Muito assunto de interesse está apontado no caderninho para aqui ser desenvolvido, mas o pesadelo erótico que tive há umas noites não deixa espaço para que mais nada germine nesta cabeça. Tenho de desabafar para poder retomar a minha vida.
Como já referi noutros posts, é raro recordar o que sonho e quando recordo é porque o teor onírico foi terrífico, assustador. Sonhos eróticos é coisa que, se tive, nunca viajaram até ao meu acordar. A imagem de despertar embalada num ardente sonho erótico, coisa capaz de deixar o meu marido carregado de ciúmes, foi situação que nunca tinha experienciado.
No entanto, há um par de dias, tive um desses sonhos eróticos, experiência intensa, de uma luxúria extravagante, que extravasou para a luz do dia. Mas o acordar foi um misto de lascívia e terror. Lascívia pelo ambiente sexual, terror pela descoberta do protagonista do sonho.
O meu companheiro de aventuras marotas era, nada mais nada menos, do que o nosso PR, o professor Marcelo. Eu tive um sonho erótico com o presidente da república e agora estou traumatizada.
O nosso PR é tão omnipresente, tem tamanho dom da ubiquidade, que não lhe bastando aparecer em todos os locais e ser noticiado em todos os meios de comunicação, ainda tinha de vir habitar os meus sonhos. Pelo menos podia ter aparecido vestido.
Se houvesse um ministério dos sonhos, iria lá reclamar. Sonhos eróticos, sim, com o professor Marcelo, por favor não.
Assim, o melhor a fazer é evitar ter contacto com as notícias da atualidade, porque está-se a ver que excesso de Marcelo pode acabar por ter estes efeitos secundários indesejados.
Nota: post baseado numa história verídica. Não houve cá invenções com fins humorísticos. O trauma é real.
Já há uns tempos que queria escrever um texto sobre o feminismo, embora já várias vezes tenha-me focado no tema, direta ou indiretamente, noutros posts. Decidi que seria hoje devido a um texto que li ontem.
Pegando na definição da palavra feminismo — Movimento ideológico que preconiza a ampliação legal dos direitos civis e políticos da mulher ou a igualdade dos direitos dela aos do homem (dicionário Priberam) — parece-me lógico que qualquer pessoa na nossa sociedade ocidental, seja homem ou mulher, se possa considerar feminista. Aquilo que está em causa é a igualdade de direitos entre homens e mulheres, direitos e deveres semelhantes em todas as áreas. No entanto, o termo feminismo parece ter ganhado (talvez mesmo desde o início da sua aplicação) uma conotação pejorativa, ligada a um certo extremismo de palavras e ações, o que em nada favorece aquilo que deveria ser a verdadeira luta feminista.
Ora bem, ontem lia um texto de um amigo que alertava para um outro texto numa plataforma de divulgação feminista (capazes.pt). Esta plataforma é conhecida pela divulgação de informação de carácter feminista, mas lá pelo meio, volta e não volta, aparecem uns textos que, ao invés de promoverem aquilo que o feminismo realmente é, optam pela via dos extremos, a via da superiorização feminina. É de salientar que esta proclamação da superioridade feminina não se encaixa no conceito de feminismo. Para essa superiorização nasceu uma nova palavra há uns anos — femismo — que entra em oposição ao machismo (superiorização masculina).
Assim, no texto de Suellen Menezes «Feminismo é outra palavra para justiça», a autora refere a necessidade de suspensão, através da via democrática, do poder de voto do homem branco, sendo essa a única maneira de trazer, em poucos anos, a tão ansiada igualdade de géneros. Numa visão distópica, a autora encontra na proibição, numa conceção algo fascista, eugénica, a forma de chegar a um equilíbrio social entre homens e mulheres.
O voto dos homens brancos reforça o sistema que confere todos os privilégios aos homens brancos. Quem se surpreende que isso aconteça? E quem considera isso “justo”?
