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Quimeras e Utopias

Quimeras e Utopias

Sobre as religiões

Não consigo precisar em que ano e mês exactos da minha vida me questionei sobre «as verdades» que me foram impingidas desde que me conhecia como gente, em casa, na catequese, nas missas de domingo. Durante o início da minha adolescência ainda frequentava a igreja aos domingos e fiz o percurso normal que a grande maioria dos católicos faz — baptismo, primeira comunhão e profissão de fé (falhei o crisma). No entanto, durante a adolescência comecei a questionar a minha crença. Inicialmente, apenas os rituais, que considerava enfadonhos, deslocados e sem qualquer interesse (para mim ir à missa era apenas uma obrigação e passava a eucaristia a ansiar pelo fim da mesma ou de olho num rapazinho por quem a dada altura tive um fraquinho), e posteriormente passei a questionar também a ideologia, censurando-me por ter acreditado, por ter seguido uma crença que ia contra aspectos que eu considerava fundamentais, inquestionáveis. E foi assim, que ano após ano me tornei num ser ateu.

Confesso que neste percurso me tornei numa pessoa com pouca tolerância para as religiões, embora respeite a crença e até sinta uma espécie de fascínio por ela. Religiões e crenças são algo absolutamente diferenciado, que nada têm a ver, embora pareçam brotar da mesma coisa — da necessidade de orientação no caos (será esse caos tão-somente a natureza, a aleatoriedade que envolve todos os elementos da vida?).

Vejo as religiões como uma espécie de instituição, um organismo burocrata, que recebe os clientes com simpatia, mas com muito pouca predisposição para perguntas incómodas. O que mais me incomoda talvez seja o carácter castrador que a maioria parece ter em relação ao espírito crítico. São instituições de verdades absolutas, inquestionáveis e esse absolutismo cria um espaço para o fundamentalismo, para a discórdia.

Quanto à crença, todos nós seguimos algum tipo de crença, mais não seja a crença na humanidade como entidade capaz da criação das mais belas coisas através da criatividade, e capaz também dos actos mais altruístas e desprendidos, como oferecer a vida por alguém. A minha crença leva-me a viagens espirituais idênticas às sentidas por um católico quando entra numa igreja ou um muçulmano quando se ajoelha em direcção a Meca, bastando-me para isso ouvir música, ler um livro, ouvir as palavras sábias de alguém, ou até mesmo ver um bando de pássaros a voar em sincronia numa tarde de verão. Toda eu me elevo num fervor provocado pela maravilha que é a criatividade, a arte, o engenho humano, a natureza.

Toda esta conversa vem na sequência da islamofobia que parece crescer em proporção idêntica aos crentes na própria religião islâmica. Depois dos ataques de sexta-feira em Paris, é fácil encontrar nas redes sociais, nos comentários às notícias, opiniões que classificam a totalidade dos muçulmanos como um bando de assassinos encapotados, qualificando a religião islâmica como uma religião de apelo à violência, fundamentalista. O irónico destes comentários talvez seja alguns deles terminarem com um «valha-nos Deus, que Deus nos ajude, que vão todos arder no inferno, que deus os castigue». As piadas referindo as 72 virgens, que supostamente os mártires terão à espera depois da morte, também são recorrentes, como se todas as religiões não tivessem estas parábolas surreais, de pura fantasia (mulheres grávidas e virgens, por exemplo), e a religião islâmica fosse o cúmulo da extravagância religiosa.

