Young Royals - os milagres de Santa Lisa
Não serão muitos os casos em que espetadores de séries e filmes saberão quem são os argumentistas por detrás do que acabaram de ver. Quando uma série tem sucesso e se segue uma outra do mesmo criador, talvez aí o argumentista tenha direito, a nível de divulgação e promoção da obra, a uma referência do tipo «do mesmo criador de… », mas nem aí o destaque merecerá sequer a referência do nome. No caso dos filmes, temos ainda muitos casos em que realizador e criador da ideia/argumentista são a mesma pessoa, o que acaba por facilitar o reconhecimento. Mas tirando estas exceções referidas, parece que o reconhecimento de um escritor por detrás de uma obra está como que reservado à área da literatura. Aos argumentistas, mesmo que a ideia do mais espetacular filme e série lhes tenha saído da cabeça, está-lhes destinado um já muito habitual anonimato. Sabemos nomes de atores, com menos frequência nomes de realizadores, mas argumentistas… nem por isso.
E se comecei este texto com este preâmbulo, foi porque vou apresentar uma interessante exceção à regra. Há três anos, dou por mim num sábado chuvoso a tentar descortinar algo novo para ver na Netflix. Apareceu-me uma sugestão de uma série sueca, que me pareceia ser do segmento Young Adult. Nesta área, vou vendo algumas coisas muito selecionadas, porque acabo por achar algumas séries com uma escrita muito pobre e básica. No entanto, fora dos circuitos anglo-saxónicos por vezes aparecem algumas coisas bastante interessantes ou, pelo menos, diferentes de um certo padrão já instalado. Assim, numa escolha que se revelou fatal (pela adição que criou) dou por mim a ver Young Royals. Em 2021, tinha saído apenas a primeira temporada de seis episódios, seguiu-se uma segunda temporada em finais de 2022 e a terceira e última temporada em Março de 2024.
E o que parecia uma série de adolescentes rapidamente se revelou muito mais do que isso. Nos seis episódios da primeira temporada temos jogos de tensão muito bem construídos (embora sempre numa estrutura narrativa clássica), mas sem nunca deixar que a construção de personagens caia em nenhum tipo de estereótipo e facilitismo. As personagens são densas, complexas e, embora haja um aparente antagonista, os protagonistas são, como todos nós, propensos ao melhor e ao pior. Não há maniqueísmos nesta escrita televisiva.
Logo após esta primeira temporada, não só a série ganhou visibilidade como a própria criadora e argumentista, Lisa Hamjörn, se tornou uma figura de interesse nas redes sociais, a par dos jovens atores da série.
Com a segunda e terceira temporadas, a importância de Lisa cresceu de forma exponencial. A série sueca começou a criar uma tal base de fãs, que o destino de personagens e o desenvolvimento narrativo pareciam depositados nas mãos de Hamjörn e esta tornou-se o alvo de toda a atenção dos milhares de fãs da série. Não havia promoção da série sem Lisa, não havia entrevista sem Lisa, não havia fandom sem a Santa Lisa.
Se na segunda temporada temos seis episódios de pura tensão e de nervos em franja, com a terceira e última temporada podemos finalmente perceber a qualidade da escrita no seu todo.
E se os fins são sempre algo agridoces, o fim desta série não escapa à regra. Doce, porque finalmente se consegue ver a história como um todo, amarga, porque acabou para sempre.
No entanto, para mim, enquanto pessoa que gosta de escrever, é maravilhoso perceber como uma singela série juvenil tem um plano de escrita que engloba todas as temporadas, que não deixou nada ao acaso e que onde tudo parece pensado desde o início, tendo sempre em vista apenas os 18 episódios, sem ambições de novas temporadas que só destruiriam a história. E este plano passa por aspetos de escrita que englobam coisas como o guarda-roupa, a luz, elementos que acrescentam camadas à narrativa e suas personagens. Mesmo pequenas coisas que pareciam ter ficado penduradas, palavras ditas que pareciam não ter levado a lado nenhum, ataram-se na perfeição com o que ainda estava para vir. Há ainda dois outros aspetos de escrita que me interessaram bastante: as questões dos paralelismos e do simbólico. As três temporadas têm muitas cenas espelho, que caracterizam personagens, através do paralelo (seja pela semelhança ou contraste), que revelam mais sobre a complexidade daquelas pessoas, do que os diálogos em si. O simbólico está presente em toda a série, mas, no último episódio, é interessante como a escrita através do símbolo acaba por revelar o desenlace final de toda a trama, mesmo quando tudo parece ir em sentido contrário. Nos últimos dez minutos, apesar de Lisa ter levado o espetador até a um beco de medo, desespero e choro, ela já nos tinha mostrado antes, através do simbólico, como nos estava a enganar, como tudo iria acabar.
Também a introdução de elementos de reflexão está muito bem-feita, entrando na escrita da série sem ser de forma forçada. As questões das microagressões raciais, a homofobia, as diferenças de classes e respetivos privilégios de umas em relação às outras, as doenças mentais e seus impactos, as adições, etc., todas estas coisas que fazem parte do nosso dia-a-dia e que vemos introduzidas na escrita desta série com muita elegância e mestria, sem parecer que se está a introduzir elementos de exploração emocional só porque sim.
Por último, o que nesta escrita mais me fascinou foi a construção de personagens “reais”, no sentido em que ninguém é absolutamente bom ou mau. O arco das personagens, da primeira à terceira temporada, é perfeito. Tratando-se de adolescentes, nem todos os comportamentos, mesmo dos dois protagonistas (Wilhelm e Simon), serão sempre exemplares, consistentes, lógicos. E, no que diz respeito ao vilão/antagonista, passamos de um ódio visceral por aquela personagem irritante e miserável (August), para uma total compreensão da gênese daqueles comportamentos. Esta brincadeira com a perceção dos espetadores através da construção da personagem é fabulosa e, acima de tudo, muito relacionável. Há um fator de identificação, a dada altura, com toda e qualquer personagem. Todos nós já fomos bondosos e execráveis, amorosos e impacientes, altruístas e profundamente egoístas e é esta sensação de estarmos perante pessoas verdadeiras, com histórias verdadeiras, que cria este fenómeno de popularidade da série.
E foi este desenvolvimento das personagens, ao longo de 18 episódios, que me revelou a qualidade da série. Quando vemos o último episódio e nos vemos remetidos para a lembrança do primeiro episódio de todos, percebemos como tudo faz perfeito sentido, mesmo dentro de todas as ambivalências próprias de qualquer adolescente ou jovem adulto. O final é como o desenlace óbvio, mas que, ainda assim, não estávamos à espera.
Os fãs da série, antes da estreia da última temporada, rezavam a Lisa Hamjörn para que não os dececionasse. Se ela não lhes podia dar mais do que estes últimos seis episódios, pelo menos que estes «terminassem bem». E, depois de muitas preces, Lisa atendeu-os. Com um absoluto domínio de gestão de tensão e de construção de personagens, Lisa e a sua equipa de escrita fez o milagre.
Young Royas acabou, mas foi majestoso enquanto durou.
Depois desta série, de ter visto algumas entrevistas com a argumentista, a vontade de expandir a minha escrita para os domínios do argumento aumentou. Por vezes não é necessário um aparato disruptivo para se fazer algo com qualidade. E, por vezes, também não é necessário abandonar modelos clássicos de escrita televisiva para se fazer algo com interesse.
Assim, quando for grande gostava de fazer milagres como a Santa Lisa.
Lisa Hamjörn
Omar Rudberg e Edvin Ryding (6 episódio da 3ª temporada, Young Royals).