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Quimeras e Utopias

Quimeras e Utopias

A tentação de N.

Em memória de N.

O tempo voa

O desnorte queda-se, pesado,

a um canto.

Texto escrito a 10/01/2021

Encostada ao balcão, ela foi desfiando algumas das suas preocupações e tristezas, numa conversa que intercalava temas profundos com as banalidades das notícias da atualidade. Saudades dos netos, Covid isto, Covid aquilo.

"Os números são cada dia mais altos", "Por causa do bicho, já há muito tempo que não os vejo", "Os meus netos gostam muito da minha comida.", "Quando será que isto passa?"

Cada palavra foi filtrada pelo acrílico colocado no balcão e pela máscara que usava, objetos que se impuseram no nosso dia-a-dia capazes de transformar qualquer conversa, troca de confidências, em produto enlatado genérico, depurado de emoções.

Ouço.

Ouvi. Talvez parte substancial do meu trabalho seja ouvir. Ouvir ajuda quem é ouvido, ouvir regenera, mas ouvir também fere, cansa pelo peso do que se ouve. Mas naquele dia, o mais certo é eu não ter ouvido, não ter escutado com a clareza necessária, não ter interpretado o que ouvia, não ter sentido o verdadeiro peso das palavras proferidas.

No dia seguinte, ela suicidou-se.

Numa busca mental pela nossa última conversa, percebo, em retrospectiva, que parte do seu discurso apresentava algumas incoerências. Como justificação pela minha falta de atenção e consequente inação, sussurro-me que todos nós, volta e não volta, somos incoerentes, sem que isso seja sinónimo de nada mais do que cansaço ou distração. A minha justificação não ajuda, sinto uma culpa latente, como se tivesse perdido a oportunidade de dizer algo que pudesse ter feito a diferença. Ou talvez tenha mesmo proferido algo que fez a diferença, mas no sentido inverso ao pretendido.

Sobre mim paira a certeza de que não ouvi, de que falhei irremediavelmente. Mas sinto um desconforto agudo com esta culpa. Passei parte substancial da minha vida adulta a equacionar o suicídio. Penso nele de uma forma muito racional, uma saída digna de uma jornada extremamente cansativa e medíocre. Entendo que o direito do ser humano sobre a própria vida é algo de indiscutível e não consigo perceber sequer o horror que esta certeza parece causar nas outras pessoas.

No entanto, num desgraçado paradoxo, choca-me que a N. tenha tomado essa decisão: decidir como e quando terminar a sua própria vida. Justifico o meu choque com uma desculpa: “ah, mas ela tinha problemas de índole psiquiátrica, depressão, etc. Já se sabe que a doença mental é grande causadora da maioria dos suicídios. O teu hipotético suicídio não é dessa ordem. É mais uma coisinha de ordem racional”.

Há em nós, seres humanos, uma qualquer qualidade ou defeito genético que nos leva a elaborações de proteção extrema da vida humana. É certo que embarcamos em guerras, genocídios, todo o tipo de vilanias que levam ao extermínio de muitas vidas, mas a nossa evolução ao longo dos tempos caminha no sentido dessa preservação.

É certo que essa preservação está intimamente ligada à identificação. Queremos preservar aqueles que nos são próximos, que "são como nós". A intrincada rede de laços familiares, a religião, o facto de sermos animais sociais, tudo contribui para considerarmos a vida como algo de intocável e, acima de tudo, precioso. Mas, na veradde, não há nada de precioso na nossa existência. Somos oito mil milhões num planeta no meio de um sistema solar num canto de um universo sem fim. Oito mil milhões que coabitam mal com um número substancial de outras espécies animais e vegetais. Somos um nada. Mas consideramo-nos um todo e essa consideração salva-nos a vida.

Termos consciência de nós próprios, do que nos rodeia, da aleatoriedade da natureza, da nossa insignificância, tudo isso poderia, em teoria, levar-nos ao suicídio massivo, à extinção de uma espécie inteira. Mas as histórias com que nos embalamos, os medos de castigos divinos, os egos inchados da nossa assumida importância, salvam-nos. Pelo menos a alguns de nós.

E que importância teremos de ter para merecer viver? 

Agora continuo a ouvir. Ouço os outros utentes em choque com o que ela fez. Numa localidade pequena tudo se sabe, tudo se adivinha, não há espaço para o mistério. Uma morte é um assunto, uma morte por suicídio leva a extremos de choque e curiosidade mórbida.

Na maioria deles, o espanto está encharcado de incompreensão e até mesmo de uma certa ofensa. "Foi algo que lhe passou pela cabeça, um desvario", "Como é que ela foi capaz de fazer uma coisa daquelas?", "Por causa do que ela fez e ainda para mais nesta altura do ano, a família nunca vai recuperar do trauma", "Uma pessoa no seu estado normal nunca faria uma coisa daquelas", "Isto da Covid não mata as pessoas de uma maneira, mata de outra", "Foi uma tentação do diabo, aquilo".

Ouço-os a todos e não sei o que dizer. Tenho a máscara no rosto e o acrílico sobre o balcão, artefactos que ajudam a mascarar a desorientação que também eu sinto. Profiro umas banalidades em resposta, mas sempre com o peso da possibilidade dessas trivialidades serem a última coisa que terei a oportunidade de dizer àquelas pessoas.

Pudesse a vida ser como no cinema e na televisão e termos a possibilidade de um segundo take para dizer as falas corretas, da maneira certa…  

O que te diria eu, N.?

A vida, em suma, é tramada.

 

Linhas de prevenção do suicídio:

Captura de ecrã 2023-12-20 221912.png

Fonte: SNS 

https://prevenirsuicidio.pt/contactos-e-servicos-disponiveis/

 

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