Como sempre, o que mais parece faltar pelo mundo é reflexão, a capacidade de parar, olhar para dentro de si próprio, sem pressões, sem orientações exteriores, observar, escutar e, por fim, ver. Se um católico, judeu ou muçulmano reflectir sobre as suas próprias crenças, perceberá que, observando alguém de uma outra religião, se vê, inexoravelmente, ao espelho. As batalhas de «o meu é melhor de que o teu» são ridículas e talvez seja altura das pessoas verem as crenças exactamente como elas são — uma necessidade intrínseca de se ser guiado, algo que as ajuda a ultrapassar, a aguentar a vida quando esta parece não seguir a nossa lógica, a lógica que nós, humanos, inventámos e que nos tem como seres individuais, especiais, no centro do universo. Talvez seja altura das pessoas perceberem que o que as fará ser especiais, individuais, não é a crença per se, mas as acções individuais, especiais que poderão levar a cabo (por si, pelos outros, pela humanidade, pela natureza).

 

A religião convenceu efectivamente as pessoas de que existe um homem invisível que vive no céu e que vê tudo o que fazemos, a cada minuto do dia. E o homem invisível tem uma lista de dez coisas que não quer que façamos. E se fizermos alguma dessas coisas, ele tem um lugar especial, repleto de fogo e fumo e calor e abrasamento e dor, para onde nos manda viver e sofrer e arder e sufocar e gritar e chorar para todo o sempre, até ao fim dos tempos… Mas ele ama-nos!

George Carlin in A desilusão de Deus, de Richard Dawkins, página 335

 

Os fundamentalistas sabem que estão certos porque leram a verdade num livro sagrado e sabem, de antemão, que nada os demoverá da sua crença. A verdade contida no livro sagrado é um axioma, não o produto final de um processo de raciocínio. O livro é verdadeiro e, mesmo quando toda a evidência o parece contradizer, é esta que deve ser rejeitada, não o livro. Em contraste com isto, se eu enquanto cientista acredito em alguma coisa (a evolução, por exemplo), acredito não por ter lido num livro sagrado, mas por ter estudado as provas. Trata-se, de facto, de uma questão bastante diferente. Não é por serem sagrados que se acredita nos livros sobre a evolução. Acredita-se neles porque apresentam quantidades avassaladoras de provas que se escoram umas nas outras. Em princípio, qualquer leitor poderá examinar as provas. Quando um livro científico contém erros, estes acabam por ser detectados e corrigidos nas edições seguintes. Manifestamente, isso não acontece com os livros sagrados.

A desilusão de Deus, de Richard Dawkins, página 337

 

 

 

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O medo — arma de destruição maciça

É difícil fazer uma análise lógica dos acontecimentos da última sexta-feira sem incorrer em extremismos, dado a emoção causada por tais eventos ainda estar muito presente, pulsar com força no peito de todos nós. As redes sociais e meios de comunicação social acabam por contribuir para esta desorientação, para este abandono que nos deixa como animais perdidos no meio de uma estrada movimentada.

A razão para tais actos serem perpetrados por seres humanos «normais», o peso de uma certa religião nas motivações por detrás dos ataques, a responsabilidade ou falta dela das vagas migratórias, o gladiar entre facções que apoiam ou condenam as demonstrações públicas de apoio às vítimas através da colocação da bandeira francesa como imagem de fundo nas redes sociais (porque outras desgraças acontecem no mundo sem que ninguém se digne a meter e tirar bandeiras), todos estes assuntos revolvem num turbilhão as horas sequentes aos lastimáveis ataques em Paris.

Na suposta segurança da minha sala de estar, consigo captar alguns aspectos importantes que estarão seguramente ligados ao que aconteceu na sexta-feira passada. O mundo é um local violento; talvez não estejamos habituados a que o mundo ocidental o seja, mas a violência não pára e todos os dias morrem pessoas às mãos assassinas de outras sob o estandarte de alguma ideologia ou crença; não será possível olhar para aqueles actos em particular sem recuar no tempo, analisar coisas como a génese da Síria como país, os conflitos mais recentes no país e todos os seus intervenientes e analisar ainda os conflitos na região e como todos estes factores contribuíram para o aparecimento do gang do autoproclamado estado islâmico; talvez o mundo ocidental, tão pouco habituado a conflitos no seu território, tenha ajudado, patrocinado, conflitos em território alheio e, através de jogos de poder e interesse, tenha contribuído para o aparecimento de tais extremistas.

