Sete mil milhões de pessoas. Na busca das minhas singularidades, da minha unicidade, digo-me, como se me cantasse uma canção de embalar, uma lengalenga hipnótica para me acalmar, me justificar: somos sete mil milhões unidos pela nossa diversidade, uma massa una pelas nossas diferenças, um ninho gigante pulsante de mentes diferentes, pois ninguém pensa de maneira igual. Mas… e há sempre um advérbio maluco que vem estragar tudo, abafar o som da minha litania, mas sendo nós diferentes, talvez o não sejamos assim tanto. Somos, muitos de nós, fruto da mesma experiência educacional, cultural, social, económica. Lemos os mesmos livros, ouvimos a mesma música, vemos os mesmos filmes, estudamos a mesma matéria na escola. Só a nossa experiência pessoal de vida, a turbulência própria de cada vivência pode apimentar e salgar a nossa maneira de percepcionar o mundo, diferenciando-o dos demais.
Há dez anos comecei a escrevinhar uma história. Durante anos fui redesenhando inícios, escrevendo episódios soltos que se abrigavam sob uma ideia geral, sob uma história com um mote simples. Nos últimos três anos obriguei-me a escolher uma estrutura, obriguei-me a meter aqueles personagens na ordem, aquela narrativa nos eixos. Uma frase de uma professora numa aula provocou a escolha de estrutura narrativa, uma viagem levou-me a desenvolver de determinada forma um personagem, um anseio, um medo permanente levou-me a definir a ambiência da história, atrevimentos aparentemente espontâneos dos personagens definiram o caminho, a foz onde aquela história desaguaria. Quando acabei, depois de diversas revisões, de cortes, alterações, correcções de gralhas, de parágrafos inteiros que viram traçado o seu destino como lixo electrónico, de novos parágrafos que brotaram quase como se se escrevessem sozinhos, cheguei ao ponto de considerar o meu livro acabado. Todavia, um livro é coisa que parece nunca ter fim. De cada vez que se lhe mete os olhos em cima alguma gralha pulula provocatória à nossa frente, algum aspecto afronta-nos, acusando-nos de grande pobreza mental por lá ter sido escarrapachado, novas alterações surgem forçosamente.
Com todo este corte e costura literário, mesmo conhecendo as limitações das minhas competências literárias, mesmo duvidando do meu domínio exímio da língua portuguesa, o que escrevi afigurava-se como algo único, uma ideia que apenas eu poderia ter, uma teia que apenas eu poderia ter tecido, um verdadeiro admirável mundo novo.
Deste fulgor da criação à decepção vai um nada; desta exaltação, deste amor pelo filho que se concebeu com tanto esforço, um filho no qual se pensa compulsivamente, negligenciando os seus defeitos em detrimento das suas características que são um reflexo de nós próprios (daí a atracção), desta obsessão à evidência da repetição, da vulgaridade vão apenas segundos de desconforto, segundos de um vulcão interior em erupção que solta lava e arrasa tudo à passagem.
Comprei um livro de Auster. Uma vida não chega para se ler tudo o que se quer ler. Se ao menos parassem de escrever, se ao menos mais nenhum livro fosse escrito talvez me julgasse capaz de ler os essenciais literários, caso a duração da minha vida, visão e clareza mental mo permitissem. Auster já andava há uns tempos na lista dos próximos, mas outros tinham-lhe passado descaradamente à frente na fila. Este verão decidi fazer-lhe justiça e decidi começar por um livro que poderei classificar de memórias. Um autor é a sua obra e não a sua vida, a sua personalidade, a sua maneira de fazer as coisas, mas há um certo conforto na confirmação de que aquela pessoa, aquele ser humano que escreve, se faz presente na vida de milhares de pessoas através das suas palavras, é também um ser humano razoável, com fraquezas, medos, ambições e frustrações, um pouco um reflexo de nós próprios nas nossas qualidades e defeitos. Há sempre um choque na descoberta de que um determinado autor que nos deleitou, que nos acompanhou durante anos é na realidade um facínora, um troglodita sem princípios ou um arrivista ambicioso que não olha a meios para alcançar o topo da sua montanha. Embora, nestes casos, a obra não perca qualidades, a luz à qual a vemos, a observamos, esmorece, perde intensidade, levando as trevas ao que parecia tão luminoso.
