenção, como se os incêndios fossem o diabo de um cancro no estômago e a solução aplicada fosse uns sais de fruto para a indisposição sentida.
O meu medo alimenta-se do som grotesco do fogo a lavrar, como uma fera gulosa, insaciável. O meu medo vê as aves em debanda, em desorientação, o meu medo enche-se de fumo, sente o ardor nos olhos, os pulmões inflamados. O meu medo já não quer saber, porque para o ano há mais, numa cópia seca, torriscada, nebulosa, até a minha vida acabar.
E o verão, no fim, nada mais é do que este medo primitivo. E, a palavra – Primitivo – é resumo de tudo. Toda esta repetição sem consequências, toda esta perpetuação de uma memória de fumo e fogo, é primitiva, nos vários sentidos pejorativos da palavra.
Mas o meu medo não quer saber.