Pode um desejo imenso
Ceci n'est pas une critique littéraire
O que me leva a comprar um livro específico nem sempre será a magnificente mestria do seu escritor, o resumo apelativo da história na contracapa, a resenha positiva de um qualquer crítico literário num jornal ou revista de referência ou a futilidade (ou não) de uma capa atrativa. Rejo-me, não raras vezes, por desejos literários obscuros. Desejos obscuros que me levam a procurar «As memórias de Adriano» de Youcenar, sem que o colosso que Marguerite é seja importante nessa escolha, ou ainda, neste caso, procurar «Pode um desejo infinito», sem que tenha presente toda a obra de traduções e ensaios premiados de Frederico Lourenço.
Chamo o meu interesse literário de obscuro, porque não o consigo realmente compreender. O adjetivo nada tem de pejorativo, é só demonstrativo da escuridão das suas razões. Desde a minha adolescência (e tenho agora 43 anos) que sou complente fascinada pela iconografia gay, algo completamente deslocado da minha realidade – uma mulher heterossexual, nascida de uma típica família «tradicional» numa pequena localidade, do mais banal que a vossa imaginação possa desenhar na vossa mente. E se será natural que as pessoas LGBT procurem representatividade naquilo que leem, eu não sei porque procuro, porque comecei a procurar, porque continuo passados trinta anos a fazê-lo. Na minha mente arranjo algumas justificações ensaísticas, fundamentações de grande complexidade psicológica, camadas e camadas de desejos dissecados, de uma pessoa desmontada em peças, mas ainda assim nada de tangível. Talvez chamá-lo, a este desejo por toda e qualquer representação da cultura, iconografia homossexual, de obscuro, seja, afinal, correto e o que baste para o classificar.
Mas não estarei sozinha. Talvez um dia comece por conversar com as adolescentes que hoje devoram as recém-chegadas traduções dos livros de Alice Oseman, «Hearstopper», que deliram com a série da Netflix com o mesmo nome ou que idolatram a série «Young Royals» e que impulsionam a chegada, tanto ao mercado editorial como ao audiovisual, de cada vez mais obras de temática LGBT.
Pode um desejo imenso, Frederico Lourenço, Quetzal, 2022
Mas de volta a Frederico Lourenço, acompanho-o desde há uns tempos nas redes sociais, embora tudo o que lera dele fosse apenas os textos que ali publicava. Voyeurista, como sempre sou daqueles que admiro, nunca comentei nada naqueles espaços, sempre no receio de que a minha ignorância fosse ofensiva. E por vezes, é-o de facto. Quando ele publicitou uma nova reedição da sua obra «Pode um desejo imenso», obra publicada inicialmente em 2002, todos os volumes iniciados pousados na minha mesa-de-cabeceira, por lá teriam de ficar enjeitados por mais um tempo.
O livro, que tem uma capa belíssima (e não há nada de fútil na beleza de uma capa de um livro), conta a história de um professor universitário, Nuno Galvão, camoniano de paixão, que a dada altura desenvolve um fascínio, uma paixão platónica, por um dos seus alunos, Filipe. Esta paixão é como um paralelo, um reflexo da história do próprio Luís de camões e de D. António de Noronha, de quem o poeta era perceptor.
O livro constrói-se com a história de Nuno, a preparação da sua comunicação para as jornadas sobre Camões na universidade, a aproximação a Filipe, sendo que depois ruma até ao passado, até à altura em que Nuno estava na mesma posição de Filipe, como estudante, também ele mergulhado nas dúvidas e amores exaltados próprios da idade, focado, tal como no presente, na lírica de Camões, e onde vemos a gênese de outras personagens, colegas de Nuno, personagens que marcam a parte central do livro e que alicerçam o seu desenvolvimento para o desenlace final.
Na parte final, um regresso à atualidade, com todas as suas perdas trágicas e possíveis recomeços.
Li o livro num ápice e poderia catalogá-lo como um verdadeiro page turner, sem que com isso esteja a dizer que é um livro de fácil leitura. A prosa de frederico Lourenço é fluente, mas com muitas referências intertextuais que, confesso, não terei totalmente captado com toda a certeza. Na parte inicial do livro, onde vemos a comunicação de Nuno para as jornadas camonianas ganhar forma, para quem é um leigo da lírica de Camões, da investigação feita nesse âmbito, a leitura, embora muito interessante, é complexa.
Agora, num olhar mais subjetivo sobre a obra, quando se gosta de um livro, de um filme, de uma peça de arte, seja ela qual for, há sempre uma base de identificação que está implícita, mesmo que essa identificação seja através de um tremendo desconforto, de uma culpa latente ou de um flagrante reflexo no qual nos vemos como não gostamos que nos vejam, nus e crus.
Frederico Lourenço escreveu este livro numa idade próxima da minha. Mais novo, mas ainda assim próximo o suficiente para que me identifique de uma forma absurda com a personagem principal, com os seus dilemas, os seus medos e os seus desejos. Mesmo eu sendo uma mulher, heterossexual, com um trabalho ridículo numa aldeia e não um professor universitário gay.
É estar-se num momento em que aparentemente se tem tudo, mas falta a inflamação, a estridência, o caos, a desordem de um amor, de uma paixão. Mas quando essa paixão aparece, com ela vem também a sensação do risco, do ridículo, da ética, da moral, da potencial perda.
Como isto não é uma crítica literária, posso dizer simplesmente que gostei, que adorei o livro, que ao acabá-lo, fiquei ensimesmada, mergulhada num certo vazio, a pensar na vida, na de Nuno Galvão e na minha.
E com uma vontade de descobrir mais, para além dos fragmentos sobreviventes do ensino secundário, da lírica de Camões.
Pode um desejo imenso
arder no peito tanto
que à branda e a viva alma o fogo intenso
lhe gaste as nódoas do terreno manto,
e purifique em tanta alteza o esprito
com olhos imortais
que faz que leia mais do que vê escrito.
Ode de Luis Vaz de Camões, em «Pode um desejo imenso», de Frederico Lourenço