Após esta primeira leitura de Auster, consultando os resumos de outros livros do mesmo autor para futuras aquisições bibliográficas, descubro lá no meio o foco das minhas angústias. Um livro que desconhecia, mas cujo mote, cujo ponto de partida narrativo era semelhante ao da minha história. A mesma ambiência distópica, o mesmo ponto de partida narrativo e, em parte, até a mesma escolha estrutural.
Como poderia eu ter plagiado uma ideia de Auster sem a conhecer e, esquecendo o plágio (que não o houve), como pude eu ter uma ideia irmã da de Auster, como a acendalha que explodiu numa história pôde ser tão semelhante à de Auster, um autor cuja obra me era desconhecida até à data?!
Em conclusão, não sou assim tão diferente de todos os outros sete mil milhões nem as minhas ideias são assim tão originais. A forma como apimento e salgo a minha história, essa, terá alguns traços apenas meus, mas mesmo essa forma de temperar a narrativa sofrerá grandes influências da minha vivência banal, das minhas leituras estereotipadas, tornando o produto da minha criatividade pouco ou nada criativo.
Agora, num depósito, num qualquer armazém de uma editora repousa o exemplar daquele livro de Auster que quero ler, mas simultaneamente tenho medo, adiando a sua compra, procrastinando o encontro com a evidência do meu plágio inadvertido.
Dezenas de publicações, fotos que parecem repetições umas das outras, vídeos de gatos e cães, frases «inspiradoras», humor brejeiro, humor espirituoso, textos ocos e textos que me deixam inquieta, pensativa, que me fazem rir à gargalhada ou chorar que nem uma condenada, que persistem no dia para além daqueles segundos ou minutos que os demorei a ler. Nestes últimos, após o ponto final, após as últimas letras que formam palavras frente aos meus olhos, limito-me a colocar um GOSTO. Um Gosto que se perderá entre outros, um Gosto que se emalhará entre Tristezas, Risos, Adoros e Raivas, que perderá sentido entre comentários vários, que ficará esquecido numa lista de muitos outros Gostos alheios. Um Gosto que, nas suas cinco letras, na sua simbologia de polegar erguido é bem mais do que gostar, é um:
— tu, que escreveste isto, queria ter-te aqui perto de mim para falarmos, queria trocar contigo umas ideias sobre os teus escritos, queria explicar-te até onde as tuas palavras me levaram, a que confins fui empurrada pelo teu texto, queria poder exprimir-me para além do que um comentário a um post permite, queria dizer-te que a tua inteligência interessa, os teus pensamentos expressos nos teus posts, transmitidos através de um perfil identificado por uma qualquer foto, esses pensamentos, esses pontos de vista são vitais, fazem-me vislumbrar mundos para além do meu pequeno mundo, exacerbam a minha curiosidade, exaltam o meu sentido crítico, espicaçam a monotonia, a repetição dos dias. E se te deixo apenas um polegar branco em fundo azul, como quem pouca atenção prestou, como quem leu de forma apressada e oblíqua, peço desculpa. A tecnologia, num paradoxo, aproxima-nos, afastando-nos.
Por isso, a todos aquelas pessoas que não conheço, que são apenas caras num perfil, vidas inteiras resumidas em pequenos textos, fotos e vídeos, mas pessoas que sigo, leio com atenção, apesar de quase anónima, ausente na minha presença, quero dizer que gosto do que escrevem… e muito mais do que isso.
