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Quimeras e Utopias

Quimeras e Utopias

Dois tugas à conversa sobre bola

— Passámos aos oitavos  de final.

— Está bem, mas não ganhámos nem um joguinho.

— Mas passámos, carago.

— Sim, mas em terceiro lugar do grupo. E era um grupito da tanga.

— Não interessa. Passámos. Somos os maiores. Vamos ganhar isto tudo.

— Mas foi toda uma prestação assim para o humilhante. E se não fosse o alargamento da competição a mais equipas já tínhamos ido com as couves.

— Detalhes. O que interessa é que passámos.

— Sim. Mas agora com a Croácia vamos apanhar cá uma coça… vamos levar com três ou quatro. Não temos hipóteses nenhuma.

— Cala-te, car&%$o. Passámos!!

Davides e Golias

É-me difícil estar a acompanhar um qualquer desporto de competição sem sentir a necessidade de torcer por umas das equipas ou atletas. Se é uma corrida de atletismo, vou escolher um favorito antes de começar, se é um jogo de futebol, faço exactamente a mesma coisa. Sendo algum atleta ou equipa do meu país, obviamente é essa pessoa ou equipa que irei apoiar, mas não sendo, as minhas escolhas de fã entusiástica irão necessariamente recair na pessoa ou equipa subvalorizada. Tenha uma espécie de fascínio pelos underdogs, pelos menos favoritos e espero sempre que o meu entusiasmo consiga transformar aquele jogo, aquela prova numa vitória de um David contra o favorito Golias.

 

Num Real Madrid vs Atlético de Madrid não houve Ronaldo que me convencesse a torcer pelo Real, num França vs Albânia, parecia que era albanesa desde pequenina, se o Brasil, a Argentina, a Alemanha, a Espanha ou qualquer outra potência futebolística joga, o meu favoritismo irá sempre para o seu adversário.

 

Acho que nutro uma espécie de irritação pelos Golias desportivos, pelos colossos que ganham repetidamente e espero sempre que os pequenos tenham uma oportunidade de brilhar.

 

Com isto, no jogo de terça-feira da seleção nacional portuguesa, acabando a partida com um empate, embora estivesse um pouco irritada com o resultado, pois não era a Islândia aquela seleção que nunca ia a campeonato nenhum, uma verdadeira inexperiente futebolística, dou por mim a pensar que Islândia era o tipo de equipa que eu apoiaria sem pensar duas vezes e aquele resultado era um verdadeiro brilharete. Portugal era o Golias e aquele pequeno David sem experiência conseguira-nos pôr na ordem.

 

Fiquei feliz por eles, pela capacidade de superação, pela surpresa conseguida, podiam era ter escolhido uma melhor altura para darem uma tareia vergonhosa ao Golias.

Leitura dos clássicos

Com milhares de novos livros editados anualmente no nosso país (livros de autores nacionais e estrangeiros), muitas vezes os leitores deixam-se seduzir mais facilmente pelas novidades publicadas do que pelas reedições dos clássicos da literatura. No meu caso, tenho sempre uma grande curiosidade de conhecer aquelas obras que perduraram na história da literatura, que são marcos literários mesmo quando passados mais de cem anos da sua publicação original.

 

Há um fascínio na descoberta de personagens complexas, narrativas que relevam pensamentos, pontos de vista de uma atualidade desarmante, mesmo quando o cenário, o contexto histórico é tão diferente do atual.

 

Contudo, há sempre uma obra que aguardamos ler com alguma impaciência e que após a sua leitura se releva aquém das nossas expectativas iniciais. Embora o contrário também possa acontecer. Encetar uma leitura porque se trata de um autor que achava que deveria ler e aquele livro revelar-se a porta de entrada para um universo autoral que não vou querer largar.

 

Relativamente à primeira situação, acabei há pouco o livro A Condição Humana de Malraux. Há já algum tempo que o tinha na minha lista de leituras futuras e assim acabei por o comprar e ler. As várias críticas que tinha lido sobre esta obra criaram uma expectativa na minha leitura que levou a que me sentisse, quase desde o início, defraudada. Pensando na questão geral da condição humana, nas condicionantes que nos diferenciam de todos os outros animais e nos tornam nisto, em pessoas, vi-me remetida para uma outra obra, também ela vencedora do prémio Concourt (tal como aconteceu com A Condição Humana), mas que, a meu ver, tem um efeito mais inquietante no leitor. Essa obra é As benevolentes, de que também já falei aqui no blog. E talvez seja disso que senti falta, de uma certa inquietude, que apesar de estar lá, não conseguiu atingir-me com a força que julgava necessária. Apesar de ser uma obra muito bem escrita, talvez o autor tenha usado de uma maior crueza, quase abstração, ao invés de optar por uma estratégia de maior impacto emocional, de distúrbio do leitor. A parte final do livro torna-se mais interessante, mas mesmo assim não chegou para que tenha nesta leitura uma leitura memorável, persistente no tempo.

