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Quimeras e Utopias

Quimeras e Utopias

Grandes e pequenos — livros

O tempo que se leva a ler um livro não está diretamente ligado à quantidade de páginas que o mesmo tenha. Não raras vezes devoro, de forma glutona, pecadora, um livro de quase 1000 páginas em pouco mais de uma semana, para logo depois andar à luta quase um mês com um livro com pouco mais de 100 páginas. O nível da linguagem usada, o tema, a fluência narrativa, tudo contribui para o tempo que leva uma leitura.

 

Hoje vou pegar aqui em dois exemplos que ilustram exatamente o que referi no parágrafo acima.

 

O Pintassilgo, da escritora estado-unidense Donna Tartt, vencedora do prémio Pulitzer com este mesmo romance, teve a sua tradução publicada em Portugal no último trimestre de 2014. Tenho ideia de que o comprei no início de 2015 e o comecei logo a ler. Apesar das quase 900 páginas do livro, demorei pouco mais de uma semana a chegar à última página e a terminar a leitura. Foi uma leitura obsessiva, que me levava a carregar o livro para todo lado, a aproveitar cada segundo para me embrenhar naquela trama. Este livro será o melhor exemplo para o que o termo anglo-saxónico page-turner quer definir. Quando me afastei do livro, permiti-me perceber que muito do que ali se passava facilmente poderia ser considerado inverosímil, quando aplicado à vida real (pode tanta desgraça, alterações drásticas de vida acontecer a uma única pessoa?). Mas a perícia de Tartt obriga-nos a entrar naquele mundo sem direito a olhares para trás e mais nada interessa para além de podermos acompanhar Theo na sua odisseia.

 

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O Pintassilgo, de Donna Tartt, Editorial Presença

 

 

Curiosamente, li um artigo que dizia respeito aos dispositivos de leitura de ebooks da Amazon. Estes leitores têm a capacidade de recolher informação e difundir essa mesma informação para a Amazon: qual a taxa de sucesso de leitura ou desistência de cada livro, que temas cativam mais os leitores. Contra todas as minhas expetativas, O Pintassilgo era o ebook lido em dispositivos da Amazon com a maior taxa de desistência de leitura. Mas como? Como raio alguém conseguiu deixar aquele livro a meio? Pegai já nele e leiam! Terão sido as 900 páginas um número instigador da desistência?

 

Em suma, Donna Tartt passa períodos muito longos de tempo sem publicar escrita de ficção, mas quando o faz, a leitura tem um poder quase sinistro de embrenhar o leitor numa bruma de obsessão. O trabalho que faz é meticuloso, demorado, com pesquisa associada e sem ponta de amadorismo.

 

Numa cadência de leitura oposta, dou o exemplo de um livro que acabei de ler há pouco. Coração das Trevas, de Joseph Conrad. Escrito em 1902, é considerado um clássico da literatura, de leitura obrigatória. O livro fala de uma viagem ao Congo, país colonizado e explorado pelos seus colonizadores, que o foram estripando das suas riquezas como por exemplo o marfim, marginalizando e abusando dos habitantes nativos. Conrad baseia esta obra na sua experiência pessoal, pois também ele viajou por essa região anotando as suas observações num diário. O livro é mais denso do que conseguirei transpor neste texto. Para além das trevas de um país ainda emergido na «não civilização» (do ponto de vista ocidental), fala das trevas em que os seres humanos submergem quando se deixam levar pela embriaguez do poder, quando ficam entregues a si próprios num mundo primitivo.

 

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Coração das Trevas, de Joseph Conrad, Nova Vega Editora

 

É impossível ler a prosa de Conrad com os olhos e preceitos da atualidade. É sempre imperativo perceber que se trata de um texto de 1902. O olhar sobre os outros, os indígenas, os seres considerados primitivos, selvagens, facilmente provocará o choque por, aos olhos de hoje, ser extremamente racista, inumano. No entanto, paradoxalmente, os relatos de Conrad são também uma espécie de murro no estômago que nos alerta para prepotência dos agentes coloniais e para o próprio racismo.

