Este meu corpo torto
O corpo como elemento dissociado do Eu, como um desdobramento material do Eu, mas um desdobramento caótico, aleatório – um reflexo distorcido da verdade.
Pensei no corpo nestes trâmites durante muito tempo. O meu corpo estava francamente aquém do que eu achava que ele deveria ser, o meu corpo não era uma materialidade em condições da minha personalidade.
Claro está que toda esta minha crença era uma perfeita parvoíce, porque percebo agora, passados os anos, que sou um produto em constante construção pela vivência social, pela navegação deste meu corpo entre este mar de outros corpos. O meu Eu fundou-se na vivência social de um esqueleto coberto de músculos, veias e carne.
Eu sou aquilo que o meu corpo é.
Eu sou da forma como me veem.
As minhas inseguranças, a escolha das minhas lutas, as mais ínfimas decisões do dia a dia – olhar alguém nos olhos, decidir iniciar uma conversa, ter coragem para me levantar depois de uma queda aparatosa – todas estas banalidades provêm da vivência social deste meu corpo durante estas primeiras quatro décadas.
E se depois de uma adolescência de profunda aversão por mim própria, aversão pelos cantos, becos e linhas oblíquas desnecessárias deste corpo, consegui chegar ao patamar da escadaria da tolerância…
Enfatizo que tolerar não é aceitar.
Percebo que o meu entendimento do que será um corpo perfeito está enraizado em preconceitos, traços culturais, publicidade e marketing, parâmetros quer inconcebíveis como impraticáveis – um corpo perfeito deveria ser somente um corpo funcional e saudável –, mas apesar dessa perceção, não há aceitação possível do que me calhou na rifa. E todas as campanhas de body positivity me soam a falsidade, a um prémio de consolação para o atleta que ficou em último lugar na corrida.
Perceber que se fundou um edifício em alicerces defeituosos não faz nem o edifício nem os alicerces desaparecerem. Eu sou fruto da maneira de se pensar desta sociedade, para o bem e para o mal e quanto a isso não há nada a fazer. Posso ter consciência dos bastidores, mas a peça continuará a ser a mesma a que toda a gente assistirá.
E, quando o meu corpo entra em rota de colisão com a minha vontade, quando se alarga excessivamente, quando descai, quando me esfrega na cara os sinais óbvios de envelhecimento, de entortamento, quando me grita que não mando nele, que quer ser livre, decorado de adiposidade, de cabelos brancos, olhos vesgos, dentes tortos, pele borbulhenta, enraiveço-me e castigo-o, mostro-lhe a sua insiginificância.
E se com o tempo consigo encontrar nos outros beleza naquilo que não é óbvio, naquilo que foge ao padrão, encontrar beleza no que antes me parecia abjeto, não me permito tais lisonjas comigo própria, porque edifiquei-me na impossibilidade de alcançar o belo.
Eu sou a falha, a fenda, o Frankenstein da materialização física, o Mr. Hyde do Dr. Jekyll e não há perdão possível, nem campanha de sensibilização positiva que me faça olhá-lo de diferente forma.
Este meu corpo torto sou Eu. Este meu corpo oblíquo não é um duplo caótico e desprezível do meu verdadeiro Eu.
O meu Eu gerou-se no mesmo ventre, gêmeo univitelino deste corpo torcido.