 

Claro que esta deceção chega-me com uns certos laivos de culpa. Penso para mim que com toda a certeza não cheguei ao âmago daquele livro, não consegui captar as verdadeiras intenções do autor, ainda não tenho competências para absorver corretamente este tipo de leitura.

 

Assim, talvez faça uma releitura de Malraux daqui uns anos e talvez, o que me falta agora para ver o aclamado esplendor da obra, se me entranhe entretanto.

 

Malraux.jpg

A condição humana de André Malraux — Edição Livros do Brasil.

Edição original da obra em 1933.

 

Limites do humor ou humor sem limites?

Havendo algum acontecimento chocante no mundo, é certo que aparecerá um tweet ou um post do Rui Sinel de Cordes com alguma piada que gerará discórdia. Esta discórdia vem invariavelmente seguida de um debate sobre os limites do humor. Deverá o humor ter fronteiras ou os humoristas poderão levar a sua forma de expressar humor até onde lhes apetecer?

 

A questão do humor é que apenas pode ser chamado de humor quando o público o entende como tal. Todavia, muitos são os humoristas que ao levarem o humor até ao campo da ironia veem as suas tiradas cómicas serem interpretadas como opiniões, dados factuais e não como tiradas humorísticas. Num mundo perfeito, onde todos os cidadãos são tolerantes, onde não há discriminação, onde as questões de género, orientação sexual, raça e etnia não são notícia, nesse mundo perfeito a ironia de uma piada deste género seria percebida. No entanto, na nossa sociedade, as piadas de Rui Sinel de Cordes parecem apenas homofóbicas, misóginas, machistas, racistas, intolerantes.

 

Rui Sinel de cordes.jpg

 

Eu não penso que este humorista específico seja homofóbico, misógino ou racista, penso apenas que lhe falta ainda alguma capacidade para saber construir piadas irónicas, para saber construir «um boneco humorístico» que seja entendido como tal. Acho mesmo que este senhor deve-se fartar de rir com alguns comentários de seguidores que tomam as suas palavras como um bitaite válido e não como humor, mas talvez ele devesse perceber que se tantas pessoas não percebem a ironia é porque ele não está a fazer o seu trabalho com competência.

 

Lembro o caso do Jovem Conservador de Direita. Ao esticar os conceitos até ao limite, é fácil perceber que este suposto opinador de direita é um personagem de humor que usa a ironia com habilidade. Não digo que no meio de quem o lê não existam umas quantas pessoas que tomam as suas palavras como uma opinião real, mas a grande maioria das pessoas percebe o humor irónico implícito. Com Sinel de Cordes, a dúvida perdura a cada post, a ironia não transparece e no fim ele, com as suas bojardas, parece apenas parvo.

 

Quanto à questão dos limites do humor, mesmo com a falta de habilidade que poderá transformar humor de baixa qualidade em incentivo ao que mais degradante o ser humano pode ter, mesmo assim o humor não pode ter limites. O que também não precisa de ter limites é o bom senso e a racionalidade.

As mulheres gostam de…

As mulheres gostam de comprar roupa, desvirando lojas em busca da peça perfeita. Adoram sapatos e malas. Endoidecem com jóias. As mulheres gastam uma eternidade a preparar-se antes de sairem de casa, esmerando-se na escolha da roupa e na elaboração da maquilhagem. As mulheres adoram ir ao cabeleireiro, adoram fazer a manicure e pedicure, jamais saiem à rua sem a depilação feita. As mulheres adoram tirar selfies em que pareçam fantásticas, atraentes, lindas de fazer inveja a todas as outras mulheres.