 

O livro exige uma leitura mais concentrada e mais refletida. A obra em questão tem 140 páginas, mas 24 delas são um prefácio de Isabel Fernandes. Considero ainda que as notas colocadas no texto acabam por ser excessivas, distraindo o leitor do corpo do texto para as notas de rodapé, que nem sempre são imprescindíveis e muitas vezes acrescentam pouco ou nada à leitura.

 

Comecei a ler o livro em novembro do ano passado. Parei a meio e li outro livro durante essa paragem. Retomei a leitura no início deste ano para a acabar no final da semana passada. As expetativas que tinha relativamente a esta leitura eram elevadas e acabaram por sair um pouco goradas. É um livro interessante, um ponto de vista sobre o colonialismo e os seus agentes, no entanto, ainda assim senti uma certa incompletude com esta leitura.

 

Grandes ou pequenos, numa leitura compulsiva ou refletida, os livros são parte essencial da minha vida. Alguns serão ainda peças de joalharia literária, artística únicas.

 

Trump in the Twitter house

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Ilustração de Vasco Gargalo

 

Este que será o próximo presidente dos Estados Unidos da América, é um homem muito moderno. Toda a governação será feita através do Twitter. O homem pode estar em qualquer lado, é só pegar no telemóvel, abrir a aplicação e já está: invadir este, descer impostos para aquele, cancelar os seguros de saúde daqueles, construir um muro aqui e ali, vingar-se da deslocalização de alguma empresa e mandar umas bocas de menino mimado pelo meio.

 

Parece-me que, sendo a presidência feita através do Twitter, não há necessidade de ocupar a Casa Branca e o melhor será meter aquilo a render. Podiam alugar o espaço ou vender. Aquilo parece ser um sítio tão jeitozinho para fazer festas de casamentos e batizados. Com aqueles jardins, as fotografias dos casórios ficavam um espetáculo. E sempre era algum dinheiro que entrava nos cofres do estado.

 

Depois, com as taras modernas que o presidente supostamente tem (a julgar pelas notícias que ontem começaram a correr), era uma chatice o homem mudar-se para a Casa Branca. Só a quantidade de resguardos para meter nos colchões que teriam de ser comprados — isto dos golden showers é muito bonito, mas de certeza que repassa para os colchões e depois é javardeira garantida — era um rombo no orçamento.

 

O homem que alugue a White House e que guarde as taras modernas para as visitas à Rússia ou para o conforto da Trump Tower. Toda a gente sai a ganhar.

Vou para não ficar (excerto VIII)

Um rol de emoções, ecos do passado, murmúrios do futuro em quatro mãos que se tocavam, em dois olhares que se fitavam mutuamente. Numa sincronia perfeita que poderia ser atestada se o momento tivesse sido gravado e pudesse ser revisto, uma e outra vez, fotograma a fotograma, segundo a segundo, os dois levantaram-se ao mesmo tempo, num movimento brusco, irremediavelmente sugados um pelo outro. Duas células a unirem-se num procedimento natural. Beijaram-se, agarraram-se com violência. Treparam à mesa, ignorando pratos, talheres e a panela. Duas respirações alteradas que rugiam em uníssono uniam-se numa conversa urgente. Um talher caiu no chão da cozinha tilintando, uma das cadeiras tombou para trás com estrondo. Salvador despiu a camisola azul de Alexander. Beijou-lhe o queixo, o pescoço, o peito, um e outro mamilo. Ajoelhados em cima da mesa, de olhos fechados, numa abstração de espaço e tempo, Alexander sentia o toque da boca de Salvador em cada parte do seu corpo e sobressaltava-se a cada novo pousar de lábios. Pousou-lhe as mãos na cabeça, embrenhando-as no cabelo escuro cortado curto. Ele beijou-lhe o umbigo. Sentiu a ponta da língua a introduzir-se na cavidade e as lágrimas simplesmente assomaram-lhe aos olhos. Corriam em torrente pelas faces, pingando para o torso, escorrendo peito abaixo. Abriu os olhos. A evidência, aquilo que se procura uma vida inteira, o motor acelerador da existência, estava ali. À mão de semear.
 