Todas estas análises deverão ser feitas e só depois delas, uma acção deve ser delineada por quem de direito.

O nosso medo impele-nos a exigir estratégias mais simples — acabar com a vaga migratória, com a entrada de refugiados em solo europeu, exigir dos estados medidas drásticas de protecção que, quase seguramente, passarão pela diminuição de liberdades e de conquistas recentes, ordenar a altos berros que as forças militares os bombardeiem a todos, àqueles assassinos, como se não houvesse amanhã, impele-nos ainda a desconfiar, mesmo que não ostensivamente, de todos os cidadãos muçulmanos e da religião islâmica como um todo.

No entanto, o nosso medo, mesmo que legitimado pelos recentes acontecimentos, não deve subjugar-nos. Mesmo que ele nos corroa de alto a baixo, devemos conseguir reflectir e fazer esse medo ajoelhar-se aos nossos pés, pois a união dos nossos medos é a mais poderosa arma que esta quadrilha (e não somente esta, mas qualquer quadrilha criminosa) poderá usar contra nós, é uma verdadeira arma de destruição maciça com resultados devastadores imprevisíveis.

Sobre a escrita, funesta doença

O mundo literário há vinte e cinco anos atrás era, sob o escrutínio do meu olhar adolescente, restrito, tal como um clube de elite onde só os melhores podiam entrar. Escrever umas coisas e dizer que se queria ser escritora roçava, a meu ver, a blasfémia. Como poderia eu, uma fulaneca qualquer, aspirar a tal coisa? Como me atrevia a pensar que algum dia chegaria aos calcanhares dos autores que me tiravam o sono, que me proporcionavam horas de leitura, a minha salvação do martírio que era a minha adolescência?

A imagem que retinha da minha pessoa, do meu ser adolescente, condicionou escolhas fulcrais, levou-me por caminhos que fizeram de mim o que sou hoje, o que, sob determinados aspectos, não é lá grande coisa. Mas apesar das escolhas divergentes, que supostamente me levariam para caminhos distantes dos da escrita, a doença persistiu. É já uma enfermidade crónica, que ultimamente se tem vindo a agudizar, entranhando-se em todos os quadrantes da minha vida, castrando a possibilidade de me comportar como uma pessoa «normal», de ter uma vida «normal». E esta realidade descrita pela palavra NORMAL é algo que anseio, mas da qual, paradoxalmente, fujo. Sonho com um emprego (que já tive) das nove às seis, num escritório, uma família padronizada, viagens de férias, idas a restaurantes, jantares com amigos e conhecidos, conversas sobre a actualidade política, futebolística, televisiva. Todavia, é como se algo em mim estivesse irremediavelmente danificado.

A par destes anseios de normalidade, está esta obsessão que deturpa a maneira como vivo o dia-a-dia, semeando histórias na minha cabeça, impulsionando-me a leituras compulsivas, muitas vezes glutonas, a horas desperdiçadas em frente ao computador debitando alarvidades para páginas em branco. Paro e percebo que sou uma mãe incompleta, uma desempregada de meia tigela (pois não serão os meus esforços de busca de um novo trabalho bastante limitados?), uma filha decepcionante, uma esposa a meio-gás, um ser humano frustrado, porque não me consigo proteger daquilo que quero. E o que quero é transformar esta corrente de observações interiores, diferentes formas de vida que se desenrolam dentro de mim, desconfortos, palpitações, medos e risos, transformar esta vida paralela em palavras tecidas com a mestria de um hábil artesão, em arte. E como conseguir coadunar o que se quer com a incapacidade, com a incompetência?

