Menino malcomportado
Não haverá nada de pior do que nos vermos refletidos, nos nossos piores aspetos, nos outros. E essa reflecção poderá ser física ou comportamental, ideológica ou anatómica.
Imaginem sentir repulsa por alguém que se nos apresenta à frente para, logo a seguir, num arrepio que nos percorre a espinha, perceber que aquilo que nos repulsa, também o temos em nós e automaticamente repulsará os outros.
Os meus olhos são o meu calcanhar de Aquiles. Nasci com miopia acentuada. Nos meus primeiros anos, eram os óculos «fundo de garrafa» que me perturbavam. Pensava que, quando me pudesse ver livre dos óculos, seria o paraíso na terra. Automaticamente, viraria uma ninfa.
Aos doze anos esse dia chegou. Os óculos ficaram para trás, relegados para o conforto do lar, longe da vista do resto do mundo. Acho que só nessa altura percebi que o meu olho direito era praticamente cego, ambliope. Passei a usar uma lente de contacto no olho bom, o olho esquerdo, que ainda assim tem 9 dioptrias de miopia. A verdade é que, como nunca tinha visto melhor do que aquilo, nunca tinha dado muita importância ao problema em si, mas mais ao aspeto estético do uso dos óculos.
A euforia de não usar óculos fez-me esquecer por uns tempos aquele que veio a tornar-se o elemento perturbador da minha cara - o estrabismo do meu olho quase cego.
O meu olho cego divaga, conduz-se segundo a sua própria vontade, parte das vezes recusa-se a seguir o seu amigo. Quer ser independente, viver por si próprio. É cheio de manias e de astúcia. O oftalmologista reencaminhou-me para um optometrista há uns anos. Semanas de sessões quase diárias para observar o comportamento do menino, para perceber se a sua teimosia errática era operável ou não. Pois o que faz o menino quando o observam? Comporta-se impecavelmente.
O meu estrabismo não era suficientemente consistente para ser operável. Tinha dias em que estava mais estrábica, outros em que me apresentava normal, sem desvios. O meu olho destrambelhado exigia que o aturasse tal como ele era, que o amasse assim.
Dessa fase, passei para uma fase em que tomei medidas para domar o menino malcomportado. Sei onde me devo sentar se quero falar com alguém, sei que exercícios fazer para lhe exigir obediência quando ele acorda mais mal disposto.
E embora hoje em dia consiga brincar com o meu problema, há sempre situações que me confrontam com a estranheza ou mesmo repulsa que poderei estar a causar nos outros. Situações que me relembram, que não deixam o menino malcomportado cair no esquecimento.
Quando vejo alguém com estrabismo, sinto estranheza, dificuldade em olhar naturalmente essa pessoa, mesmo sabendo que com toda a certeza já fiz alguém sentir-se exactamente assim – desconfortável.
E por vezes não é sequer necessário ser confrontada com o estrabismo alheio. Alguém fará questão de me lembrar as minhas fraquezas. E ainda bem. No fim das contas, eu sou quem sou, comporto-me como me comporto, penso como penso, porque, para além de tudo o resto, sou também estrábica, domadora de um olho cismado e opinioso, mãe de um menino malcomportado.