A suspensão temporária do poder do voto dos homens brancos é a única chance de produzir uma real alteração no mundo no espaço de apenas uma geração.
Excerto do texto «feminismo é outra palavra para justiça» de Suellen Menezes, retirado do site capazes.pt.
Não referindo sequer a grave falha argumentativa (se são os homens brancos que «mandam nisto tudo», como raio conseguiriam as mulheres impor de forma democrática um sistema eleitoral que os excluísse?!), o texto, tido e proclamado como feminista, é em tudo perigoso para o próprio movimento feminista. Não é isto que eu quero, enquanto feminista, que achem que eu defendo. Nunca uma sociedade igualitária poderia nascer de a desigualdade social de se expressar opiniões (através do voto, por exemplo), nunca a equidade poderá brotar do rebaixamento, da submissão de um género a outro. Se, pela frente, ainda estarão anos de batalha por uma sociedade justa para ambos os sexos, que essa batalha seja sempre feita com dignidade, em moldes racionais, democráticos e que nunca nos passe pela cabeça fazer aos outros aquilo que não gostamos que nos façam a nós.
Como em todos os movimentos ideológicos existem excessos, extremismos que prejudicam o conceito base ideológico (não faltam exemplos, mesmo cá em Portugal, de manifestações extremistas que apenas serviram para ridicularizar o movimento e o conceito de feminismo).
Neste caso, dentro do próprio movimento, as próprias mulheres têm de se distanciar deste tipo de fundamentalismos, de uma certa misandria manifestada por algumas mulheres, excluir o que não dignifica, mas ridiculariza, mostrar que há uma clara diferença entre feminismo e femismo.
O presidente dos E.U.A, Donald Trump, fez uma visita de estado à Arábia Saudita. Nessa visita, foi assinado um negócio de venda de armamento aos sauditas no «módico» valor de 110 mil milhões de dólares, o maior negócio de venda de armamento da história dos E.U.A.
Um dos principais focos da campanha eleitoral de Trump e da sua agenda enquanto presidente dos E.U.A. é a luta contra o terrorismo (islâmico, entenda-se). Também em Riade, o discurso se focou na luta contra o extremismo islâmico, na união do mundo islâmico contra o jihadismo, o fundamentalismo religioso.
Num paradoxo, a Arábia Saudita é, enquanto país, governada sob a égide do extremismo religioso. De tradição muçulmana wahabita, ali nasceram os principais preceitos do que hoje caracterizará o extremismo religioso e ainda hoje o país financia e dissemina além portas uma doutrina fundamentalista, fonte onde bebem muitos dos grupos jihadistas e que serve de inspiração para muitos lobos solitários além-fronteiras.
No que ao armamento diz respeito, a Arábia Saudita tem forte intervenção na guerra do Iémen, estando o país praticamente dizimado, a população dominada pela fome e pela cólera, no que, por parte da Arábia Saudita, nada mais será do que um combate contra o apoio dado pelo Irão aos rebeldes no Iémen.
Como refere Mario Giro, vice-ministro dos negócios estrangeiros italiano, em entrevista ao Diário de Notícias, aquando questionado sobre a possibilidade de vivermos um choque de civilizações:
Não estamos a viver um choque de civilizações. Estamos a assistir a um choque dentro de uma civilização. Existe uma crise no mundo islâmico. É uma crise que começou há mais de 20 anos e que, com certeza, afeta também a nossa civilização. Até porque somos a civilização mais próxima da civilização islâmica. Isto pode ser visto agora com o que se passa na Síria e noutros conflitos no Médio Oriente. A narrativa adotada pelos extremistas para atrair as gerações jovens contraria a narrativa tradicional do islão. Trata-se de uma batalha pelo poder. Porque quem controlar o mundo muçulmano controlará 1500 milhões de pessoas. É um problema político.