 

Eu sou mulher mas, se entrar numa loja de produtos de maquilhagem, não saberei para que servem metade daquelas coisas e os poucos artigos que tenho, mal os uso e com uma perícia de fazer rir. Uso a mesma mala até ela estar coçada, até me ver obrigada a mudar e os sapatos, sentindo-me confortável com eles, é mais ou menos a mesma coisa. Sou vaidosa, gosto de comprar umas roupinhas, mas a minha vaidade é medíocre ao pé do estereótipo  feminino generalizado. Não tenho a mínima paciência para ir ao cabeleireiro. Vou uma a duas vezes por ano quando o cabelo «grita» por ajuda. Metade do ano roo as unhas. Na outra metade tento controlar essa compulsão pintando-as de forma bastante tosca em casa. Não sou adepta de jóias e se usar algum acessório será uma bijuteria barata. Não consigo deixar de pensar na exploração humana, na quase escravidão de algumas pessoas que trabalham em minas em busca de ouro ou pedras preciosas. As peças de joalharia parecem-me logo mais feias, sem brilho.

 

Com isto concluo apenas que sou mulher, gosto de ser mulher. Como qualquer outra mulher, homem, ser humano, não sou um ser estereotipado, sou o que sou, sem ter de ser definida por generalidades básicas, superficialidades sem interesse.

 

Esta mulher gosta de… beber um bom vinho e comprar e ler livros (entre outras muitas coisas). E tudo o resto é conversa.

 

SAM_3610.JPG

Feira do livro do Porto — Setembro de 2015

A vulgarização da morte, do terror e da discriminação

O atirador de Orlando, o assassino que tirou a vida a mais de cinquenta pessoas, terá sido motivado pelo ódio gerado pela imagem de dois homens a beijarem-se frente a si e à sua família. Apesar do horrendo desta barbárie, não é de todo difícil encontrar comentários na net de apoio aos atos deste terrorista, mostrando que há fundamentalistas, pessoas intelectualmente inferiores/danificadas, em todo o lado, em todos os quadrantes, sejam essas pessoas religiosas ou não, muçulmanas ou não, católicas ou não, brancas ou negras, homens ou mulheres, jovens ou velhos.

 

Como é que uma imagem destas, para mim uma imagem de extrema beleza (pois tratando-se de amor, não o é sempre?), pode levar à morte, ao terror, ao querer acabar com as liberdades alheias, com o amor alheio, com a vida alheia?!

 

Two men kissing.jpg

(Fotografia de See-ming Lee)

Estranhas obsessões — vídeos de borbulhas

No outro dia lia um artigo num site de notícias internacional sobre um fenómeno crescente da internet — os vídeos sobre a extração de borbulhas, pontos negros, quistos e afins. Até àquele momento ainda não tinha visto nenhum desses vídeos que a notícia dizia pulular no Youtube. Uma das pessoas referidas na reportagem era a Dr.ª Sandra Lee, uma dermatologista estado-unidense que postava frequentemente vídeos desse teor no Youtube e Instagram, tendo já milhares de seguidores e milhões de visualizações.

 

Dei por mim com alguma curiosidade em bisbilhotar um desses vídeos. Nunca fui muito de andar a catar borbulhas nos outros, mas quando tinha alguma borbulha, verdade seja dita, não parava enquanto ela de lá não saísse.

 

Fui então ao Youtube procurar a tal Sandra Lee e… foi o fim da minha existência tal como a conhecia. Descobri uma faceta minha que ignorava e da qual, tenho de admitir, sinto uma certa vergonha. Por um qualquer motivo obscuro (talvez algum psiquiatra consiga explicar) eu gosto de ver aquilo. Apenas me apazigua um pouco o facto de não ser a única (pelo menos, os milhares de vídeos e de visualizações transmitem-me essa ideia), embora essa situação não diminua uma certa sordidez associada à observação deste tipo de coisa.

 

Qual será a razão do prazer associado a ver este tipo de vídeos? O que há de tão magnífico em ver um ponto negro, uma borbulha a sair da pele de alguém?

 

Com tantos estudos feitos (com maior ou menor credibilidade), espero que alguém se dedique a fundo a esta investigação de «extrema importância». Preciso de saber a razão desta estranha obsessão.

Os dislikes

O que me move são as coisas que me proporcionam prazer. Esse prazer não tem de ser elementar, pode ter um caráter reflexivo, pode ser melancólico, pode até levar-me às lágrimas pela tristeza que me causa. Assim, tento não gastar um segundo da minha vida a procurar aquilo que nada me diz, que nada de bom me pode proporcionar. E se, nas minhas buscas, tropeçar em algo assim, indiferente, insonso, passo adiante sem olhar para trás.

