A banheira estava cheia. As manobras para me colocarem lá dentro já iam a meio. Eu estava sentado na beira já com os pés no interior, imersos na água. Ao erguer-me para me transportar para dentro da banheira, a minha mãe deixou-me cair. Tombei abruptamente na água, desamparado. Fiquei de cabeça submergida e as minhas mãos procuravam algo onde me agarrar para conseguir soerguer-me e respirar. Foram apenas segundos, mas na minha cabeça o novelo daquela cena é desenrolado devagar e cada segundo é vivenciado como uma via sacra de aflição. Vejo a minha mãe através do espelho de água, contornos faciais diluídos, debruçada sobre a banheira, sinto a sua mão no meu peito, uma mão pousada que nada faz para me socorrer, antes parece selar aquele encontro acidental com o fundo, com a falta de oxigênio. As minhas mãos esgravatam o ar como aranhas encurraladas, mas quanto mais estrebucho maior a dificuldade em me equilibrar e emergir da água.
Apesar da minha educação cristã, de ter crescido e vivido no seio de uma família católica praticante, desde há quase duas décadas que me afastei da religião até ao ponto de me considerar ateia. Recordo o grande conflito que nessa altura residia em mim. O choque entre aquilo que defendia enquanto valores inalienáveis e os dogmas religiosos, o conflito entre a crença imposta e aprendida e a visão racional com que tendia a ver o mundo.
Tirei a religião da minha cabeça, mas é impossível remover por completo a religião da minha vida. Sendo os portugueses maioritariamente católicos no que à crença religiosa diz respeito, a religião está presente nas festividades e cerimónias que se celebram, nos cumprimentos que se trocam entre familiares e amigos, nas atividades escolares dos filhos, etc. Embora deva referir que esta religião entranhada no nosso dia a dia seja já uma religião degenerada, moldada aos tempos atuais de cariz mais consumista e festivaleiro.
Quando me confrontam com a minha hipocrisia em celebrar de alguma maneira o Natal quando me assumo como alguém que não tem qualquer religião, confesso que não sinto qualquer paradoxo nas minhas ações. Vivencio o Natal como uma festa da família, uma partilha de momentos entre pessoas que se amam, a tradição de passar o dia com a minha mãe a preparar receitas antigas de doces caseiros, o jantar galhofeiro com a família em que rimos, bebemos e contamos histórias já repetidas até à exaustão, mas que continuam a arrancar gargalhadas.
A minha falta de culpa tem a sua raiz nas vivências da generalidade dos portugueses e cidadãos ocidentais. Mesmo aqueles que se dizem católicos ou cristãos há muito que subverteram aquilo que a religião primariamente definiu que o Natal deveria ser. Esta quadra transformou-se num manancial de decorações coloridas, luzes brilhantes nas avenidas das grandes cidades, compras compulsivas de presentes (facilitadas por promoções típicas da época), num consumismo desenfreado mesmo a nível alimentar. Comprar muito, oferecer muito, comer muito, decorar muito.
A celebração familiar que faço, desprovida de qualquer estravagância, intimista e pouco consumista (só a criança da casa costuma ter direito a presentes), pode ser chamada de qualquer coisa, mas é o meu natal, um natal da família que pode ter no seu seio pessoas com diversas crenças e pontos de vista.
E como uma festa pagã na antiguidade foi lentamente transformada numa festa cristã, também o meu Natal católico da infância foi transformado numa festa de celebração da família que, para mim, já não tem qualquer susbtância religiosa.