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Quimeras e Utopias

Quimeras e Utopias

Que nunca a liberdade seja tomada por garantida!

Há onze anos, andava eu a pesquisar para a minha tese de mestrado sobre a publicação de manuais de conduta para mulheres durante o Estado Novo, passando dias inteiros enfiada na Biblioteca Municipal do Porto, entre livros mofentos (no sentido literal e figurativo). Quando mais investigava, mais pilhas de livros me apareciam na secretária. A primeira metade do século XX estava pejada de publicações deste tipo de manuais. Havia uma necessidade óbvia de formar a mulher para que ela encaixasse num molde de submissão, um molde que não permitia extravasamentos. Li páginas e mais páginas de como a mulher se devia comportar, como devia gerir a casa, como devia se submeter ao marido, como devia criar e educar os filhos, como devia ser temente a deus e se resignar (com alegria) ao seu papel de mãe, dona de casa, cuidadora e educadora. À mulher, estava reservada a santíssima trindade: lar, marido e filhos. E era triste ver livros editados originalmente no século XIX (em vários países da Europa), serem considerados, em meados do século XX, nas suas edições e reedições portuguesas, livros de vanguarda para a conduta feminina.

Em 1950, o século XX teimava em não chegar a terras lusas.

E embora as minhas pesquisas tivessem o seu quê de depressivas, sessenta e setenta, oitenta anos pareciam uma eternidade. Eu sentia uma enorme segurança na passagem do tempo. Todo aquele discurso encerrado naquelas páginas era obsceno e feria-me, mas via-o à distância, como uma peça histórica de museu, um mundo e uma visão que tinham ficado no passado.

A situação complicou-se quando comecei a fazer pesquisa bibliográfica para fins comparativos, de forma a estabelecer uma análise de fratura ou continuidade entre os diferentes períodos políticos. Qual seria a visão sobre as mulheres entre 1900 e 1932 (um período que ia da monarquia, à instauração da República, até à implementação do estado Novo)? Seriam aquelas publicações dos manuais de conduta femininos durante a ditadura uma continuidade do que já vinha a ser publicado no início do século ou, num contraste, uma fratura com o passado?

Em cima da escrivaninha da biblioteca, pousaram-me dois livros de Ana de Castro Osório. Um deles, Às Mulheres Portuguesas, publicado em 1905, ainda durante a Monarquia, e o outro, A mulher no casamento e no divórcio, publicado após a instauração da República, em 1911. Ler Ana de Castro Osório era como tê-la à conversa ali ao meu lado, mas num português de outros acordos ortográficos. Não havia bolor nas suas palavras e cem anos faziam-se num nada ali ao virar da esquina. Havia um fulgor combativo, uma necessidade de mudança nas suas palavras e havia ainda uma compreensão de que a mulher não era apenas aquela do seu grupo social e intelectual. Num Portugal rural do início do século XX, a mulher era analfabeta, beata, devota a deus e ao trabalho e à família e Ana de Castro Osório percebia que havia muito por onde a mudança lavrar, que havia muito terreno a desbravar, mas havia nas suas palavras a confiança nessa mudança.

Quando comecei a ler o livro publicado após a instauração da República, A mulher no casamento e no divórcio, acabei por desabar. Não exagero nem estarei a efabular para fins literários se vos disser que chorei. Estava sentada numa biblioteca pública, com um livro com mais de cem anos entre mãos, a limpar as lágrimas que me iam caindo rosto abaixo, para não as deixar macular as preciosas folhas centenárias.

A mulher_Ana de castro osório.jpg

A mulher no casamento e no Divórcio, Ana de Castro Osório, 1911.

Num livro que analisava as recentes alterações jurídicas implementada após a instauração da República, leis que finalmente configuravam o direito da mulher ao divórcio, mas também à educação e ao voto, a alegria de Ana de Castro Osório transpirava em cada linha. Ela percebia que ainda havia muito a fazer, mas a máquina da mudança, a tão necessária transformação do papel da mulher na sociedade, estava em movimento. E aquele tratado feminista em forma de compêndio jurídico fez-me chorar, não pelo que tinha escrito nas suas páginas, mas por tudo aquilo que eu sabia que lhe procederia.

“Minha queria Ana, a seguir virá o caos, a seguir virá o obscurantismo. A seguir serás silenciada, a seguir a tua carreira literária ficará reduzida à literatura infantil, a seguir as tuas palavras serão consideradas um atentado ao pudor, palavras blasfemas, contra a moral e os bons costumes. A seguir estas leis serão revogadas e à mulher restará o lar e a submissão ao marido. A seguir virá o silêncio”.

E se vou esquecendo, por vezes, aquela tarde na biblioteca, tem dias em que as notícias da atualidade a trazem de volta, com a força da necessidade da lembrança.

Naquela tarde de 2013, adquiri o mais precioso conhecimento de toda a minha vida académica: não há liberdades garantidas e irrevogáveis. A luta tem de ser permanente, constante e contínua, porque, mal baixemos a guarda, não faltarão aqueles que se aproveitarão da nossa imobilidade para nos submeter aos seus ideais podres, bolorentos e arcaicos.

Nos cinquenta anos de Abril, só desejo que nenhuma mulher do futuro leia relatos da nossa época com semelhantes lágrimas nos olhos às que verti quando li as sábias palavras de Ana de Castro Osório.

Que as nossas liberdades sejam tesouros que preservemos a todo o custo e que nunca as olhemos com os olhos da indiferença e do hábito. Porque num repente, numa nossa desatenção, a distopia pode fazer-se realidade.

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