 

Dito isto, surpreendem-me sempre as pessoas que gastam tempo com aquilo que confessam não gostar. No Youtube veem um vídeo, fazem um comentário negativo, colocam um dislike. Alguns são meninos para fazer isso em todos os vídeos desse mesmo artista. Se um vídeo tiver um conteúdo censurável (racista, xenófobo, misógino, discriminatório, de tortura a pessoas ou animais) eu consigo compreender e louvo mesmo essa atitude. Na realidade trata-se uma forma de expressar uma censura pelo conteúdo apresentado e uma forma de alertar quem vier a seguir. Mas tratando-se de um vídeo de música, gatinhos a fazerem avarias ou algo de género, nunca percebi essa necessidade de expressar uma opinião tão inflamada sobre aquela partilha. Eu não gosto de quizomba e para mim a solução é muito simples: não procuro vídeos de quizomba para lá ir colocar dislikes. O meu não gostar de um género musical não significa achar que o género em questão é um género menor. Simplesmente não gosto, mas não me sinto o oráculo do mundo, aquela que define se um músico, um compositor tem qualidade ou não.

 

Hoje estava eu a ver o vídeo Lazarus de David Bowie e fiquei boquiaberta ao perceber que tinha 16 mil dislikes. Posso compreender que algumas pessoas não apreciem o género musical em questão, mas um dislike é como um certificado de má qualidade e se há coisa de que o Bowie não poderá ser acusado é disso. Neste exemplo específico, parece-me quase uma falta de respeito por uma canção que é um epílogo maravilhoso, sem precedentes, de uma vida também ela excepcional.

 

Assim, seríamos todos bem mais felizes (a nível pessoal e interpessoal) se procurássemos o prazer ao invés de gastarmos tempo com aquilo que nos irrita, que nos torna em seres agressivos, impulsivos, uns verdadeiros trolls da internet.

A depressão dos tops de vendas

Quando passo os olhos pelo top de vendas da FNAC e WOOK fico sempre com sintomas depressivos. Desta vez, nem a presença de Elena Ferrante e Mario Vargas Llosa atenuou esses sinais incómodos, pois aqueles três desgraçados pareciam rir-se na minha cara, em jeito de gozo e até me pareceu ouvi-los dizer: «Viemos para o top e é para ficar, minha cara. Habitua-te. Aguenta-te à bomboca».  

 

O JRS, num dos tops 10, tinha direito a dois livros e não deixa de haver alguma ironia no sucesso deste «escritor». Um homem que diz que escreve pois não há nenhum livro que gostasse de ler (nem um, centenas de anos de literatura e nada, aos olhos deste homem não se aproveita nadinha de nada), tem milhares de leitores que o compram e o leem. Só gostava que todos os seus leitores fossem como ele, mais adeptos da escrita do que da leitura.

 

Sobre JRS fica-me ainda uma dúvida: se não há nenhum livro que gostasse de ler, será que nunca leu nenhum livro na vida à exceção dos escritos por ele próprio? Ou tudo o que leu foi a contragosto? E como raio faz ele as tais «investigações» com resultados fascinantes, autênticas descobertas que revolucionam a história da humanidade sem ler absolutamente nada? Ou será que só lê os artigos manhosos da wikipédia? A dúvida não me deixará dormir.

 

Lá pelo meio estava o maior guru da auto-ajuda do nosso país. Um homem que diz sem rodeios que a culpa de alguém ser vítima de violência não é do agressor, do violador, mas… (wait for it) da própria vítima. Alguém que adora trocadilhos com as palavras, mas trocadilhos que são apenas parvos, carecendo de qualquer sentido — a mente chama-se mente porque nos mente. (Neste momento cheguei a sentir um pequenino impulso suicida. Inspira, expira. Já passou.)

 

Não deixa de me surpreender a correlação direta entre o aumento de baboseiras proferidas pelo Gustava Santos e o aumento de livros vendidos e o aumento de likes na sua página do Fecebook.

 

Para último, fica o eterno morador dos tops nacionais, o Pedro Frases Feitas (peço desculpa roubar este delicioso termo sem dar direitos de autor ao criador, mas não sei quem foi).