Excerto da entrevista de Mario Giro ao Diário de Notícias, retirada daqui.
Após mais um atentado numa cidade europeia, desta vez em Manchester, é benéfico ler a entrevista de Giro. Nada disto terá a ver com religião. A violência, que na atualidade se transformou em pequenos ataques de lobos solitário, mais frequentes, mas menos mortíferos, não está de todo ligada à religião. O que está em causa é o poder, o domínio de uma civilização, de um território.
Mas enquanto o dinheiro falar mais alto, enquanto os negócios, a venda de armamento, tiverem importância maior do que a pacificação de uma região, enquanto o diálogo com os extremistas for privilegiado em detrimento do diálogo com os moderados, enquanto reinarem jogos de poder pelo domínio de uma região, será mais do que certo que a violência persistirá.
A lógica morreu. Há muito foi substituída pelo doce cheiro do dinheiro e pela perigosa atração do poder.
Ontem, ainda digerindo a notícia da morte de Chris Cornell, surge a notícia da morte da escritora bielorussa Svetlana Alexievitch, prémio Nobel da Literatura em 2015. A notícia apareceu nas versões online dos principais meios de comunicação social nacionais, inicialmente sem explicar as causas da morte da escritora, referindo apenas que a notícia tinha sido avançada pela nova ministra da cultura francesa (que antes era co-diretora da casa editorial que editava Svetlana em França).
Fiquei triste, remoendo por dentro pela injustiça de uma pessoa ainda jovem, tão inteligente, ter partido antecipadamente. Mas o meu luto por Svetlana durou pouco. Minutos depois surgem várias notícias a informar que a notícia avançada da morte da escritora afinal era falsa.
Reconstruindo a situação, um jornalista italiano, Tommasso Debenedetti, conhecido por criar contas falsa de Twitter precisamente para difundir notícias falsas, usando nomes de pessoas conhecidas, resolveu criar uma conta em nome da nova ministra da cultura francesa. Através dessa conta anunciou a morte da escritora bielorussa. O jornal francês Le Figaro, tomando como referência o tweet dessa conta falsa, fez o anúncio da morte de Svetlana na sua página online e isso bastou para que centenas de outros jornais e meios de comunicação na Europa difundissem a notícia sem qualquer tipo de verificação prévia, tomando como única referência informativa o tweet da suposta conta da ministra e a notícia do Le Figaro.
As notícias tornaram-se produto de consumo rápido e a difusão de notícias online veio trazer uma urgência noticiosa que antes não existia. Se algo acontece na Alemanha ou em qualquer outro sítio do mundo, isso tem de ser noticiado imediatamente, porque um jornal português não quererá que o seu leitor vá gastar o precioso click num jornal estrangeiro, quando o pode gastar no seu jornal, mesmo que isso comprometa a qualidade da informação dada. As notícias difundem-se sem qualquer investigação prévia, apenas porque a velocidade, a rapidez informativa tornou-se fator de maior relevância do que o rigor, a qualidade da informação dada.
Não teria sido muito complicado confirmar que Svetlana estava em Seul, a dar conferências, vivinha da silva. No entanto, nenhum meio de comunicação quis gastar cinco minutos que fosse a fazer uma confirmação simples.
Não sei que motivações movem o jornalista italiano Debenedetti, mas as suas farsas talvez tenham como finalidade uma espécie de alerta para a forma enviesada como a informação é tratada e difundida hoje em dia. Um alerta àqueles que tem o poder da informação na mão, mostrando-lhes como podem ser tão facilmente ludibriados, apesar da repetição da armadilha. No entanto, acho que é uma batalha perdida. Parece-me evidente que o rigor já há muito foi substituído pela urgência, pela necessidade de atrair a visualização do leitor transformada em dividendos publicitários.
Para a próxima, para não causarem tamanho transtorno e comoção, sugiro que «matem» alguém odioso. Sempre uma pessoa faz uma pequena festa, mesmo que seja felicidade de pouca dura.