A escrita é um processo solitário e de solidão, mesmo quando se está rodeado de gente. E quando falo de escrita, não me refiro apenas ao processo de alinhar palavras num caderno ou num documento Word no computador. Para mim, a escrita, na sua vertente efectiva, da construção de frases, do processo artesanal de tecer uma página de palavras, é apenas uma quota-parte do que considero ser a ESCRITA. No meu caso, grande parte do processo desenrola-se na minha cabeça durante dias, semanas, como se, embora fisicamente presente neste mundo físico, vivesse em mundos paralelos, pudesse vivenciar vidas alheias, tomadas de decisões que não são minhas, medos e pânicos que nada me dizem na vida real.

Também a observação do que me rodeia é essencial para o processo de escrita. Há mais de um ano vi, de relance, numa feira popular, uma pessoa, um homem. Certos detalhes que condicionavam (e, de certa forma, caracterizavam aos olhos do comum observador) aquela pessoa, aquele ser humano específico, ficaram a martelar-me na cabeça. Da observação, passei para a criação mental de uma vida alternativa para aquele ser imaginado, que do ser real apenas mantinha o aspecto físico e a intuição de uma vida. Demorei semanas, talvez até meses, até escrever alguma coisa sobre o que resultou daquela observação e das primeiras frases escritas já muito mudou no rumo que inicialmente pré-estabelecera para aquela história. Isto porque, pré-estabelecer é condicionar, é uma certa arrogância de acharmos que controlamos, que temos aquela história, aquelas personagens na mão. Mas, tal como nós não estagnamos num momento específico da nossa vida, continuamos a viver, observar, ler, escrever, também as personagens, as suas vidas, são mutáveis, surpreendendo-nos muitas vezes com atitudes caprichosas, acções inexplicáveis.

E quantas vezes, na fila de supermercado, falando com alguma pessoa conhecida que me interpelou, os meus pensamentos, ao invés de irem para o preço da castanha ou do meu filho que não pára quieto, que está tão crescido, vão para a descoberta de uma faceta desconhecida de uma personagem, para o vislumbre de uma possibilidade negligenciada até àquela altura. E, aquele momento, aquela troca de palavras, soa, quando a descrevo, a uma farsa, elevando a quase totalidade da minha vivência a esse mesmo estatuto.

Quanto ao processo efectivo de escrita, sentar-me frente ao computador e começar a dedilhar letras no teclado, é um misto de dois sentimentos oposto. Uma sensação ambivalente que esbarra na parede do medo do fracasso, da incompetência, balançando violentamente de encontro à parede oposta, a de uma certa languidez, de um prazer reservado só para mim, que me inunda de ondas de satisfação, como se poucas coisas na vida me dessem tanta alegria como aquele momento específico — o aparecimento de cada letra, cada palavra, cada frase, mesmo que posteriormente apagados ou rectificados.

Falar sobre aspectos tão íntimos, sobre a doença em forma de tormento interno, poderá sempre provocar um certo riso sarcástico em quem me lê, mas a fatalidade é a fatalidade e falar sobre ela sempre dá um certo alento ao desgraçado afectado, mesmo que a conversa inclua risadas à mistura.

Olhando o sofrimento dos outros

Susan Sontag morreu em 2004, um ano depois da escrita deste ensaio que teve edição portuguesa pela Quetzal em 2015. Mais do que a leitura desta obra, foi a reflexão sequente que me alvoroçou, numa perturbação que perdura passados dias de já ter largado aquelas páginas.

Neste ensaio, Susan Sontag fala das imagens de guerra. Começa uma análise que vai desde os primórdios da fotografia de guerra até à actualidade, referindo como exemplos da realidade recente a guerra nos Balcãs ou os conflitos israelo-palestinianos. A forma como evoluiu ao longo dos tempos a abordagem a estas imagens, por parte de quem as capta e de quem as observa como um produto final com propósitos supostamente informativos, retracta a evolução da própria sociedade ao longo do século XX e início do século XXI.

A imagem está de tal forma entranhada na nossa sociedade, que se lhe tornou um elemento intrínseco ao qual já não prestamos muito atenção ou pelo menos, não de uma forma efectiva, que perdure nos dias.