Tabus: o suicídio

Falar de suicídio é falar de um assunto tabu. Olhando para a vida como um bem pessoal próprio, seria normal considerar que cada um poderia e deveria, a seu bel-prazer, dispor desse mesmo bem. No entanto, condicionantes várias fizeram evoluir (não necessariamente na aceção de melhorar), ao longo dos séculos, a forma como vemos essa disposição da própria vida por parte dos seres humanos, transformando o suicídio num tema sensível.

 

Antes de mais, penso que poderei dividir o suicídio em três categorias (divisão simples e talvez simplista): o suicídio motivado por razões passionais (uma dívida impagável, um amor não resolvido, uma traição, uma situação extrema de vida), o suicídio motivado por questões médicas (pessoas com determinadas perturbações psiquiátricas ou neurológicas terão, como sintoma próprio da doença, maior propensão para cometer suicídio) e o suicídio racionalizado ou de índole existencialista. Embora, em muitos casos, os suicídios possam estar fundeados em motivações que abranjam mais do que uma categoria.

 

Afastando-me dessa categorização, tento observar e compreender aquilo que nos leva a considerar a vida como um bem inalienável e como tal, a considerar o suicídio como um ato grotesco. A religião terá, certamente, um peso considerável na forma como vemos a morte infligida pelo próprio. Na religião católica, o dogma centra-se na questão da vida de cada um de nós pertencer a deus e não ao próprio e, como tal, só deus poderá tirar aquilo que nos deu. O suicídio afigura-se assim como um pecado porque a pessoa, de forma arrogante, substitui-se ao papel de deus (decide por si aquilo que não estará nas suas mãos decidir). Este dogma, embora religioso, entranhou-se em todas as fissuras sociais e culturais. É uma aceção quase generalizada de que a vida não é bem pessoal e como tal, não pode ser inalienável por quem a possuiu. E mesmo quando há um afastamento relativamente aos conceitos religiosos, ainda assim existe alguma resistência em se considerar a vida como algo de gestão pessoal, onde se possa delimitar contornos, inícios e fins.

 

Relembro um documentário que vi sobre uma das vítimas do atentado de 11 de setembro. Várias pessoas, num ato de aflição, cometeram suicídio naquele dia fatídico, saltando dos andares cimeiros das torres atingidas. Uma dessas pessoas ficou imortalizada através de uma poderosa fotografia. «The falling man», uma imagem de uma simplicidade dolorosa, mostra o encerrar de uma vida, um final motivado pelo medo, pelas chamas e o fumo em aproximação. Num documentário baseado numa investigação jornalística, tentaram chegar à identidade do homem em queda (ainda hoje desconhecida). Os jornalistas acreditaram ter descoberto o nome do suicida, mas esbarraram com uma total recusa da própria família em acreditar que aquele homem em queda era o seu ente querido. Para a família, extremamente religiosa, nada poderia levar o seu ente querido ao suicídio, nem mesmo a mais extrema das dores. A recusa em ligar o seu filho àquele ato considerado pecado, levou os pais a desconsiderar a investigação jornalística e a recusar liminarmente a identificação. Em suma, para alguns, o medo do pecado e a crença que as suas vidas estão nas mãos de deus terá sempre mais força do que qualquer situação extrema em que a vida os possa colocar.