No Brasil, o presidente Temer foi gravado a autorizar um suborno a Eduardo Cunha, em troca do seu silêncio. Eduardo Cunha está preso no âmbito da operação Lava Jato e o dinheiro supostamente serviria para comprar o seu silêncio na prisão. O mesmo empresário (Joesley Batista, da empresa JBS, uma das maiores produtoras de carne do mundo) que denunciou Temer através da referida gravação, denunciou ainda Aécio Neves, presidente do PSDB, denunciando que este lhe pedira dois milhões de reais. As entregas dos referidos montantes a terceiros envolvidos nos esquemas (compra do silêncio de Cunha e a entrega do montante a Aécio) foram filmadas pela Polícia Federal Brasileira.
Nos E.U.A., a política interna mais parece uma má novela mexicana. Cada dia chega ao conhecimento público mais uma acha para a fogueira do escândalo. O diretor do FBI foi demitido pelo presidente Trump numa altura em que eram investigadas por Comey, diretor do FBI, supostas ligações da campanha presidencial de Trump à Rússia. No dia seguinte ao despedimento difícil de justificar, Trump encontra-se na sala oval com o embaixador russo e com o ministro dos negócios estrangeiros russo, Sergei Lavrov. Segundo noticia o jornal Washington Post, nesta mesma reunião, o presidente Trump terá revelado informação confidencial aos dois convidados russos, informação essa fornecida por um aliado dos E.U.A. e altamente sensível. Ainda na saga de Comey, o presidente terá repetidas vezes pedido a lealdade do diretor do FBI, sempre recusada por este que apenas lhe ofereceu a sua honestidade. Como última achega à já incendiada situação, O New York Times veio revelar um memorando do diretor Comey, de fevereiro, onde este descreveu uma reunião que teve a sós com o presidente Trump e onde este lhe pediu que encerrasse a investigação a Michael Flynn, na altura assessor demissionário do presidente para a segurança nacional. É de recordar que Flynn foi afastado depois de descobertas as suas estreitas relações com figuras proeminentes russas e da natureza das suas conversas com o embaixador russo.
Por terras do tio Sam já se começa a falar na «I word», pois a acusação de obstrução à justiça começa a ganhar força e o impeachment do presidente não parece coisa assim tão descabida de se imaginar.
Na Itália, a polícia revelou a detenção de uma rede de mafiosos que durante quase uma década explorou um centro de refugiados em Lampedusa, com a conivência de uma associação católica que oficialmente geria o centro de acolhimento de migrantes e refugiados. Através do fornecimento de serviços ao centro, como refeições, serviço de lavandaria, foram desviados milhares de euros que deveriam ser destinados aos refugiados e que acabaram nas mãos da máfia e na conta do padre que era o diretor da associação católica. O financiamento estatal que deveria providenciar uma vida digna (alojamento e alimentação digna) aos milhares de refugiados que estiveram neste centro, foram assim desviados durante anos gerando lucros astronómicos àqueles que não se importam de lucrar com a miséria alheia.
Por cá, a CM TV e o jornal Correio da Manhã resolveram divulgar um vídeo de uma suposta violação a uma jovem num autocarro no Porto, durante a queima das fitas. À justiça caberá descobrir se houve crime ou não, mas aos jornalistas caberia, assim se esperava, um pouco de bom senso. A divulgação e incitamento aos leitores para verem o vídeo em questão é de um baixo nível jornalístico sem precedentes. A busca pelo click, pela venda de um jornal, pela audiência televisiva justificará tudo? E poder-se-á chamar sequer jornalismo a este tipo de opções editoriais? E não serão as opções deste «órgão de comunicação» (um dos jornais mais lidos do páis) um reflexo da nossa sociedade, enquanto leitores, espetadores?
Olhando para estas notícias, ninguém se poderá queixar de marasmo noticioso. O mundo é uma novela e aguardam-se as cenas do próximo episódio.