Por um lado, demonstramos grande indiferença perante as imagens de guerra, elas tornaram-se um produto dos telejornais e jornais, uma banalidade do dia-a-dia. Mas, num paradoxo, parecemos quase necessitar delas e, atrevo-me a dizer, quase sentir uma espécie de prazer perverso com elas (algo idêntico ao que nos faz abrandar perante um acidente aparatoso numa estrada, como refere Susan Sontag no livro). Talvez a miséria alheia seja sinónimo de que não temos uma vida assim tão miserável, uma espécie de acréscimo positivo à nossa existência, quando esta não parece coisa de grande valor.

A caça a imagens mais dramáticas (como frequentemente são descritas) comanda a empresa fotográfica e faz parte da normalidade de uma cultura, na qual o choque se tornou o principal estímulo ao consumo e uma fonte de valor.  — página 29

Nos termos de uma análise altamente influente, vivemos numa «sociedade do espectáculo». Cada situação tem de se transformar em espectáculo para ser real — quer dizer, interessante — para nós. As próprias pessoas aspiram a transformar-se em imagens: celebridades. A realidade abdicou. Apenas há representações: media. — página 105

No fundo, talvez ao observar uma imagem destas não consigamos, tal como o pretendido pelo fotógrafo, captar a realidade inimaginável daqueles horrores, da vida miserável daquelas pessoas. Talvez a imagem fotográfica seja algo diverso, um instantâneo de um momento que pretende criar uma consciencialização de uma situação, mas nunca transportar quem a vê até lá, mesmo que o momento captado seja o momento de uma morte, o momento exacto da perda de uma vida. E talvez, perante uma sucessão diária de imagens, de um bombardeamento contínuo directo aos nossos olhos e cérebro pensante e emocional, apenas exista espaço para o extremo — uma selectividade do verdadeiramente atroz.

A sociedade ocidental parece, também, mais orientada para a recepção de imagens de determinada proveniência. África, Ásia, são locais longínquos onde nos é mais difícil uma identificação com a realidade e as vítimas retractadas. Igualmente, o tipo de sofrimento que pretendemos ver, enquanto «consumidores» destes produtos informativos, não poderá ser qualquer um. — O sofrimento mais vezes reconhecido como digno de representação é aquele que se considera fruto da ira, divina ou humana. — página 45

O início desta leitura coincidiu com o aparecimento de uma imagem que colocou um maior grau de pressão na minha análise interior, embalada pela análise de Susan Sontag, sobre o poder, ou falta dele, das imagens de guerra.

A imagem de Aylan Kurdi. Uma criança afogada, despejada pelo mar numa praia. Uma criança morta numa terra que não chegou a conhecer. Não era uma imagem num palco de guerra, mas é uma imagem com uma guerra implícita.

Seriam poucos os dias em que, no mediterrâneo, não se viam corpos mortos a boiar nas águas, corpos estirados sobre as praias, num final inglório de uma busca por uma vida melhor. Tinham passado meses, muitos meses, sobre as primeiras vagas de refugiados, sobre o início da emergência de uma acção conveniente por parte das autoridades europeias para uma situação há muito descontrolada. No entanto, o que acontecia por certas praias gregas, italianas ou turcas não fazia eco na realidade do dia-a-dia da grande maioria dos europeus. Enquanto a vida particular de cada um de nós continua imperturbável, não há mal que venha ao mundo. Mas aquela fotografia… aquela fotografia acabou com a imperturbabilidade. E embora eu consiga perceber o porquê, a razão por detrás do poder daquela imagem, também a mim me afecta. E o poder da imagem é tal, que por mais vezes que ela me apareça pela frente, o baque que sinto dentro do peito é exactamente o mesmo, com a mesma intensidade, tal e qual como da primeira vez.