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Fotografia de Richard Drew, Associated Press

 

No entanto, saindo dos terrenos dos dogmas e dos pecados, mesmo assim assumo que em nós, humanos, existe um qualquer dispositivo interno, talvez uma predisposição genética para a salvaguarda da vida. Talvez (e digo talvez porque discorro apenas baseada nas minhas ideias e sem qualquer suporte académico e científico para o fazer), o nosso ADN reserve o segredo desta abominação ao atentado à vida, uma forma de nós, seres humanos, podermos preservar e fazer vingar a nossa espécie. Mesmo auxiliados pelo nosso raciocínio, com a capacidade de ir além do óbvio, do material, de podermos seguir para o pensamento crítico e abstrato, temos em nós um instinto natural de preservação (nossa e dos outros). Se pudermos, impediremos um suicida de saltar de uma ponte e se não o conseguirmos, a imagem da sua morte perseguir-nos-á eternamente.

 

Para finalizar este tema, recordo um texto que li há uns bons anos. Quando lia o livro Atlas das Nuvens de David Mitchell, sublinhei esta passagem sobre o suicídio. É parte de uma carta que o personagem R.F. deixa a Sixsmith antes de cometer suicídio. Procurando o livro pelas estantes, lá o achei, assim como o meu sublinhado a lápis nas páginas 567 e 568. Acho que define de forma seca e sem arestas a decisão de um suicídio racionalizado, um ato pensado e pessoal.

 

Os amantes desprezados, os que choram por socorro, todos os lamurientos trágicos que dão mau nome ao suicídio são os idiotas que se precipitam, como condutores amadores. Um suicídio verdadeiro é uma convicção calma e disciplinada. As pessoas pontificam: «Suicídio é Egoísmo». Os eclesiásticos de carreira como o meu pai estão um passo mais à frente e chamam-lhe um cobarde atentado contra os vivos. Os imbecis questionam os suicidas por várias razões: para evitarem acusações de culpa; para impressionarem o seu público com a sua fibra mental; para expandir a raiva; ou simplesmente porque lhes falta a capacidade de sofrimento necessária para uma verdadeira compaixão. A cobardia não tem nada a ver — o suicídio implica uma dose considerável de coragem. Os japoneses é que têm a ideia certa. Não, egoísmo é exigir a alguém que aguente uma existência intolerável apenas para poupar às famílias, aos amigos e inimigos uns momentos de introspeção.

Atlas das Nuvens, David Mitchell, Dom Quixote (páginas 567 e 568)

 

Esta foi apenas uma pequena e singela introspeção sobre o tema suicídio, num novo tag que inauguro hoje — Tabus.

Mylène

Não me apetece escrever sobre quem partiu. Estão os blogs cheios de Requiescat in pace ou, numa alternativa mais grotesca, de insultos vários. Rumando contra a corrente, falarei dos que ainda por aqui estão, daqueles que de alguma forma contribuem para o filme da minha vida, dando-lhe som, imagens, um guião de fantasia.

 

Nunca fui grande consumidora de música pop. Em adolescente ouvia, noite e dia, hard-rock, heavy-metal ou então música clássica. Embora hoje seja mais eclética nas escolhas e haja espaço para novos géneros musicais, a música pop não tem grande expressão na minha seleção musical.

 

No entanto, há quase vinte anos que tenho um fraquinho musical por um artista pop. Francesa, mas nascida no Canadá, já vendeu milhões de discos nos países francófonos, consegue arrastar multidões aos seus concertos, tornou-se uma diva pop e ícone da comunidade LGBT. Os clips das suas músicas são como pequenos filmes (produzidos com um cuidado cinematográfico), os seus concertos são megalómanos com direito a um guarda-roupa exclusivo, bailarinos em coreografias laboriosas, e todo um aparatoso sistema de luzes, imagens e mise en scene.

 

Mylène Farmer, cantora e compositora, com uma voz frágil (um fio de voz) consegue, ainda assim, fazer maravilhas com tão pouco. O tempo passa e regresso-lhe aos braços sem reservas. Músicas que me fazem dançar pela casa, músicas que me fazem chorar como uma adolescente por um Bieber, músicas que elevam aquela mulher a um olimpo pessoal. E a atração musical é também uma atração pela pessoa, pelo mistério com que Mylène, tão bela, se envolve.

 

A Mylène, que venha tudo o que uma diva pop tem direito.

 

Mylène farmer - Je te dis tout (álbum Monkey me)

 

Mylène Farmer - Diabolique mon ange (edição do clip com imagens dos queconcertos da tourné Timeless)

 

 

 

Vou para não ficar (excerto VII)

14 de outubro
 
A água escorreu gargalo fora do garrafão de plástico, fluindo pelo alcatrão, indo ensopar-se na terra exposta, onde o lancil do passeio e calçada portuguesa tinham sido arrancados. Não há dia que não pense naqueles olhos que me fitaram por meia dúzia de segundos, do outro lado da estrada, antes do corpo, impulsionado por uma bala perdida que trespassou as costas, ter caído para a frente, de bruços. Era apenas uma criança. Aquele olhar castanho carregado de esperança e determinação, tudo coisas já perdidas para mim, palavras com um significado abstrato, arde dentro de mim e pela primeira vez desejei morrer só para poder esquecer, porque sei que por mais anos que viva, aquela será a primeira e última imagem que verei ao acordar e deitar. Uma criança de bruços, rosto colado ao chão, com as mãos a tocarem ao de leve num garrafão que se esvazia e eu, na minha passividade provocada pelo choque, observo do outro lado da estrada, gravo de forma definitiva, inapagável, cada detalhe, cada som, cada cheiro daqueles minutos para todo o sempre dentro de mim. 

Quando esquecer e morrer são os sonhos que impulsionam uma vida, algo de muito errado se passa neste mundo. 
 

Duterte — Psycho killer qu'est-ce que c'est

Quando um país começa a cair numa espiral de decadência, quando o povo parece estar de tal forma resignado (mas interiormente revoltado) com a impotência dos governantes, há espaço para o surgimento de um herói.

 

Quase todos os países governados por uma força politica de cariz ditatorial tiveram a sua génese governativa no aparecimento do político herói. Alguém com soluções drásticas para problemas drásticos. Alguém que parece ter a solução para problemas que são endémicos, estruturais, com um simples toque de mágica. Todo o poder da solução encerrado na figura de um único homem. Simples, muito simples, exclamam.

 

Rodrigo Duterte, presidente das Filipinas, é o herói do momento na sua terra natal. Num país dominado pela corrupção e pela criminalidade ligada ao narcotráfico, Duterte chega aos seus eleitores com um discurso de soluções extremas — uma caça e extermínio de traficantes e consumidores de droga. O corte do mal pela raiz.

 

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Inicialmente, começou com um incitamento às forças policiais (com o toque implícito da falta de consequências no caso de atitudes extremas serem tomadas), agora esse incitamento à caça à bruxa passou para a população em geral, quando o presidente veio assumir que matou, pessoalmente, vários criminosos enquanto foi presidente da câmara de Davao e não via razões para as pessoas, no geral, não fazerem o mesmo. Admitiu ainda, recentemente, ter atirado um suspeito de um helicóptero em voo.

 

Desde que Duterte assumiu a presidência em meados do ano passado, milhares de pessoas com ligações ao narcotráfico foram já mortas, mas o número a que Duterte pretende chegar é o de 3 milhões. Comparando-se a Hitler (numa tirada que depois considerou infeliz pelo paralelo), disse que ficaria feliz por matar 3 milhões de toxicodependentes e traficantes de droga.

 

Duterte vai construindo assim uma aura de herói rebelde, respondendo com extrema violência às angústias dos cidadãos do seu país, provocando a imprensa com alegações que nem sempre serão verdadeiras, mas que lhe dão visibilidade (dentro e fora de portas), espalhando medidas que parecem estapafúrdias, mas que têm eco nos medos das pessoas (uma das últimas medidas que pretende aprovar é a alteração da idade de responsabilidade criminal. Esta passaria dos 15 anos para os 9 anos de idade.)

 

Olhando para a génese desta governação, percebo que o mal nasce sempre de uma extrema necessidade de bem. Há muito crime, as pessoas estão fartas, surge alguém que promete fazer desaparecer o crime, desaparecendo com os criminosos. E esta vontade de resolver os problemas, que parece tão singela, revela-se, no entanto, populista, impulsiva e sem noção das consequências sociais.

 

O sistema judicial é substituído pela justiça popular, há uma clara margem para o surgimento do crime de vingança sem punição, para o surgimento dos bufos, dos delatores. O órgão de justiça que deveria ser independente do estado, imparcial, passa assim a ser popular, movido pela passionalidade e não pela imparcialidade.

 

E se, visto de fora, percebe-se a forma como Duterte está a modelar os seus cidadãos e a sua sociedade, como vai construindo o seu posto de estrela justiceira, no seu país ele é visto como o anjo salvador da pátria. Muitas pessoas alegam que os efeitos das suas ações são já visíveis, que o país está a tornar-se mais seguro, que a criminalidade tende a desaparecer.

 

Lendo os comentários de várias notícias em órgãos noticiosos internacionais, não faltam frases de apoio ao presidente e até frases de inveja de cidadãos de países vizinhos. Um cidadão indonésio dizia: Queremos um Duterte no nosso país. Que sorte que vocês, Filipinos, têm.

 

E no final, até onde pode ir o mal, a violência, para justificar o bem? E quais são os limites das ações de um governo, mesmo quando apoiado totalmente pelo seu povo?

 

Guerra à masturbação

Os deputados da bancada evangélica, lá por terras dos nossos irmãos brasileiros, são pródigos em ideias peregrinas de alto gabarito, tudo em prol do melhoramento do país, claro está. Combater a corrupção, promover melhorias no sistema de saúde público, desenvolver o deficiente sistema educativo? Não! Bem melhor do que isso é levar a votação uma lei que combata a malfadada punheta.

 

O deputado federal Marcelo Aguiar, antigo cantor e ator, agora deputado, encontrou na pornografia a encarnação de todos os males do mundo. Para grandes males, grandes remédios. Está a desenvolver uma lei que pretende levar a votação a proibição de todos os conteúdos pornográficos na internet. As operadoras, no caso de aprovação da lei, seriam obrigadas a interditar todos os sites ligados a conteúdos pornográficos, para libertarem os cidadãos daquilo que o deputado considera ser um vício crescente. Segundo Marcelo:

 

Estudos atualizados informam um aumento no número de viciados em conteúdo pornográfico e na masturbação devido ao fácil acesso pela internet e à privacidade que celular e tablet proporcionam, os jovens são mais suscetíveis a desenvolver dependência e já estão sendo chamados de autossexuais - pessoas para quem o prazer com sexo solitário é maior do que o proporcionado pelo método, digamos, tradicional.

(excerto retirado desta notícia do DN)

 

Na impossibilidade de controlar todos os atos solitários dos autossexuais (uma pessoa está sempre a aprender coisas novas), o melhor, achou o Marcelo, será combater aquilo que fomenta os atos. A pornografia.

 

Bem, aos amigos brasileiros, sugiro que descarreguem da net a maior quantidade de pornografia possível, armazenem em discos rígidos e rezem para que não aconteça o pior. Nunca se sabe. E mesmo que a coisa em forma de lei passe (pouco provável), o auto prazer continuará disponível (a não ser que inventem um masturbómetro para cada cidadão usar). Se não for com a ajuda da pornografia, a imaginação lá terá de chegar.

O mundo lá fora

Escrevo e escrevo-vos quase todos os dias. Não há nada de altruísta neste meu ato. Escrevo para me sentir menos só, como se falasse diretamente convosco sobre aquilo de que gosto, aquilo que me atormenta (mas apenas aquilo que é pronunciável. Os impronunciáveis não pertencem aqui. Não pertencem a lado nenhum). Transformo-me, aos vossos olhos, num ícone, num avatar que desfia palavras, num ser invisível, virtual, que existe apenas em forma de palavras e frases. Olhando para o meu avatar, poderão questionar-se se aquele meu grito (quadro de Munch) é um grito de desespero, de frustração ou antes um grito de libertação. Mas mesmo que vos apresente a minha fotografia, que daí poderão concluir? As minhas feições assimétricas, o meu nariz grande, os meus olhos míopes não vos revelarão os meus segredos. Com imaginação poderão tentar construir na vossa cabeça um personagem de ficção que na realidade não existe, mas a imaginação é isso, a massa consistente que tapa as fendas abertas de uma parede em ruínas.

 

No entanto, no mundo lá fora o erro repete-se. O corpo que sai de casa, cumprimenta este e aquele, percorre os corredores de supermercado, não será mais real do que o avatar virtual. As banalidades do dia-a-dia são incapazes de fazer descer a máscara, algumas conversas trocadas ao vivo terão menos substância do que os comentários de um qualquer blog. E, tanto umas como outras (as conversas virtuais e reais) são dirigidas não a mim, mas a um ser imaginado, um fantasma primo em terceiro grau da pessoa real. E de tudo isto, instala-se uma incompletude permanente. O virtual tenta encaixar no real para formar uma peça completa, mas, ainda assim, o puzzle continua incompleto, com buracos pelo meio.

 

Mas a vida deve ser isto (sem certezas): uma mente encerrada num corpo que ainda aprende (e fá-lo-á até morrer) a expressar os desígnios do seu prisioneiro, ainda aprende a comunicar com todos os outros encarcerados que o rodeiam.

 

Eu, por mim, continuarei a tentar.

 

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O Evangelho Segundo Lázaro (Richard Zimler) — «Respondi-te no lugar onde se esconde o trovão».

Para se fazer uma crítica, para se avaliar o trabalho de alguém, será sempre necessário um olhar objetivo, despido de preconceito, focado na essência e não na circunstância. Não posso dizer que tenha capacidade para fazer uma crítica objetiva seja do que for. O meu julgamento está constantemente toldado pela emoção, contaminado pela subjetividade do meu olhar (a minha experiência de vida, aquilo que sou, faz-me fruir as coisas de maneira diversa de qualquer outra pessoa). O meu olhar não é despido, imparcial, ele é a soma de todas as partes e aquilo que nasce, evoluiu à minha frente sob o desígnio de uma determinada leitura, é necessariamente único, só eu o posso ver, sentir, resguardar-me sob a égide da sua força, sofrer os seus tumultos.

 

Por isso, se quero falar sobre o último livro de Richard Zimler, o que aqui vos escreverei não será uma crítica. Deixo-vos o Evangelho Segundo Lázaro, segundo Sónia Pereira.

 

As religiões, para mim, sempre se encerraram numa espécie de câmara de fascínios e horrores. Desde cedo me autoproclamei imune ao toque religioso, mas uma infância totalmente evangelizada, uma meia vida vivida sob a presença constante do catolicismo teve, inequivocamente, efeitos sobre mim. Sinto repulsa pela religião, mas uma tremenda atração pela crença. Daí, quando percebi que a última obra de Richard teria como personagens centrais Lázaro (Eliezer) e Jesus (Yeshua), a vontade de ter aquele livro na mão ganhou um contorno quase místico. A antevisão do que ali estaria, de até onde Richard conseguiria levar aqueles personagens e, consequentemente, levar-me a mim, puxava-me para aquelas páginas com uma força algo sobrenatural.

 

O narrador é Lázaro e aquilo que temos pela frente é o testemunho que este vai desfiando, página após página, ao seu neto Yaphiel. Fala da sua ressurreição, um retorno da terra dos mortos promovido por Jesus, dos efeitos perversos do seu regresso à vida, das dúvidas que aquele retorno despoletou, da forte união que tinha com Jesus, que começou ainda eram os dois crianças, na perseguição e morte do amigo, no desespero da perda, na impotência implícita, mas no laço (imaginado, real?) que se manteve além-vida e na reflexão de como, cada segundo, cada milímetro da vida dos dois, Lázaro e Jesus, poderá ter-se desenrolado para alcançar um determinado fim. Nada aconteceu em vão, nenhum sussurro foi um desperdício, nenhuma dor caiu no vazio.

 

Como ponto inicial, refiro a grandeza da contextualização história. Não raras vezes, sou confrontada com romances históricos que o são de forma medíocre. Não basta referir que a história se passa em tal sítio e em tal data para o autor conseguir transportar os leitores até àqueles tempos idos. Um romance histórico exige uma enorme investigação, uma total contextualização à época, aos personagens, da mensagem que o escritor pretende passar. Este romance de Zimler é magistral nesse sector. Para além de nos trazer dois personagens que necessariamente serão familiares a quase toda a gente, esses personagens estão magnificamente envolvidos numa época, com linguagem própria, com lendas próprias, com maneiras muito específicas de se viver e ver o mundo em redor. E Zimler teve o condão de trazer aqueles cheiros, aqueles sons, aquele rebuliço de uma época, de uma região, e encerrá-los dentro das páginas deste livro.

 

Conseguiu ainda erigir uma obra que facilmente poderia decair numa visão alternativa sobre textos sagrados existentes, um novo evangelho entre outros, um olhar sobre a vida de Jesus do ponto de vista de Lázaro, transmutando-a numa história que vai muito além da religião, da crença, da existência daquele ser humano especial que terá sido Yeshua. Na minha frente, cresceu um louvor a uma amizade extrema, a uma união entre dois seres humanos que ultrapassa a união física (embora também o seja), para ser uma união metafísica, espiritual, uma missão de vida (e para além da vida) conjunta, una.

 

Refiro ainda algo que é transversal a todos os romances do autor — a capacidade de transmitir o aconchego físico, o toque. Em mim reside um conflito interno sobre o toque humano. Quero-o, mas, paradoxalmente, tenho uma certa reserva em o aceitar. Talvez por isso, desde sempre percebi, com um certo fascínio, a relação do autor com a transmissão do aconchego físico, da afeição traduzida em gestos, sem reservas. Seres que não se inibem de se tocarem, de exprimirem afeto pelo toque, sejam homens, mulheres, crianças e até animais. O calor dessa afeição transmitida transpira por entre letras e páginas e chega até mim, leitora. E é reconfortante, de uma forma primária, mas superiorizada.

 

Numa crítica no jornal Público, Helena Vasconcelos considerava esta obra de Zimler o seu romance mais completo e magistral. E realmente é-o. Sou leitora de Zimler há anos, mas ler este livro foi como a subida a uma torre mágica, altaneira, de onde se consegue vislumbrar até aos confins da terra. E se vos digo que escrevo estas linhas num certo estado de exaltação, embalada numa mística que só os melhores autores conseguem criar, não vos estou a mentir. Ainda lá estou, em Betânia, em Jerusalém,  a ouvi-los, a pressentir a grandeza encerrada em cada palavra e gesto.

 

«Pede e o teu desejo será concedido. Procura e encontrarás. Bate à porta e ela abrir-se-á para ti.» Yeshua bem Yosef

(página 15 )

 

Respondi-te no lugar onde se esconde o trovão. (página 436)

 

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Evangelho segundo Lázaro, Richard Zimler, Porto Editora

 

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