Ainda no rescaldo da vitória de Portugal no Festival da Eurovisão da canção e de toda a comoção que se lhe seguiu (e que persistirá por mais alguns dias, certamente), dei por mim a tentar racionalizar esta euforia, a tentar desconstruir e perceber esta alegria generalizada.
No fundo, pressinto que nada disto teve a ver com música e esta minha observação não tem como finalidade desprestigiar ou menorizar a qualidade da música vencedora (como já referi noutro post, gosto da música, gosto do intérprete). Observando de perto, à lupa, aquela vitória foi como o recuperar de uma humilhação. Décadas a ver os «12 points» a passarem e a nunca cair no «nosso cesto», a derrota, os últimos lugares a surgirem como inevitabilidade. Aprendemos a desprezar o evento em questão. A fraca qualidade, a transformação de um espetáculo musical num espetáculo carnavalesco, ajudaram a esse desprezo, mas ainda residia aquela frustração recalcada, aquela moinha que roía lá dentro, coisa típica de quem é votado persistentemente ao desprezo.
Como li num mural de um amigo facebookiano, o nosso percurso neste festival assemelhou-se a um daqueles filmes em que o protagonista passa a história a levar porrada, levantando-se, sendo derrubado, persistindo num treino incansável até chegarmos ao clímax do filme, onde o nosso herói derrota quem o humilhou com um enxerto de porrada épico. Não nos limitámos a ganhar depois de cinco décadas de desprezo, fizemo-lo de forma épica.
Tomando-me como cobaia nesta minha pseudoanálise antropológica, apesar de considerar o festival uma espécie de carro alegórico do espetáculo televisivo, uma futilidade básica na área musical, ver os 12 pontos serem-nos atribuídos pelos júris de vários países e pelo voto popular, ver a bandeira nacional destacada num primeiro lugar (e atenção, tenho-me como a perfeita antítese do pensamento nacionalista, patriótico), ver aquilo foi estranhamente especial, uma espécie de catarse. Foi o enxerto de porrada épico, foi o aplacação do despeito, de uma certa frustração. Como se uma qualquer justiça «kármica» tivesse sido reposta, porque, no fundo, há sempre alguma metafísica metida ao barulho, mesmo na vivência do ser mais racional. A partir de agora será possível remeter o evento para a insignificância que lhe é devida, a partir de agora é possível ignorar porque a frustração já lá não está.
Observando agora o fenómeno de um ponto de vista mais alargado, voando e olhando de cima, a euforia generalizada por esta vitória musical vem juntar-se a um grupo de recentes fenómenos positivos: vitória num campeonato de futebol europeu, distinções várias na área do turismo, um aumento inequívoco de turistas no nosso país. E a isto juntam-se mais outras pequenas vitórias, distinções em diferentes áreas, etc.
Num país onde o culto do coitadinho, do desgraçadinho, da vítima, da humildade em jeito de submissão sempre foi coisa muito nossa, característica intrínseca, sempre tivemos uma óbvia necessidade de validação, aprovação externa. Somos todos uns zés-ninguéns até alguém de fora nos demonstrar o contrário.
A máxima: «se eu não gostar de mim, quem gostará?» nunca funcionou para nós. Acho que somos mais do género: «se ninguém gostar de mim, como eu poderei gostar?»
Como é que esta síndrome de inferioridade começou, não faço ideia, qual o seu combustível, as suas motivações, não saberei dizer, mas acho que por estes tempos descobrimos a pólvora. O nosso triste fado já não nos embala como dantes, já não queremos adormecer ao som das nossas lamúrias. Descobrimos uma nova banda sonora.
Assim, parece-me que esta euforia coletiva advém da recente descoberta do sabor doce da felicidade, do reconhecimento exterior pela luta, pelo esforço. Há uma certa estranheza nesta mudança de vítima para herói, há excessos próprios de quem prova e gosta do elixir da vitória. Toda a mudança de paradigma tem alguma convulsão envolvida, é inevitável.