Esta imagem específica reserva em si quase a totalidade do debate, das dúvidas, da ambiguidade de sentimentos e comportamentos humanos, analisados por Susan Sontag no livro Olhando o Sofrimento dos Outros. O mundo continuou ignorante, apesar das imagens de corpos alinhados nas praias, mas um corpo de uma criança, sozinho, em determinada postura, numa praia deserta, teve um impacto tremendo na maneira como passámos a observar aquela vaga de refugiados, a guerra da qual a maioria fugia, os tormentos pelos quais passavam até à chegada ao continente europeu. Aquele menino tinha nome, uma família, uma história e com ele, veio a consciência de que aquelas pessoas não eram números, eram seres humanos como nós. Víamos naquela criança a projecção dos nossos próprios filhos, da possibilidade e isso chocou-nos.

Ignorámos corpos adultos, ignorámos até corpos de crianças, mas fotografados com uma diferente mise en scène. Numa sociedade iconoclasta, precisávamos de uma imagem icónica e com Aylan deitado na praia essa imagem chegou. E mesmo que a imagem não tenha sido fruto de uma disparo fotográfico impulsivo de um fotógrafo impressionado, mas sim fruto de um arranjo, de uma escolha calculada de ângulos, etc., ela cumpriu o efeito para o qual todas as imagens de guerra estão à partida desenhadas — informar, consciencializar, criar uma lembrança futura, com raízes nas lembranças passadas e despoletar uma qualquer acção por parte de quem observa.

É-nos impossível imaginar as provações reais da viagem de barco que levaram à morte de Aylan, é impossível imaginarmos os extremos a que uma vida pode chegar — a constância da guerra, bombardeamentos diários, casas em ruínas, as privações de campos de refugiados sobrelotados — para que uma viagem que envolve perigos extremos possa ser considerada uma opção viável. Não podemos imaginar nada disso, talvez apenas pressentir e de forma enviesada, pois os nossos pontos de referência são ou ficcionais (filmes, séries, jogos) ou apenas fragmentos visuais, instantâneos de um segundo da vida de alguém, que nos chegam de longe, fora do nosso contexto diário.

A história da fotografia de guerra tem várias imagens icónicas que mesmo o mais desinteressado pelo tema reconhece. A imagem da Menina de Napalm, correndo despida, num grito de desespero que rompe a imagem e chega até nós, ilustra de forma inesquecível a guerra do Vietnam e é reconhecida internacionalmente, transversalmente por todos. Creio que a imagem de Aylan tem em si o mesmo destino. O destino de uma imagem icónica que perdurará no tempo.

«Nós» — este «nós» são todos aqueles que nunca viveram nada de semelhante àquilo porque eles passaram — não compreendemos. Não entendemos. Não podemos realmente imaginar como foi. Não podemos imaginar como a guerra é terrível, como é aterradora; e como se torna normal. Não podemos compreender, não podemos imaginar. É o que sente obsessivamente cada soldado, cada jornalista, cada voluntário de organizações humanitárias, cada observador independente que já alguma vez esteve debaixo de fogo e teve a sorte de iludir a morte que se abateu sobre outros ao lado dele. E têm razão. — página 120 e 121  

 

Olhando o Sofrimento dos Outros, Susan Sontag — Quetzal Editores

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As benevolentes de Jonathan Littell

Passaram anos sobre a leitura deste livro. Sete anos, oito talvez. E se falo nele é porque, mesmo depois de dezenas de livros lidos, o que senti com esta leitura específica permanece gravado em mim através da persistência da memória de um episódio particular.

Quando Jonathan Littell ganhou o prémio Concourt com o livro As Benevolentes, li a notícia no jornal e recortei-a. Não é algo que faça com frequência, recortar notícias de jornais, mas ao ler a sinopse, decidi que queria ler aquele livro e resolvi guardar o recorte como forma de lembrança para quando saísse a tradução portuguesa.

