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Quimeras e Utopias

Quimeras e Utopias

Escritas no feminino - sugestões

Tenho dedicado os últimos meses à leitura exclusiva no feminino e quando se lê apenas no feminino, mais facilmente se percebe as subtis (e não tão subtis) diferenças entre a escrita feminina e masculina. Se posso concluir que as diferenças notadas serão características exclusivas da escrita feminina, obviamente que não. Mas serão certamente mais frequentes ao ponto de se tornarem fatores característicos.

E uma dessas características é a narrativa não totalizante, mais fragmentada, que não procura dar respostas e que se fixa naquilo que a vida é: retalhos, fragmentos, perguntas sem resposta ou com respostas insatisfatórias, felicidade transitória, descontinuidade e confusão. Há uma espécie de serenidade na consciência da impossibilidade de se abarcar o mundo todo e de se chegar a uma felicidade completa e dominante. 

Comecei por ler dois livros (para fins académicos) de não ficção:

Woolf e Auerbach.jpg

 Communities of Women - An idea in fiction, de Nina Auerbach

Um quarto só seu, de  Virginia Woolf

O primeiro livro fala sobre a representação das mulheres, enquanto personagens em comunidade, na literatura, explorando alguns exemplos literários em que as mulheres aparecem como uma comunidade feminina. Apesar de ser um livro já com alguns anos (1978), pareceu-me de grande contemporaneidade. Há um fator de estranheza, ainda agora, quando vemos retratadas, em livro, uma comunidade (seja familiar ou social) exclusivamente ou dominantemente feminina. Mas não sentimos semelhante estranheza quando se passa com comunidades masculinas.

O livro de Virginia Woolf não fala na representação da mulher enquanto personagem, mas é um ensaio sobre a mulher enquanto criadora, enquanto escritora. Publicado originalmente em 1929, este ensaio que é baseado em duas conferências dadas pela escritora na época, embora possa ser visto como algo datado (felizmente, alguma água passou pelos nossos moinhos), ainda assim é essencial para percebermos aquilo que está na base daquilo que a mulher é hoje, como criadora, como autora, na sociedade atual. O presente não é feito sem conhecimento do passado e o nosso passado é aqui, nesta obra de Woolf, sagazmente explorado. E, apesar do passado parecer passado, o melhor é ir olhando para ele, de forma a se evitar que ele teime em ser presente.

Na ficção, li dois livros de duas autoras internacionais e dois livros de duas autoras portuguesas.

Tartt.jpg

O pequeno amigo, de Donna Tartt.

O acontecimento, de Annie Ernaux.

Já tinha lido dois livros de Donna Tartt (O Pintassilgo e A história secreta) e resolvi comprar este livro que, cronologicamente falando, foi o segundo romance da escritora. Donna Tartt reúne duas características que parecem antagónicas, mas que para mim, enquanto leitora, funcionam bem: consegue ser bastante descritiva, demorar um tempo desmesurado em pormenores, e, ainda assim, consegue injetar na narrativa um determinado suspense que transforma os seus livros em page turners. Senti isso n’ O Pintassilgo e na História secreta, mas nem tanto com esta obra. A dada altura confesso que fiquei um pouco desmotivada, sem que isso me levasse a abandonar a leitura. No entanto, quando cheguei ao final, o livro aterrou-me todo em cima. Ao contrário das outras obras da autora, em que havia uma necessidade de tudo ficar explicado e mais explícito, este livro tem esta característica de ser real, como a vida - nem sempre temos resposta para tudo, nem sempre as coisas fazem total sentido e nem sempre as pessoas são exclusivamente boas ou más. É tudo bem mais complicado do que isso. E foi esta incompletude, esta sensação de falta que me fez gostar bastante do livro.

Relativamente ao livro de Annie Ernaux, li-o de uma assentada. Não tenho palavras para descrever os livros de Ernaux. Ou seja, não tenho palavras para descrever o que sinto ao ler os livros de Ernaux. Gasta-se muito o adjetivo brutal, mas será o melhor adjetivo. Brutal. Ernaux é crua na sua escrita e fala-nos com uma espécie de distanciamento necessário. Os acontecimentos de uma vida não são retratados para explorar emocionalmente o leitor. A força do que é descrito está, não na exploração emocional, mas na sua vista banal. Cada vez gosto mais da escrita de Annie Ernaux.  