Por isso, este assombro, esta quase loucura por Salvador Sobral, pela vitória num mero festival musical marginal, é, acima de tudo, simbólica, muito pouco objetiva. Uma necessidade básica de reconhecimento misturada com a euforia da descoberta do sabor doce da vitória.
Não é o Salvador, somos nós.
Momento da vitória da canção portuguesa no Festival da Eurovisão de 2017 (fotografia retirada daqui).
Há uns tempos tinha visto uma reportagem sobre um homem que era pagador de promessas profissional. Em troca de uma determinada quantia de dinheiro, a pessoa em questão fazia a penitência que o contratante tinha prometido — ir a pé a Fátima durante X quilómetros, colocar velas no santuário, rezar o terço, etc.
O que na altura me pareceu bizarro, fazendo lembrar os pagamentos das bulas séculos atrás, parece ter-se tornado num negócio prometedor, em franca expansão. Segundo noticiam umas quantas publicações nacionais, existem agora várias pessoas a oferecer este serviço em páginas na internet, o de pagarem a promessa por alguém contra pagamentos, na maioria das vezes, avultados. O centenário das supostas aparições/visões parece ter contribuído para o florescimento deste nicho de mercado e é de supor que tamanha oferta implique uma procura.
Imagem da adaptação televisiva da obra «O pagador de Promessas». Fotografia retirada daqui.
Apesar do meu olhar sobre o tema ser moldado pela minha não crença religiosa, penso que mesmo alguns crentes acharão esta opção pela contratação de um pagador de promessas algo de insólito, se não mesmo em claro confronto com os mais básicos preceitos religiosos.
A justificação daqueles que contratam tais serviços e daqueles que os oferecem é que pagar dinheiro para alguém pagar uma promessa implica que esse dinheiro tenha sido ganho pelo contratante e há, evidentemente, esforço envolvido, sacrifício na labuta diária que é revertida em salário. Em suma, o dinheiro é sinónimo de sacrifício e como tal não há mal em o gastar para pagar a um pagador de promessas, pois o sacrifício implicado no pagamento de uma promessa (caminhar quilómetros, fazer percursos de joelhos) está implícito no pagamento monetário.
No alto da minha ignorância religiosa, deixo aqui apenas uma singela sugestão: se alguém tem 2500 euros para pagar a um pagador de promessas profissional (preço levado por grande parte dos profissionais pelo percurso a pé Lisboa-Fátima), não seria mais louvável, mesmo do ponto de vista cristão, ofertar esse valor a uma instituição de solidariedade social ou ajudar diretamente alguém que necessitasse desse dinheiro? A devoção, a crença, deve revelar-se através de ações e não se ficar apenas pelas intenções.
Outubro de 2013. Um barco com 400 pessoas provenientes da Síria naufragou a poucos quilómetros de Lampedusa, na Itália. 268 pessoas perderam a vida, entre elas 60 crianças. Números trágicos, mas que pela repetição diária se tornaram corriqueiros. Números…
No entanto, apesar de quase cinco anos passados, novas informações surgiram sobre este incidente específico. Na altura do acidente, surgiram algumas suspeitas relativas à extrema demora no auxílio aos náufragos que fugiam de uma guerra sangrenta. Neste momento, as suspeitas confirmaram-se. Um médico sírio, a bordo do barco, entrou em contacto com a guarda costeira italiana informando da situação crítica do barco (estava a entrar água na embarcação), avisando que «estamos a morrer!». As coordenadas que permitiam a localização da embarcação foram fornecidas, a informação sobre a situação limite em que se encontravam aquelas centenas de pessoas foi relatada. Mas o que a guarda costeira italiana fez foi empurrar a responsabilidade do auxilio para Malta. Mandou o médico ligar para Malta. Este assim o fez. De lá, de Malta, recebeu instrução idêntica: «ligue a Itália. Eles estão mais próximos». Durante cinco horas, Itália e Malta empurraram a responsabilidade com troca de telefonemas e faxes, enquanto centenas de pessoas se afogavam no Mediterrâneo. Só quando Malta enviou um avião que verificou, sobrevoando o local, que já estavam centenas de pessoas na água, é que Itália resolveu mandar auxílio. A frase desesperada do médico sírio «Estamos a morrer!» não surtiu qualquer efeito empático nos funcionários italianos ou malteses, as chamadas insistentes, a aflição na voz de alguém que percebia a morte eminente não conseguiu arrancar o funcionalismo burocrático aos seres humanos que atenderam aquelas chamadas.