Passaram meses até a edição portuguesa sair. Traduzir esta obra não deve ter sido coisa fácil — um livro com 900 páginas, denso, com variadíssimas referências na língua alemã. Mesmo sem rever o recorte, lembrei-me da minha urgência relativa àquela leitura e comprei o livro.

Não vou aqui discorrer sobre a temática, fazendo um resumo até porque, entre um turbilhão de páginas lidas entretanto, não consigo escrever fidedignamente sobre o que li há oito anos atrás. Desta leitura ficou uma memória latente e que volta e não volta se materializa numa sensação física desagradável.

O início dos relatos, feitos na primeira pessoa pelo narrador, não foi de leitura fácil. Os nomes das patentes militares das SS, usadas sempre no original alemão (talvez por não terem uma correspondência directa com a realidade militar portuguesa), criaram alguma confusão inicial na leitura, pois são usadas muitas vezes em detrimento do nome específico de certas personagens. Depois da habituação, auxiliada por um glossário no final do livro, entra-se na leitura de uma forma avassaladora. A minha leitura foi compulsiva, obcecada, apesar dos horrores descritos, da violência dos actos praticados por aqueles personagens que, embora personagens, são um espelho de acontecimentos bem reais. É humanamente impossível o batimento cardíaco não disparar, não se descontrolar a dada altura, no decorrer desta leitura. É impossível não se sentir um crescendo de desconforto, que culmina com uma vontade cega de gritar provocada não tanto pelo terror, pela tortura, pela morte descritas naquelas páginas, mas pelo evoluir da personagem do protagonista. A transformação de um ser humano, um homem comum, num monstro. E com isto, a questão que fica a pairar como uma sombra — seremos, todos nós, sob determinadas condições, modelados por certos acontecimentos, passíveis de ser corrompidos irremediavelmente pelo mal?

Recordo o dia, quando já me aproximava do final do livro, em que aproveitei a minha hora de almoço no trabalho para ler. As minhas colegas mais próximas brincavam com a situação — «Lá vai ela ler a bíblia» — numa alusão ao tamanho do calhamaço que me inquietava as horas livres. Nesse dia, a hora de regresso ao trabalho chegou, mas com a ausência das chefias, continuei a ler na minha secretária. Não conseguia parar, mesmo com possibilidade de ver entrar de rompante o meu chefe sala adentro. Mais cinco minutos, mais dez minutos e num total, mais meia hora. Um dos meus colegas de sala avisou-me que deveria parar. Quando acabei o capítulo, parei. Ao fechar o livro, toda eu tremia. Os meus olhos pousaram nas mãos que pareciam sofrer espasmos, numa tremedeira incontrolável. E passados tantos anos, se evoco de alguma forma a memória deste livro, através de o ver em alguma livraria ou na minha estante em casa, aquele desconforto físico é a primeira coisa que se me assoma à mente. E agora, enquanto escrevo, apenas a reminiscência daquela leitura me faz tremer novamente.

Não sou pessoa de ter coisas favoritas. Há tanta música de que gosto que é difícil escolher alguma de que goste mais. Com os livros passa-se exactamente a mesma coisa. Pela quantidade e diversidade de leituras, pelas diferentes épocas da minha vida em que cada leitura foi feita, é impossível escolher um favorito. Mas As Benevolentes, pela persistência da reacção física na minha memória a longo prazo, está no top de preferências. Resta saber se, fazendo uma releitura, a opinião se manterá.

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Os filhos

Há algo de socialmente condenável na admissão de que os filhos não são tudo, o centro do universo de uma mãe, a razão do seu acordar todas as manhãs. Embora admitir tal coisa não seja sinónimo de falta de amor pela prole, socialmente é isso que parece ser apreendido com tais palavras. Ao homem, é-lhe permitido esse desgaste causado pela existência dos filhos, essa necessidade de afastamento e preenchimento da vida com algo mais. Para a mulher, é quase como se a nossa natureza implicasse, irremediavelmente, uma devoção incondicional aos filhos, uma cegueira para tudo o resto que nos rodeia. Assim, se quisermos dizer, num lamento cansado — «Estou cansada, farta do meu filho/filha.» —, que o façamos num sussurro, sozinhas numa divisão fechada à chave, para que ninguém nos ouça.