 

Tenho no entanto de dar a mão à palmatória. Ele é definitivamente mais honesto que a maioria das figuras públicas da nossa praça. O homem promete falhar e falha, ele promete perder e perde. Pedro Chagas Freitas é, para mim, um fenómeno, mas não literário. De marketing. O percurso dele deveria ser usado como caso de estudo na área da comunicação e marketing porque não deixa de ser fascinante a forma como conseguiu desbravar terreno até chegar onde chegou — morador dos tops de vendas, figura com mais frases e textos lamechas partilhados nas redes sociais, autor adorado por milhares de leitores.

 

Este artigo da revista Sábado ilustra bem o autor e o seu percurso e, se eu pudesse, fazia uma cópia e enviava-a a todos os leitores do Frases Feitas. Um presente do fundo do coração.

 

Com isto concluo que o melhor para mim é manter-me na ignorância, evitar consultar os tops de vendas das livrarias, pois a depressão sai cara e não me apetece gastar dinheiro em medicamentos.

Calcitrim, tarot e suplementos vitamínicos

Se para mim, ligar para um número de valor acrescentado para consultar uma taróloga televisiva ou para comprar suplementos alimentares é algo completamente fora de questão, pois compreendo a manipulação, os interesses económicos e a tentativa de acabrunhamento levada a cabo por certos meios de comunicação, para algumas pessoas aquele número que lhes aparece a piscar incessantemente no meio do ecrã afigura-se como uma saída de emergência, a salvação para alguns dos seus problemas.

 

 A televisão foi ganhando, durante décadas, uma certa aura de legitimidade que fez com que uma parte considerável da população ainda tenha a crença de que — se dá na televisão é porque é verdade. Pessoas mais idosas, pessoas com um grau académico menor, pessoas interiorizadas ou com menor acesso a realidades diversificadas são os alvos preferenciais de empresas de comunicação que gradualmente foram perdendo os escrúpulos e usam de várias ferramentas, artimanhas para, ao invés de contribuírem para o desenvolvimento pessoal das pessoas que lhes dedicam horas do dia, promove antes o seu acabrunhamento intelectual. Isto, já por si, parece-me francamente negativo, mas se o entretenimento fornecido fosse medíocre, mas ainda assim, inocente, talvez grande mal não viesse ao mundo.

 

Todavia, acabrunhar não lhes basta. Há que tentar lucrar com esse acabrunhamento. E é aqui que da falta de escrúpulos se passa, a meu ver, para os atos criminosos. Induzir alguém a comprar medicamentos ou suplementos promovidos através de figuras públicas que as pessoas reconhecem e até consideram idóneas, utilizar os próprios anfitriões dos programas como garantes da qualidade do que se tenta vender, explorando as fragilidades do grupo alvo dos programas em questão, para além de ser publicidade enganosa é também um verdadeiro ato de extorsão, de manipulação de pessoas que apenas procuram uma companhia para as ajudar a passar o dia.

 

Acrescentando a isto as consultas de tarot pelo telefone, culminamos num verdadeiro lamaçal de má televisão, de criminalidade em direto.

 

Na sequência da insólita situação da taróloga do programa da manhã da SIC que aconselhou uma telespetadora que a consultou e que se queixou de ser vítima de violência por parte do seu cônjuge, a ter paciência, a dar-lhe mimo pois ele precisava de uma mãe e de mimo e não de uma mulher, os comentários nas redes sociais a esta notícia, para além de condenarem veemente a taróloga em questão, ridicularizavam as pessoas que telefonavam para este tipo de programas, usando frases como — quem liga para este tipo de coisas também está mesmo a pedi-las, está mesmo a querer ser enganado.

 

Mas será esta abordagem correta? Estando as pessoas em situações de vida de grande fragilidade, doentes ou submetidas a violência diária, vivendo muitas vezes com grande precariedade económica, será legítimo direcionar as culpas para a fraca capacidade de discernimento dessas pessoas, será correto ridicularizá-las por procurarem ajuda em sítios improváveis porque talvez não tenham encontrado essa ajuda nas vias consideradas normais?

 

A oferta, embora ridícula, está lá. Dia a pós dia. E quem deveria ser criticado, criminalizado, eram aqueles que oferecem estes serviços e produtos sob a capa da legitimidade que a televisão, a sua visibilidade pública, lhes confere.

Estar frágil, ser abusado, estar doente, não deveria conferir o direito, a legalidade, para a extorsão, a burla, o oportunismo. Às grandes empresas de comunicação social não lhes deveria ser permitido tudo, não lhes deveria ser permitida a falta de escrúpulos constante, a manipulação diária, o embrutecimento a toda a força.

 

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