Agora, a revista italiana L’espresso conseguiu ter acesso às gravações de cinco chamadas telefónicas que provam a indiferença e a ineficácia de auxílio das autoridades italianas que permitiram, dessa forma, a morte de 268 pessoas. Jammo, o médico sírio que deu o alerta, sobreviveu ao naufrágio, mas dois dos seus filhos não resistiram às cinco horas de espera impostas pela indiferença burocrática italiana.
Numa blasfémia de diferente natureza, a República da Irlanda resolveu investigar Stephen Fry por blasfémia. O humorista britânico foi investigado após uma denúncia feita por um telespetador após a emissão de um programa de 2015, onde Fry, questionado sobre o que diria a deus depois de morrer, respondeu o seguinte:
Como se atreve a criar um mundo onde existe tanta miséria? A culpa não é nossa. Não é correto. É absolutamente, absolutamente maligno. Porque haveria de respeitar um Deus caprichoso, malicioso, estúpido que cria um mundo que está tão cheio de injustiça e dor?
O Deus que criou este Universo, se é que foi criado por um Deus, é claramente um maníaco, um completo louco, totalmente egoísta.
A lei irlandesa prevê a punição de quem insulte qualquer religião ou os seus fiéis. No entanto, para a investigação chegar a julgamento, terão de existir vários ofendidos. E esse foi o facto que acabou por deixar cair a acusação. A polícia, segundo notícia de ontem do Daily mail, não encontrou mais ofendidos pelas palavras de Fry e assim caiu a acusação de blasfémia contra o ator.
No fim, resta saber quem mais blasfemou: Fry, com a sua ira contra um deus omnipresente, mas caprichoso, malicioso (palavras, nada mais do que palavras), ou os funcionários burocratas indiferentes à aflição alheia, entretidos a trocar faxes e telefonemas entre si (ações ou falta delas).
Uma das minhas primeiras memórias preservadas durante décadas remonta a 1980/81, teria eu uns dois ou três anos e o que o ouvido captou e os olhos míopes ajudaram a gravar em memória foi o início da transmissão do Festival da Eurovisão da Canção. Numa época em que o entretenimento televisivo era bastante limitado e, morando eu numa zona rural, o entretenimento de uma forma geral era coisa arcaica quando comparada com os tempos que correm, a transmissão do Festival da canção era um momento de grande excitação e expetativa, vivido em família, motivo de conversa nos dias seguintes, momento televisivo imperdível.
Na memória desse longínquo ano ficou o hino inicial da transmissão, a imagem gráfica básica, mas que marcava o ponto de partida da grande noite que se seguia, tornando-se assim memorável.