Algumas mulheres seguem esta devoção aos filhos à risca ou porque a sua natureza assim lhes impõe ou porque não se dão sequer espaço para uma interrogação sobre aquilo que realmente sentem, optando pela via do que pensam ser esperado delas.

Ontem lia as palavras de Karl Ove Knausgård sobre os filhos e esse pequeno parágrafo ilustra essa admissão pública de que uma vida tem diversas nuances e que nem todas têm como figura principal o filho/os filhos.

Faço tudo o que tenho de fazer pela família; esse é o meu dever. A única coisa que aprendi com a vida foi a suportá-la, a nunca a pôr em dúvida, e a destruir toda a angústia através da escrita. Não faço ideia de onde surgiu este ideal e, ao vê-lo diante de mim, de modo claro, quase parece perverso: porquê o dever antes da felicidade? A questão da felicidade é banal, mas não a que se lhe segue, a questão do sentido. Quando olho para um quadro bonito comovo-me, mas não quando olho para os meus filhos. Isso não significa que não os ame, pois amo-os com todo o meu coração, significa apenas que a importância que têm não é suficiente para dar sentido a uma vida. Pelo menos à minha.

Karl Ove Knausgård, A minha luta:1, A morte do pai, Relógio D’Água — página 36

 

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E, fechada numa divisão, sozinha, sorrio e aceno afirmativamente, em jeito de concordância, mas em voz alta, sentindo já a pressão de me justificar perante tal comportamento, proclamo: «Não fui eu que disse tal coisa. Foi o Karl Ove.»

Motivos, desculpas, bitaites

As razões de uma exposição pública através da escrita nem sempre serão nobres. Mascarada, não raras vezes, de partilha de opinião, usufruto da alcançada democratização do direito à ideia própria, a escrita em espaço público (redes sociais, blogues) não passa, muitos serão os exemplos, de uma necessidade de valorização pessoal, uma procura de reforço positivo ou, numa oposição, uma provocação que pretende desencadear reações menos benevolentes por parte de quem lê/comenta. Muito se poderia discorrer sobre os conflitos que habitam dentro de cada um de nós, seres humanos, para sentirmos esta necessidade de expressão, seja pela procura da confirmação ou pela provocação.

 

Eu não sou diferente. Não sou diferente desta massa de gente que larga bitaites diariamente na internet. Alguns bitaites refletidos, outros bitaites impulsivos que não serão propriamente caraterísticos, na vida do dia-a-dia, de quem os escreve, mas que deixam uma mancha de fúria, ódio, causando um sentimento assustador em quem os lê. Apenas fui mais recatada. Até hoje. Mas depois do impulso e antes de debitar estas palavras no computador, tentei perceber o que me move, as razões implícitas à necessidade de partilha das minhas ideias. E não há nada de nobre nas minhas razões. A solidão será o mais forte dos motivos. Falar sozinha, falar com o cão, discorrer em pensamentos durante horas, acaba por servir quase sempre os meus propósitos. Quase sempre, mas nem sempre.

 

Todavia, esta coisa da solidão tem muito que se lhe diga. Embora desterrada numa localidade pequena, não vivo só, falo diariamente com pessoas, mas não daquilo que gostaria de falar. E claro, a suposta solidão nada mais será do que um certo egocentrismo traduzido numa necessidade de que me ouçam, mesmo que este meu «grito» ecoe por todo lado e seja ignorado. Para mim, o ato de gritar encerra em si valor que chegue. Uma nova forma de falar sozinha, mas com a impressão de ter uma enorme plateia interessada.

 

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