Bertholo e Canas.jpg

A história de Roma, de Joana Bértholo.

Teoria das catástrofes elementares, de Rita Canas Mendes.

Quando terminei o livro de Joana Bértholo, andei umas horas a cismar pela casa. Depois, abri o bloco de notas no telemóvel e escrevi: há livros que, ao terminar a última linha e fechando-se a capa, dizemos: gostei. Há outros que nos deixam desarrumados.

Bértholo deixou-me assim, como um quarto desarrumado, com tralha espalhada por todo lado. Como já deve ter dado para perceber, não sou muito de conseguir fazer um resumo da história (ou talvez seja capaz, mas não me interessa tanto), focando-me mais neste canal que sou, enquanto leitora (que também escreve). E esta História de Roma mexeu comigo enquanto leitora. Achocalhou-me, desarrumou-me e, placidamente, ficou especada a ver o meu desnorte. Joana Bértholo merece todos os prémios que por aí venham. Quando for grande, quero ser assim: como ela, como Annie Ernaux, como Donna Tartt e também como a minha mais recente descoberta, a Rita Canas Mendes. Quero ser como todas elas.

O livro de Rita Canas Mendes está construído tal como eu mais gosto: capítulos que parecem pequenos contos, numa união narrativa em fragmentos, como a vida numa soma de pequenos/grandes momentos. Como gosto de escrever assim, achei Teoria das catástrofes elementares como uma viagem a um local onde me sinto bem, me sinto à vontade, um local onde há muito o que explorar, mas onde me sinto acolhida no meio do caos. Mais uma vez, é esta característica da vida em retalhos, do incompleto e do indizível, que torna este livro uma agradável surpresa.

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Derry Girls, criado e escrito por Lisa McGee (disponível na Netflix).

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Decameron, criado por Kathleen Jordan (disponível na Netflix).

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Campo de papoilas, com argumento de Ioana Moraru (RTP2, disponível em RTP Play).

Na escrita para cinema e televisão, destaco Derry Girls como a série mais divertida que vi nos últimos tempos. É daquelas coisas que se pode dizer sem medo: está tudo bem nesta série – argumento, realização, interpretação, banda sonora. Tudo. Com uma escrita apurada, Lisa McGee conseguiu mostrar os fragmentos que compõem um país, as suas dissonâncias, as suas brutalidades (a Irlanda do Norte, nos tempos do IRA), inserindo todos estes aspetos como elementos do quotidiano na vida de um conjunto de adolescentes. É daquelas séries que sei que vou rever e, na qual, do alto dos meus 45 anos, encontro reconfortáveis referências e identificações, apesar das diferenças a nível político e social.

Decameron é também muito interessante e com um humor que identifico como muito feminino. Há algo no caos, na desordem e no desespero (retrata a história de várias pessoas durante a peste negra, quando se refugiam numa quinta no campo, para fugirem à doença), que torna a série estranhamente cómica e é essa estranheza do humor no caos que a faz ser tão brilhante. Gostei bastante e vi num fim de semana.

Por último, o Campo de Papoilas tem um argumento que não é convencional. Parece que estamos a ser levados para um lugar, desviamo-nos para outro (que era o lugar onde era suposto estarmos) e depois o filme acaba, deixando-nos a desejar um regresso ao lugar inicial. Fiquei um bocado a pensar naquilo e, a nível de história, estava ali tudo o que realmente era o que deveria ser contado, mas o desenho convencional dos argumentos e das narrativas, no geral, deixa-nos a braços com a vontade de um desenlace romântico, quando o que estava em causa nesta história era outra coisa. O foco era o desconforto de um polícia homossexual dentro de uma corporação policial obviamente homofóbica e tóxica, e quando esse desconforto transforma o polícia homossexual, o molda a esse ambiente, o deixa num limbo estranho de aversão/conhecimento/aceitação ou tolerância por parte dos seus pares. Achei bastante interessante, precisamente por me deixar essa sensação de incompletude e por não preencher os meus desejos narrativos, enquanto espetadora. Escrita pouco convencional e, se não o fosse, o mais certo era não ter pensado mais no filme.

 

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