Hino Eurovisão RTP-ZDF (Marc-Antoine Charpentier - Te Deum)
Nos anos seguintes, a expetativa manteve-se. A transmissão do festival continuou a ser ponto alto no entretenimento em família, fonte de angústia e excitação (os momentos das votações dos vários países, o raio da vitória que nunca nos calhava na rifa, o complô evidente entre os países bálticos, a amizade entre os países escandinavos e o raio dos coitadinhos dos portugueses nunca tinham direito a nada). No festival de 1991 apareceu uma das minhas canções favoritas de sempre. A canção francesa de Amina agarrou-se-me à memória de tal maneira que, numa época sem internet e sem grandes recursos de procura musical, por lá hibernou, recordada em trauteios volta e não volta. Com o surgimento décadas depois do youtube, busquei Amina e trouxe-a à tona da memória e ali estava novamente «C'est le dernier qui a parlé qui a raison», sons de outrora disponíveis para serem relembrados.
Amina, Cést le dernier qui a parlé qui a raison (a música de Amina ficou em primeiro lugar empatada com a Suécia, mas este último país, tendo obtido mais vezes 12 pontos, foi declarado o vencedor do certame).
Com o avançar da década de noventa e com a chegada dos anos 2000, o fervor pelo festival foi desvanecendo lentamente. Novos canais televisivos surgiram, a qualidade das músicas apresentadas começou em franco declínio até chegarmos a um ponto em que o festival se transformou num espetáculo visual aparatoso, mas musicalmente pobre, não justificando que se gastasse horas a acompanhar a sua transmissão. A língua inglesa passou a ser língua de escolha preferencial para as letras das músicas, o género dominante é o pop (nada contra), mas, salvo raras exceções, o que se vê são cópias rápidas, sem grande originalidade, pobres a todos os níveis, transformando o concurso num desenrolar de «músicas» sem interesse.
Este ano, um certo fervor do passado regressou. Se há uns quantos anos não faltariam por aí pessoas que nem sequer saberiam quem era o concorrente português à eurovisão, este ano isso será fenómeno raro. A escolha de Salvador Sobral não convenceu toda a gente — para alguns, a música não será suficientemente festivaleira, musicalmente boa demais para o certame em questão (o que diz muito sobre a qualidade atual percecionada do festival), mas para outros, adequando-se ou não ao propósito para o qual foi escolhida, é uma boa música que nos dignifica enquanto país concorrente.
A quem neste momento abra um qualquer agregador de notícias, por lá encontrará uma boa quantidade de artigos sobre o concorrente português, a quem abra o youtube, por lá se deparará com diversas versões da música, entrevistas ao músico, vlogs de opiniões sobre a canção portuguesa. E o interesse por um certame, até à data decadente por estas bandas, ganhou um ímpeto inusitado que trouxe o Festival da Eurovisão para tema central das conversas de café e das redes sociais.
Salvador Sobral, Amar pelos dois.
Pessoalmente, gosto da nossa música e embora não tenha acompanhado o festival nas últimas décadas, as memórias da infância, aquele vislumbre de tempos idos, leva-me a depositar um carinho especial por este evento. A memória regressa à infância, regressa ao frenesim daqueles tempos e secretamente sussurro:
É sabido que uma parte dos escritores, portugueses e não só, usam pseudónimos, substituindo o seu nome do registo civil por um qualquer nome de sua escolha. As razões da mudança podem ser várias, da mais elementar: troca por um nome que seja mais «apelativo» e diferenciador; às mais complexas: criação de uma persona, de um alter-ego, ocultação da verdadeira identidade do escritor.
Neste campo dos pseudónimos, há aqueles escritores que tentam «entrar a matar» e optam por um qualquer nome que, de tão estranho, acabe por tornar a identificação do autor memorável. O «drama» terá começado com o Valter Hugo Mãe, mas mais recentemente a fasquia dos pseudónimos elevou-se (e de que maneira).
Primeiro dei de caras com o António Deus-Rosto, depois veio o jovem escritor Raul Minh’alma e ontem encontrei na internet o Afonso Noite-Luar.
Assim, para não matarem muito a cabeça, deixo aqui algumas sugestões de pseudónimos aos jovens escritores que estejam a pensar em entrar em grande no meio editorial. Estes nomes, juro, não deixarão ninguém ficar mal: