Movia-se como se temesse que a floresta estivesse minada e cada passo pudesse ser o último. Encostei-me a uma árvore, senti o arranhar do tronco irregular no meu braço esquerdo e fitei-o, monitorizando cada movimento, o seu toque inconsciente com a mão direita, de dez em dez segundos, no corpo da metralhadora pendurada no ombro direito, o olhar circundante que tudo queria abarcar, que pousava dois ou três segundos em cada recanto. A uns cinquenta metros, esse mesmo olhar perscrutador deu comigo e fê-lo deter-se, agarrar na arma com rapidez e apontar-ma por entre árvores. Não me mexi. Ele não começou de imediato a caminhar. Ficou parado, de arma em riste, a espreitar-me por entre a vegetação, recomeçando a andar lentamente depois de constatar a minha inação. Quando estava a meia dúzia de metros de mim, parou e ali ficou, a apontar-me a metralhadora sem nada dizer. Não são precisas palavras na violência. Bastam as ações.
Lembrar-se-ia de mim? Sei que mudei, que sou um pálido, distorcido reflexo do que era há uns meses. Mas talvez algo de mim tenha permanecido na sua memória.
Embora o tenha reconhecido ao longe, a imagem grotesca que guardava dele era um contraste absurdo com a realidade. Ele era apenas um miúdo. Por entre a sujidade daquele rosto de feições retesadas pela adrenalina, vislumbravam-se as borbulhas típicas de um rosto ainda púbere. Mais novo, mais baixo, menos entroncado do que me lembrava. Também ele era um pálido, distorcido reflexo da imagem guardada na minha cabeça. Mas embora o aspeto fosse distante da recordação, a expressão era a mesma. A personalidade projetava-se em cada detalhe da fisionomia do rosto. A testa franzida, os maxilares tencionados, o queixo levantado num desafio, traduziam a clara necessidade de se sentir valorizado, um ego ferido, uma gritante necessidade de amor. Senti mesmo, por breves instantes, vontade de o abraçar.
[...]
Quando as suas conexões cerebrais estabeleceram uma ligação entre aquela pessoa que estava à sua frente e um rosto do passado, proferiu: «Puta que pariu. Não acredito no que estou a ver.» Desatou a rir, fazendo a metralhadora movimentar-se ao sabor do estremecimento físico causado pelo riso. Para ele, eu era como um palhaço mal ataviado numa festa infantil. Ria-se da minha presença inusitada, a quilómetros de casa, da minha barriga, fruto do brilhante desempenho do seu coleguinha, do meu semblante cansado, envelhecido e ria-se das memórias aparentemente agradáveis do nosso primeiro encontro.
Fechei os olhos. O riso, o timbre da sua voz…
Apenas ansiava por um pouco de música e esse anseio, naquele momento, quase ao nível desesperado do querer comida quando se está esfaimado, querer roupa quando se está dominado pelo frio, despertou em mim um rol de emoções tencionadas em sons e imagens.
A primeira vez que ouvi uma música que me levou às lágrimas, o cantor que adorava em criança e que agora considero oficialmente piroso, mas que secretamente ouço de vez em quando, o primeiro concerto da minha banda preferida, o burburinho na sala de espetáculos e os primeiros sons que instantaneamente calaram a plateia, a música a entrar-me ouvidos adentro pelos auriculares enquanto, no meu quarto, olho para o exterior, para o sol forte do meio do verão, que me faz fechar os olhos e lacrimejar, a tua música a dominar a casa nos dias de férias, fazendo os vidros vibrarem, as paredes estremecerem, a minha dança com Ângelo ao som da música que saía daquele rádio velho, os versos em rima na voz enternecedora de Mozart.
Abri os meus olhos.
O cantar dos pássaros, o som da água a correr riachos abaixo, o vento a redemoinhar nas chapas torcidas das casas destruídas, o chocalhar dos guizos do gado, não chegavam. Aquele riso de escárnio, o bater acelerado do meu coração cansado, não bastavam.
Pensava nisso, nessa minha quase vampírica ânsia musical — uma ânsia pela única experiência verdadeiramente transcendente e divina que conhecia — quando lhe parti a maioria dos ossos do rosto. A minha metamorfose, sempre tão rápida e inesperada, apanha todas as minhas vítimas desprevenidas. Este meu agigantamento, um David decidido a confrontar o seu Golias, faz-me agir em segundos, num impulso sem qualquer ensaio ou pensamento prévio. Deixei cair por terra o que trazia nas mãos, peguei num pedregulho que repousava no chão, junto ao tronco da árvore à qual me encostava e saltei para cima dele. Ele caiu para trás. Montada sobre o seu tronco, agredi-o consecutivamente.
Já não estava ali. A minha mente estava noutro sítio qualquer. Flutuava junto à aldeia histórica, voava por cima do rebanho de ovelhas, sentia o peso do calor nas pálpebras quando observava o horizonte desprovido da evidência de qualquer presença humana. O som trouxe-me de volta. Ouvi aquele estalar inconfundível, o partir de uma massa dura mas porosa e também aquele som não tinha nada de musical e odiei-o ainda mais por me dar aquilo e não música. A minha tão ansiada música. Ele não gritou, não berrou e ocorreu‑me que talvez me estivesse a compreender.
Um atentado no Canadá faz seis mortos. Dois (ou três) homens entraram numa mesquita e atiraram indiscriminadamente sobre as pessoas que estavam no interior. Seis pessoas perderam a vida, o primeiro-ministro canadiano lamenta o ato cobarde e terrorista, dois homens foram presos como presumíveis autores, há a possibilidade de um terceiro ter escapado.
Leio a notícia, sentindo o mundo como um lugar estranho, imersa naquele aperto de peito que as mortes evitáveis causam, rodeada pela confusão do não entendimento das razões que levam alguém a causar a morte a pessoas que nem conhece.
Inadvertidamente, fui fazendo scroll pela página da notícia e lá estavam… os comentários grosseiros, a psicopatia em forma de palavras, a baixeza do ser humano escarrapachada em dezenas de comentários horríveis. A defesa do ato terrorista, o desejo da morte de todos os muçulmanos mundo afora. E o ridículo dos ridículos — o extremismo das palavras contra aqueles que são apelidados de extremistas.
Fechei os olhos e repeti para mim mesma: nunca leias os comentários das notícias, nunca leias os comentários das notícias, nunca leias os comentários das notícias.
Aquelas pessoas, que destilam veneno nas caixas de comentários, habitam entre nós, andam por aqui, têm filhos que andam nas escolas dos nossos filhos, vão à missa aos domingos, saem com os amigos em alegres convívios, trabalham entre nós, atendem-nos em serviços públicos, atendem-nos em empresas privadas, votam, conversamos com elas de forma insuspeita.
Posso combater esta onda de ignorância? Não me parece.
O melhor a fazer é vestir o casaco da ingenuidade, da inocência. Se eu não ler, não me perturba. E assim, posso continuar a fingir que todos nós somos pessoas de boa índole, com empatia pelo sofrimento alheio, conscientes dos males do mundo, pessoas que não estão focadas no seu próprio umbigo e que conseguem ver para além do ódio motivado pelo medo.
Assim, repitam dez vezes: nunca ler os comentários das notícias. Nunca ler os comentários das notícias.
Com a chegada das redes sociais, chegou um novo flagelo da humanidade: as frases motivacionais, as citações de autores ou personalidades conhecidas, frases certeiras de figuras históricas. Não há feed neste mundo que não tenha pelo meio uma boa dúzia de frases bem emolduradas por um fundo fofinho, tudo criado para nos dar alento, injetar confiança, provar um ponto de vista. Passamos a ser guiados na vida pelas sábias palavras de Freud, Einstein, Abraham Lincoln, Buda, Dalai Lama, Fernando Pessoa, Voltaire, Maquiavel, Shakespeare e muitos outros.
O problema começa quando o desgraçado do autor citado afinal não disse o que disse, não fez o que dizem que fez. E a partir deste ponto tudo é possível. Temos frases ditas por um e atribuídas a outro, temos frases que apareceram do nada e são atribuídas a uma figura histórica de relevo, temos uma mixórdia que mistura ficção e realidade de forma hilariante e temos, por último, a paródia, que brinca, através da citação, com a nossa crença em tudo o que lemos na internet.
Isto não é uma citação, mas uma atribuição de ações a uma personalidade histórica. Mas nada bate certo — nome, imagem, factos.
Esta citação brinca com a credulidade das pessoas em tudo o que leem na internet.
Voltaire nunca disse ou escreveu esta frase. A frase foi escrita por uma escritora inglesa numa biografia sobre o filósofo.
Também esta goza com as falsas atribuições das citações na internet.
A inspiração para este post veio de um colega bloguista. Ele citava uma frase de Fernando Pessoa, que é uma das frases mais partilhada em língua portuguesa. Não haverá português que não conheça a citação, que é atribuída sistematicamente a Pessoa.
No entanto, a frase não é de Pessoa, mas esta falsa atribuição generalizou-se de tal forma que uma jornalista chegou a escrever um artigo num jornal de referência onde atribuía o poema a Pessoa. Apesar dos desmentidos que se seguiram (a casa Fernando Pessoa nega perentoriamente que o poema seja do autor, a jornalista pediu desculpa pela falsa atribuição, o jornal pediu desculpa pela falha), a citação continua a circular como sendo do autor português quando, na verdade, é do blogger brasileiro Nemo Nox.
Mas o mundo das citações está cheio de exemplos destes. Alguns jornais e sites já se dedicaram a apanhar estas falsas atribuições das mais conhecidas citações.
A frase mais conhecida de Sherlock Holmes não aparece em nenhum livro de Conan Doyle. Só começou a ser usada quando a personagem de Doyle foi adapatada ao cinema.
Não posso extrapolar do que se passa em minha casa, aquilo que eu considero ser o normal ambiente conjugal, para o que se passa na casa dos outros, dos limites e fronteiras estabelecidas pelos outros casais para os seus relacionamentos afetivos. No entanto, excluindo a questão dos fetiches (com regras próprias pré-estabelecidas), a violência não pode, em hipótese alguma, integrar o que alguém designa como normalidade familiar.
Por isso, é sempre com espanto que leio certas notícias relativas a decisões judiciais, em que os agressores não sofrem qualquer punição jurídica, e onde certos comportamentos, a meu ver desajustados, são vistos de forma benevolente pelo juiz ou coletivo de juízes.
A notícia de que falo refere-se a um arguido acusado de violência doméstica, de apertar o pescoço à companheira como reação às supostas traições, de empurrões e de agressões que, segundo os relatórios médicos referidos no acórdão «apontam que a vítima sofreu um traumatismo abdominal e dores na região supra mamária, resultado das ofensas físicas».
No entanto, o indivíduo em questão foi absolvido, podendo ler-se neste excerto do acórdão “não é, pois, do mero facto de o arguido consumir bebidas alcoólicas, ou de tomar uma ou outra atitude incorreta para com a ofendida (por exemplo, ir “tirar dinheiro” da carteira desta), ou de, numa ocasião, após um insulto da ofendida, ter agarrado o pescoço desta com uma mão (…), que podemos concluir pela existência de um maltrato da vítima, no sentido tipificado no preceito incriminador da violência doméstica”.
Segundo a notícia no site da TSF e Jornal Económico, o indivíduo de que falo já tinha sido condenado por violência doméstica, mas teve a sua pena suspensa por ter aceitado fazer um tratamento para o alcoolismo.
O meu espanto não é fruto somente desta decisão judicial, mas é também um espanto com memória. A memória das dezenas de mulheres que morrem anualmente às mãos de companheiros ou ex-companheiros, homens alcoólicos, homens que não aceitam o fim de uma relação, homens movidos pelo ciúme doentio, homens que têm nas mulheres um objeto que lhes pertence, homens que sentem que podem vingar uma qualquer honra perdida pela traição (ou suposta traição), homens egocêntricos sem empatia por outro ser humano.
O coletivo de juízes, composto por Maria Filomena Soares e João Amaro, referiu que para o crime se considerar de violência doméstica é necessário que exista um grau superior de consequências que afete a dignidade pessoal da vítima, não bastando uma série de crimes cometidos durante uma relação afetiva para que maus-tratos passem ao crime de violência doméstica. (fonte: Jornal Económico)
Quando um tribunal, estância de salvaguarda máxima da segurança de um cidadão, considera que há tau-taus e tau-taus, que a violência, dentro de certos parâmetros, é admissível no seio familiar (mesmo onde coabitam crianças, como é o caso referido acima), esse tribunal está a dar um sinal inequívoco de tolerância a comportamentos desadequados futuros, está ainda a silenciar as vítimas, a justificar as mortes.
Como nem só de Trump vive o homem, hoje decidi fazer um texto diferente. Um pequeno relato muito sintético de algumas das histórias das aventuras e desventuras do meu pai, taxista de profissão, já reformado.
Quando vivia em Lisboa, experienciei algumas situações caricatas com taxistas —viajei com um taxista que tinha uma veia assassina — sempre que se aproximava de uma passadeira cujo sinal de peões tinha mudado recentemente para vermelho, acelerava como um louco, quase ceifando os peões mais atrasados; ou ainda um outro que se descalçou quando entrou no carro, conduzindo descalço, aumentando o volume do rádio, que debitava música clássica, quase aos limites do aceitável. Foram, entre muitas outras, experiência engraçadas (e assustadoras) que vivenciei na capital, mas nada comparáveis às histórias do meu pai como taxista na província (como os meus colegas e amigos de Lisboa chamavam a todas as localidades além-fronteira do distrito).
Uma das clientes do meu pai, num forte dia de sol, resolveu abrir a sombrinha dentro do carro, um guarda-chuva que quase furou o revestimento do teto da viatura, levando o meu pai a conduzir a toda a brida pelo centro da localidade, não fosse ser reconhecido pelos colegas e sequentemente gozado pela situação insólita. Também as chamadas de um carro de praça em dia de feira poderiam trazer água no bico, como de uma vez em que, chegando à feira para ir buscar uns clientes, se deparou com um passageiro suplementar. Os clientes tinham comprado um porco que pretendiam transportar de táxi até casa. Havia ainda uma cliente mais idosa que todos os anos, no inverno, o contratava para a levar à praia. A senhora caminhava pelo areal vazio, sendo que a dada altura, virando-se de costas para o mar, levantava as saias para arejar por baixo. Segundo parece, o arejamento marítimo fazia-lhe bem, permitindo-lhe passar o resto do ano em pleno. Claro que, perante tal imagem, o meu pai, dentro do carro no estacionamento acima da praia, escondia-se atrás de um jornal com vergonha de ser associado à insólita situação.
Mas as histórias mais engraçadas acabam por ser as relacionadas com as idas ao bruxo ou bruxa. Tal como agora, algumas pessoas procuram ajuda muitas vezes motivadas por razões simples, como a solidão, a falta de quem as ouça ou por acharem que as vias normais não têm solução para aquilo que as apoquenta. Uma vez, há muitas anos atrás, o meu pai levou uma cliente a um bruxo. Chegados ao destino, o consultório estava cheio, deixando a cliente desmotivada por ter de esperar tanto tempo. Sugeriu ao meu pai que fossem comer qualquer coisa a uma tasca conhecida. Depois de umas sandes e uns copitos de vinho, o meu pai sugeriu que regressassem ao bruxo para verem se a sala de espera entretanto esvaziara, permitindo que ela fosse consultada, ao que ela respondeu: «Sabes uma coisa, já me sinto bem melhor. Acho que já não preciso de ir. Vamos para casa.»
Para finalizar, fica a história da cliente que, sentindo-se doente, anormalmente inchada, revelou vontade de consultar um bruxo já seu conhecido para tentar resolver o seu problema de saúde. No consultório, perante o ouvido apurado de outros clientes e do meu pai que por lá ficou, a senhora revelou ao bruxo os seus desconfortos, ao que ele lhe pediu que se levantasse. Agarrando-a por trás, rodeou-a com os dois braços e deu-lhe um valente apertão na zona abdominal. O que se seguiu a este método pouco ortodoxo foi uma sinfonia de flatulência e arrotos que deixou a cliente envergonhada, mas aliviada e os restantes clientes a controlarem o riso para não serem corridos pelo bruxo que não permitia tal escárnio na sua sala de espera. Podemos duvidar das capacidades dos bruxos, mas ao que consta, desta vez a cliente saiu do consultório satisfeita, com o problema resolvido, apesar da sessão de foguetes que a deixou um pouco humilhada.
Todas estas histórias e seus protagonistas são histórias do passado, de um tempo ido, embora as diferenças entre a relação cliente/taxista, se compararmos a cidade com a aldeia, ainda sejam abismais.
Quando morrermos, seremos a soma de todos os cheiros cheirados, de todas as palavras proferidas e ouvidas, de todos os gestos e agressões sentidos e provocados, de todos os sabores provados com delícia ou repugnância, de todas as imagens captadas pela nossa retina e transformadas em memórias visuais e de todas as músicas ouvidas, sons da natureza ou da urbanidade que nos remetem para episódios inteiros de uma vida passada. Atingimos o nosso frasco cheio no preciso momento em que fechamos os olhos para sempre.
Este prólogo vem a propósito da música e da sua preponderância nesta soma de todas as partes, na equação que começa a ser desenhada desde o dia que nascemos. E da música à nostalgia musical, maleita que começa a bater com força a partir da idade adulta, mas que se faz sentir desde tenra idade, vai uma brevidade de tempo que se olha como uma vida, um infinito de evocações e emoções.
Ainda mal tinha posto os pés na adolescência e já sentia uma certa nostalgia ao ouvir os Ondachoc e Ministars, embora os considerasse uma autêntica piroseira infantil. Aquelas notas remetiam-me para um tempo de infância, de inocência, letras cantadas aos saltos no meu quarto, onde cada objecto poderia ser transformado num microfone improvisado, verões quentes e festas de aniversário. Tempos idos e olhados com saudosismo mesmo que na altura deste primeiro arrufo nostálgico fosse apenas uma adolescente.
Agora, ouvindo secretamente o meu ídolo da pré-adolescência, Bryan Adams, faço um elogio mental ao álbum Waking up the neighbours. Recordo o primeiro concerto musical a que fui, a ambiência do local sob o meu olhar de doze anos, a emoção que senti naquela noite, a adrenalina que pululava em mim de cada vez que ouvia a cassete daquele álbum no meu walkman. Não posso dizer que actualmente seja grande fã do Bryan Adams, mas ele está num lugar especial das minhas memórias musicais.
Ainda na mesma altura, entre os dez e os catorze anos, costumava ouvir rádio já deitada na cama, como preâmbulo ao sono que viria. E se agora, nos meus trinta e sete anos, me aparece pela frente as músicas Everybody’s got to learn sometimes dos The Korgis, I’m not in love dos 10cc, Forever young dos Alphaville, Wuthering heights de Kate Bush e algumas outras, imediatamente viajo até àquelas noites, quarto escuro, o peso dos cobertores e a música a inventar histórias mágicas na minha cabeça de adolescente. Algumas delas também me transportam até viagens no autocarro do colégio. O condutor ligava o rádio sempre na mesma estação na viagem de regresso a casa e no programa de discos pedidos estas músicas figuravam invariavelmente. Mesmo que, numa análise racional, possa considerar algumas destas sonoridades lamechas, datadas, continuo a adorá-las. Sente-se a vibrar no peito uma espécie de saudade de tempos que não se repetirão, de momentos a que não chegámos a dar o devido valor, mas que sob o prisma da nostalgia, são preciosos, tesouros que guardamos com ternura.
Já depois dos trinta anos comecei a revisitar esporadicamente temas musicais que foram pontos altos da minha adolescência, embora fossem evocadores de momentos mais depressivos do que propriamente edílicos. Alice in Chains, Paradise Lost, Guns N’ Roses, Skid Row regressaram ao meu repertório musical e a caminho dos quarenta, recuperei os Faith No More, por quem morria de amores. Ouvir Man in the box, Dirt, Down in the hole, Would? dos Alice in Chains pinta, frente ao meu olhar mais envelhecido, dias e noites de lágrimas vertidas na almofada da cama, uma sensação de estar desajustada do mundo que me rodeava, um inconformismo que, ao invés de me exaltar, me tolhia os movimentos.
Estas evocações com um travo suicida são temperadas por um outro velho favorito — a Paixão Segundo São Mateus de Bach. A esta obra dividida em três CDs, ouço-a há vinte e cinco anos e não foi preciso repescá-la devido a um assalto nostálgico. Depois de tantos anos, com letras em alemão quase decoradas apesar de poucas palavras encontrarem algum significado na minha cabeça, certos momentos da obra são, ainda assim, canais para um dia de sol com vinte anos. Baixa de Lisboa, Chiado, pessoas sobem e descem a rua, Fernando Pessoa permanece estático perante os avanços dos turistas fotógrafos e eu, à saída do metro, de auriculares do discman nos ouvidos, observo a cidade, as pessoas, em busca de uma história pessoal em movimentos banais, sinto o calor do sol, que tem o condão de desanuviar a nebulosidade dos meus pensamentos e ouço o tenor, numa voz enlevada, aos meus ouvidos:
Ich werde von nun an nicht mehr von diesem Gewächs des Weinstocks trinken bis an den Tag, da ichs neu trinken werde mit euch in meines Vaters Reich.
Agora questiono-me que sonoridades presentes serão evocadas no meu futuro (se o tiver). Que músicas me farão viajar até ao passado e que momentos específicos serão recordados com nostalgia. E esses momentos, que chegarão em fragmentos, em reminiscências despoletadas pelo som de uma música, que cheiros, sons, movimentos trarão ancorados e que me farão pensar nesta era, neste agora, como sendo especial, irrepetível, um instante absolutamente perfeito.
Em 1909 começam a ser editadas em Portugal as traduções da tetralogia de Paul Combes, com o título geral de Os quatro livros da mulher e durante quase cinquenta anos os quatro livros que compõem esta obra são reeditados por diversas editoras portuguesas. O livro da esposa, O livro da mãe, O livro da Educadora e O livro da dona-de-casa são obras que pretendem modelar a mulher nas únicas quatro facetas que lhe estavam socialmente disponíveis — esposa, mãe, educadora (dos próprios filhos) e dona-de-casa.
Se noutros países da Europa e além Atlântico, nos E.U.A., a luta pela emancipação feminina era já um fenómeno expressivo desde o início do século XX e que tinha eco nas publicações editoriais dirigidas às mulheres, por cá, em Portugal, alguns livros de carácter emancipatório tiveram ainda a oportunidade de chegar ao prelo, mas após a constituição do Estado Novo, em 1933, as publicações dirigidas às mulheres resumiam-se a edições redundantes de carácter formativo, que tentavam colocar a mulher no local que Estado e sociedade da época lhe achavam devido — o lar, como dona de casa, esposa e mãe.
Assim, apesar de Paul Combes ter escrito uma obra em finais do século XIX, inícios do século XX, que poderia ser considerada desatualizada, fundamentalista e sexista, chegando aos anos de 1950, esta obra ainda era publicada no nosso país, formatando as mulheres da época, reduzindo-as a um papel secundário, subalterno e subordinado ao papel masculino na sociedade da época. Mas Combes não estava sozinho, foram centenas os livros publicados, com diversas reedições, maioritariamente de autoras portuguesas, que funcionavam como manuais de boa conduta, gestão doméstica e educação feminina.
Pelos anos de 40 e 50 do século XX, no que diz respeito à publicação de autores estrangeiros nesta área específica da edição dirigida a leitoras do sexo feminino, os que permaneciam reeditados eram aqueles cujas obras tinham edição original mais antiga (edições originais entre 1890 e 1910). Com as mudanças que surgiam internacionalmente, eram escassas as novas obras de índole conservadora publicadas por autores estrangeiros. Orgulhosamente sós, as edições dirigidas às mulheres tentavam a todo o custo manter a mulher portuguesa refugiada num passado conservador, tradicional, onde o lar tinha de chegar para cumprir os seus sonhos e expetativas de vida.
Os Quatro Livros da Mulher, Paul Combes, Editora Educação Nacional
Mais do que nunca chegou a hora de as educadoras cristãs velarem pelos seus filhos, reagindo contra as modernas tendências tão funestas.
Pág. 125, Paul Combes – O livro da Educadora. Editora Educação Nacional, 1948, 4ª Edição
É que o dever – que chamaremos essência – da dona de casa não é trabalhando na vida exterior, por mais nobres e louváveis que apreçam as obras. O seu primeiro dever é a organização, a direção do lar familiar.
Pág. 129 O livro da dona de Casa – Paul Combes, 1934, 4ª edição
O mérito da mulher é governar a sua casa, fazer feliz o seu marido, consolá-lo, alentá-lo, e educar os seus filhos, isto é, fazer deles homens.
Pág. 10, Paul Combes, O livro da mãe
As leis gerais da natureza – confirmadas pelas leis divinas, por meio da Revelação, e pelas leis humanas – assinalam à mulher a missão de companheira do homem.
Quantas guerras podem os meios de comunicação seguir, difundindo a informação recolhida? Quantas guerras queremos nós, consumidores de informação, acompanhar, absorvendo mortes, interiorizando a destruição, sentindo a perda? Não muitas. Uma e talvez chegue.
Com a guerra da Síria a dominar a agenda noticiosa, há guerras que se tornam invisíveis, esquecidas, como se nem lá estivessem. Olvidadas pelos meios de comunicação e esquecidas pelas comunidades internacionais, as guerras invisíveis matam milhares, deixam outros tanto à beira do colapso da desnutrição, mas coração que não vê, coração que não sente.
No Iémen, desde 2015 que uma guerra civil vem carcomendo o país, com grandes responsabilidades da interferência de nações como a Arábia Saudita. Em 2011, no rescaldo da primavera árabe, o presidente Saleh foi deposto. Seguiu-se o presidente Hadi, eleito por via de eleições reconhecidas. Mas a chegada de Hadi foi contestada pelos rebeldes Houthis que acabaram a tomar Sanaa em 2014. Hadi fugiu para a Arábia Saudita. Assim, temos os rebeldes Houthis a apoiar o ex-presidente Saleh, a Arábia Saudita a apoiar Hadi, fazendo bombardeamentos constantes contra posições rebeldes. Mas a guerra, para além de civil, é sectária — a arábia Saudita sunita apoiando Hadi e o Irão xiita apoiando os rebeldes Houthis.
Mohammed Huwais/GETTY (imagem retirada do site do jornal Expresso)
No meio deste conflito está a população civil que, depois de meses de bombardeamentos, de deslocações forçadas dentro do território, de ver as condições básicas do país fenecerem, está no limiar de sobrevivência, com milhares de crianças em situação de desnutrição aguda. Em dezembro de 2016, estimava-se a morte de pelo menos 6000 pessoas desde o início do conflito em 2015.
Uma guerra de contornos complicados de perceber para um cidadão ocidental, uma guerra «lá longe», uma guerra que se some no meio de outras guerras com mais interesse.
Não fosse o solo europeu o destino de muitos refugiados sírios, não estivéssemos nós de alguma forma ligados, mesmo contra a vontade, à guerra síria e também ela seria um conflito sem interesse «lá longe».
As pessoas, aqui, na Síria, no Iémen, sofrem de semelhante maneira, têm semelhantes sonhos, sentem fome, medo e frio como cada um de nós sentiria se exposto a semelhantes adversidades.
Por isso, nenhuma guerra merece a invisibilidade internacional, nenhuma guerra merece ser transformada, pelo meio do esquecimento, num acontecimento normal e aceitável. Por trás da guerra, dos interesses que a promovem, estão as pessoas, adultos e crianças e nenhum ser humanos merece ser votado ao esquecimento pelo seu semelhante.
Como já referi noutros posts, não sou grande frequentadora das redes sociais. Uso apenas o Facebook, embora seja uma utilizadora esporádica. Assim, basta estar uns dias sem dar grande atenção àquilo para começar uma guerra cibernética e eu não saber de nada. E foi mais ou menos isso que aconteceu na semana passada. Entro eu no Facebook quando me deparo com um fenómeno de guerrilha, de protestos, de estratégias de retalização em preparação e uns quantos «amigos» com as contas bloqueadas temporariamente ou amuados depois de um ralhete do Zuckerberg.
E tudo começou de forma inocente. Após a morte de Mário Soares, um ou outro utilizador do Facebook postou uma foto de Soares com a sua esposa, na praia, cumprimentando uma turista holandesa em topless. A imagem tinha uma carga implícita que, a meu ver, era interessante. A foto era antiga e demonstrava um país que saía do jugo do conservadorismo da ditadura e entrava numa nova etapa que tornava possível uma fotografia daquelas.
(Fotografia retirada do site do Diário de Notícias)
Mas o Facebook não suporta mamas. Mais concretamente, o Facebook não suporta mamilos femininos. Basta uma denúncia de algum frustrado, um polícia dos costumes da atualidade, para logo o utilizador que se atreveu a mostrar tal coisa estar em muito maus lençóis.
E esta abominação às mamas estende-se a qualquer representação de seios femininos: uma imagem de uma pintura, de uma escultura, uma fotografia de um povo indígena meio despido ou uma singela fotografia de uma mãe a amamentar, tudo se enquadra dentro dos critérios de pornografia da rede social.
Mas esta censura ao mamilo é dual. Se o mamilo for masculino não há problema, mas qualquer nesga de um mamilo feminino gera censura garantida. O engraçado é que a mama em si, por maior que seja, por mais exposta que possa estar, não é um problema em si. Apenas aquele pedaço de pele — o mamilo — provoca tal estado de alvoroço aos senhores que controlam as redes sociais.
Disto, deixo apenas uns quantos apontamentos:
— A forma como o corpo feminino é observado, apesar do avanço dos tempos, ainda está muito ligada a certos dogmas religiosos. As principais religiões monoteístas, de origem patriarcal, sempre difundiram a imagem da mulher, do corpo feminino, ligada ao pecado, à sujidade. Por trás da forma como o corpo feminino é representado e observado na atualidade estão séculos de atribuições pejorativas à mulher (e de submissão ao homem);
— Mulheres heterossexuais e homens homossexuais também sentem atração por um peitoral exposto masculino, mas nem por isso essas imagens erotizas de peitorais masculinas são censuradas;
— É certo que a imagem da mulher é muito erotizada, mas não será a do homem também? No fim, todos os seres humanos têm um corpo, nascem despidos e, antes de qualquer erotização, o corpo é o que de mais natural existe em nós. É justificável esta censura a um pedaço de pele?
— Os seios femininos, antes de qualquer coisa, servem para alimentar recém-nascidos e isso, alimentar uma criança, não tem nada de erótico ou pornográfico;
— Há uma clara diferença entre anatomia, erotização e pornografia que deveria ser ressalvada;
— Há uma diferença entre os valores europeus e os valores estadunidenses. Talvez se justificasse uma rede social fundada na Europa, alicerçada em valores europeus, sem traços de conservadorismo barato;
— Numa época em que o corpo feminino é objetivado, é usado como promotor publicitário, em que serve para impulsionar vendas ou enaltecer a imagem a quem a ele se associa, não deixa de ser hilariante esta censura a uns quantos milímetros de pele.
Por isso, que se libertem as mamas — seios, mamas, ( ∙ )( ∙ ), que os seios arejem, que os mamilos vejam a luz do dia. No final, é apenas um pequeno pedaço de pele, característica de todos os seres humanos (homens e mulheres).