A minha terra é uma pequena localidade rodeada de floresta. Algumas freguesias mais densamente povoadas por pinheiros, carvalhos e eucaliptos, outras mais povoadas por pessoas, mas todas elas com a floresta bem presente em cada vislumbre pela paisagem circundante. Com a chegada do verão, a subida das temperaturas conjugada com o característico vento estival são um prenúncio fatal de um incêndio próximo. E quando, a meio da noite, ouço o lamento incansável da sirene dos bombeiros, sinto no peito aquele aperto de desgraça cumprida. Sempre foi assim e parece que sempre há de ser. Um verão manchado, mascarrado pelo fogo. Um cheiro a queimado no ar, as nuvens de fumo que filtram o sol e transformam as sombras da manhã em sombras do ocaso, as cinzas e pequenas folhas queimadas que bailam no ar, trazidas pelo vento, aterrando no meu quintal. E parece que o verão, o calor, a brisa que corta a canícula não podem ser sinónimo de férias, ócio, prazer, têm forçosamente de se transmutar nisto, em terra queimada.
Desde pequena que o fogo marcou a ideia que tenho da minha terra e desde pequena que fui elaborando pensamentos sobre castigos, motivações, quando me parecia que a origem do incêndio era notoriamente criminosa. Quando os fogos começam no meio de uma mata ao meio da noite não restam grandes dúvidas sobre o assunto. Com o tempo comecei a afirmar que um crime de fogo posto deveria ser equiparado a um crime de terrorismo. O que arde é muito mais do que árvores: arde a fonte de sustento ou ajuda ao sustento de famílias, ardem árvores que nos ajudam a respirar, a viver, arde o habitat de centenas e diversos animais, muitas vezes ardem casas de habitação, currais com animais dentro, ardem árvores, algumas delas centenárias, que demoram anos até atingirem um tamanho considerável, a sua idade adulta, sendo muitas vezes substituídas após o incêndio por árvores de mais rápido crescimento, como por exemplo o eucalipto. Com tudo isto, chega não raras vezes o medo que a população sente pelo aproximar das chamas, pela ameaça que lhes coloca em risco a vida, os pertences, em suma, tudo. Depois, é a paisagem chamuscada, a terra queimada, a lembrança que tarda em desvanecer tatuada à força nas encostas, nas serras, nos vales. Um fogo não dura apenas os dias em que consome o mato como um monstro esfomeado. Um fogo dura anos até a floresta se recompor, os habitats se restabelecerem, os animais voltarem, as árvores crescerem.
Com tudo isto, sempre dirigi uma espécie de ódio às pessoas anónimas que tinham a crueldade de, a meio de uma noite de verão, provocarem um incêndio. Mas agora percebo que é um ódio oco, sem sentido, ainda mais quando, olhando para outras localidades, para outras detenções de incendiários, se percebe quem são aquelas pessoas, aqueles que aos meus olhos eram autênticos terroristas — alcoólicos, pessoas que vivem à margem da sociedade, em famílias disfuncionais, com graves problemas económicos, pessoas que muitas vezes apenas querem chamar a atenção, trazer até si o circo mediático dos bombeiros, das televisões, das aberturas dos telejornais, pessoas infelizes na sua falta de educação e cultura, pessoas que observam o que as rodeia de forma abruptamente diferente da minha, pessoas que não têm uma ideia real do impacto dos seus atos, piromaníacos na aceção real da palavra, pessoas com perturbações mentais não diagnosticadas.
E a desgraça parece maior quando não temos um alvo nítido, válido a quem atirar as culpas. Se a prevenção dos incêndios passa pela limpeza das matas, por atitudes que evitem negligência grosseira que acabe em fogo (evitar as queimadas, os churrascos na floresta, atirar beatas, etc.), passa também por uma prevenção mais geral, a longo prazo, pela transformação da sociedade através da educação, através do acompanhamento e apoio de pessoas que sentem dificuldades várias (económicas, de saúde, de integração, de educação). O rosto da culpa está em cada incendiário, mas está também um pouco em todos nós e nas evoluções sociais, educacionais que deveríamos, enquanto sociedade, exigir a quem nos governa. Só assim os fogos de origem criminosa poderão diminuir, só assim o verão poderá ser novamente verão e não verão com cheiro a queimado e mascarrado de negro.